Introdução
O tromboembolismo venoso (TEV) inclui a trombose venosa profunda (TVP) e a embolia pulmonar (EP). Globalmente é a terceira síndroma cardiovascular aguda mais frequente, a seguir ao enfarte do miocárdio e ao acidente vascular cerebral.1 A EP é uma obstrução da artéria pulmonar, ou de uma das suas ramificações, por material, como um trombo, tumor ou gordura, proveniente de um ponto distante do organismo. 2
A EP apresenta uma taxa de incidência anual a variar entre 39 e 115 por cada 100.000 pessoas. 3 De acordo com um estudo realizado por Gouveia e colaboradores, 2 em Portugal a incidência de EP tem aumentado nos últimos anos. No ano de 2013 foi estimada em 35 por 100.000 habitantes (≥18 anos), sendo superior no sexo feminino. A taxa de mortalidade intra-hospitalar por EP no mesmo ano foi estimada em 11,2%.2
Os sinais e sintomas da EP são inespecíficos, dificultando e atrasando o diagnóstico e tratamento, com consequente mortalidade e morbilidade significativa. Quando sintomática, as apresentações mais frequentes são a dispneia, dor torácica, pré-síncope, síncope ou hemoptises. 3-4
É fundamental o conhecimento dos fatores predisponentes para o TEV. Estes são classificados em: baixo risco, como é o caso da obesidade, diabetes mellitus, HTA, veias varicosas e repouso no leito superior a três dias; moderado risco, como as neoplasias, doenças autoimunes, insuficiência cardíaca e trombose venosa superficial; e alto risco, como TEV prévio, fratura do membro inferior, artroplastia da anca ou do joelho. 3-5
A abordagem diagnóstica é fundamentada com base na probabilidade clínica (Figura 1), quer seja avaliada pelo juízo clínico quer por uma escala de predição validada, como o score de Wells para EP. 3-5 Quando não tratada, a EP apresenta uma taxa de mortalidade de cerca de 15% aos três meses6 e de 25-30% aos cinco anos, 7 sendo a EP recorrente uma causa frequente de morte nestes doentes.2
O presente relato de caso pretende alertar para a necessidade de elevada suspeita na EP.
Descrição do caso
O caso clínico é referente a um homem de 76 anos, de raça caucasiana, autónomo. Terminou o ensino básico e atualmente está reformado. Inicialmente trabalhou como militar e depois como operário fabril numa empresa de laticínios. Inserido numa família nuclear na fase VIII do ciclo de Duvall.
Apresenta como antecedentes pessoais hipertensão arterial (HTA), dislipidemia, obesidade, perturbação depressiva, hipertrofia benigna da próstata (HBP), veias varicosas, insuficiência venosa crónica e episódio de TVP no membro inferior direito em 2012. Foi acompanhado na consulta de cirurgia vascular, tendo recusado cirurgia às varizes em outubro/2019, e na consulta de urologia, tendo sido submetido a adenomectomia retropúbica aberta a 7/outubro/2019, com internamento de oito dias.
Medicado habitualmente com perindopril 5 mg, amlodipina 5 mg, escitalopram 10 mg e atorvastatina 10 mg. Plano nacional de vacinação atualizado. Nega hábitos tabágicos ou alcoólicos. Rastreios oncológicos adequados à idade. Sem antecedentes familiares de relevo.
A 12/novembro/2019 recorreu à consulta aberta da sua Unidade de Saúde Familiar (USF), num período de ausência da sua médica de família, referindo cansaço, com um mês de evolução. Sem registo de outras queixas. De acordo com os registos clínicos, ao exame objetivo apresentava bom estado geral, pressão arterial 155/83 mmHg, frequência cardíaca 80 bpm. Auscultação cardíaca com S1 e S2 audíveis, rítmico e sem sopros. Auscultação pulmonar com um som rude global e sibilância ocasional. Realizou na USF uma nebulização com salbutamol e brometo de ipratrópio, sem melhoria significativa da sintomatologia. Foi solicitado estudo analítico, eletrocardiograma (ECG) e radiografia do tórax para realizar em ambulatório.
Foi observado na consulta pós-operatória de urologia a 19/novembro, onde referiu cansaço diferente do habitual, que não apresentava antes da intervenção cirúrgica. Recebeu indicação para a realização dos exames complementares de diagnóstico já solicitados e avaliação pela médica de família.
Por persistência da sintomatologia, a 27/novembro recorreu a um serviço de urgência básico e recebeu indicação para avaliação a nível dos cuidados de saúde primários com o resultado dos exames complementares que já havia realizado nesta data.
A médica de família agendou consulta para dia 29/novembro. Nesta, o cansaço foi caracterizado como sendo uma dispneia para pequenos/moderados esforços, associada a náuseas e sensação de desconforto torácico, com início após intervenção cirúrgica urológica. Ao exame objetivo apresentava bom estado geral, mucosas coradas e hidratadas, eupneico em repouso, sem sinais de dificuldade respiratória. Pressão arterial 134/82 mmHg, frequência cardíaca 85 bpm, saturação periférica de oxigénio em ar ambiente de 92%. Auscultação cardíaca com S1 e S2 audíveis, rítmico e sem sopros. Auscultação pulmonar com murmúrio vesicular mantido, sem ruídos adventícios. Hiperpigmentação no terço inferior de ambas as pernas e veias varicosas, mais proeminentes no membro inferior esquerdo. Ausência de rubor, calor ou edemas de ambos os membros inferiores. Estudo analítico e ECG realizados a 15/novembro dentro da normalidade. A radiografia do tórax da mesma data mencionava alterações da transparência radiológica de ambos os hemitórax, mais evidente nas áreas hilares e justahilares para as bases e à esquerda, com reforço das arborizações, a que se somam pequenas imagens de maior radiodensidade, aparentemente residuais. Atendendo à sintomatologia e fatores predisponentes foi referenciado para o serviço de urgência hospitalar, para despiste de EP.
No serviço de urgência foi realizado estudo analítico, onde se destacam d-dímeros 5288 ng/mL. Gasometria arterial em ar ambiente com saturação de oxigénio de 91%, PaO2 de 57 mmHg, PaCO2 de 34 mmHg, pH 7,45 e lactatos 1,2 mmol/L. Após estes resultados realizou angioTC pulmonar que revelou extensas falhas de preenchimento vascular nas ramificações lobares e segmentares de ambas as artérias pulmonares, compatível com EP bilateral e extensa.
Foi internado no serviço de medicina interna, com o diagnóstico de EP e insuficiência respiratória. De acordo com o Índice de Gravidade da Embolia Pulmonar, 5 foi classificado como risco intermédio, que corresponde a risco de mortalidade moderado (3,2-7,1%).5 Iniciou hipocoagulação com enoxaparina em doses terapêuticas. Completou o estudo com ecocardiograma, que relatou hipertrofia ligeira do septo interventricular, sem outras alterações de relevo, e com ecodoppler dos membros inferiores, que revelou à esquerda trombose da vertente distal da veia safena interna, preenchida por trombo totalmente oclusivo.
No último dia de internamento apresentava melhoria sintomática e ao exame objetivo bom estado geral, estava corado e hidratado, apirético, eupneico em repouso, com saturação periférica de oxigénio em ar ambiente de 97%, normotenso e normocárdico, sem edemas dos membros inferiores. Teve alta no dia 4/dezembro/2019, com orientação para a consulta de medicina interna e foi medicado com diosmina 450 mg uma vez por dia, furosemida 40 mg uma vez por dia e rivaroxabano 15 mg, duas vezes por dia, durante duas semanas, e depois 20 mg uma vez por dia. Recebeu também ensinos sobre os cuidados no doente hipocoagulado, como a possibilidade de ocorrerem hemorragias minor e da necessidade de avaliação médica se hemorragia persistente.
Mantém atualmente acompanhamento na consulta de medicina interna. Foi assumida EP provocada pela associação temporal com a cirurgia urológica. Em abril/2020 realizou estudo de trombofilias, que foi negativo. Contudo, por ser o segundo episódio de TEV em doente com HTA, veias varicosas e obesidade, com elevado risco de recorrência, foi decidido manter hipocoagulação por tempo indefinido.
O utente é seguido regularmente na consulta de vigilância de HTA pela sua médica de família. Na consulta a 20/fevereiro/2020 referiu uma melhoria sintomática significativa. Negou dispneia, dor torácica, pré-síncope, síncope ou perdas hemáticas visíveis. Ao exame objetivo não apresentava alterações de relevo, com pressão arterial controlada. Relativamente às veias varicosas utiliza meias de compressão elástica grau II. A medicação habitual tem sido renovada de forma regular, com boa tolerabilidade e sem efeitos adversos. Para o controlo dos fatores de risco cardiovasculares são reforçadas as modificações do estilo de vida, nomeadamente a redução do peso, alimentação equilibrada, sem sal e pobre em gorduras e prática de atividade física.
Comentário
O cansaço pode ser uma manifestação de praticamente qualquer doença. É uma das queixas mais referidas, podendo estar presente em um em cada cinco doentes. 8 Contudo, é um termo extremamente vago. Pode estar associado a entidades completamente distintas, quer seja excesso de trabalho físico ou intelectual quer sejam queixas psicológicas, como na depressão ou ansiedade, problemas de sono, anemia, alterações endócrinas, até causas mais raras. 8-9
Muitas vezes os doentes não são capazes de reconhecer a existência de dispneia. Cabe ao médico a exploração da queixa, sendo frequente a relação com o esforço ou posição do corpo. 9
A formulação de hipóteses diagnósticas também se baseia na prevalência e incidência das doenças na comunidade. Nos meses de Inverno, a incidência de infeções respiratórias é alta. Além disto, os problemas de saúde nos cuidados de saúde primários apresentam-se geralmente de forma diferente dos secundários, com doenças frequentemente menos graves.
Antes de ser colocada a hipótese de EP, o doente foi avaliado em três contextos diferentes: consulta aberta na USF, consulta pós-operatória de urologia e num serviço de urgência básico. Pelo conhecimento que tinha do utente e da relação já estabelecida, a médica de família valorizou as recorrências aos serviços e agendou consulta para avaliação passados dois dias.
Os sinais e sintomas da EP são inespecíficos, estando muitas vezes ausentes. Os sinais que se podem objetivar são, por exemplo, a taquicardia e sinais de TVP, como edema unilateral de um membro. 3-5 Relativamente aos sintomas, a dispneia, dor torácica, pré-síncope, síncope ou hemoptises são as apresentações mais frequentes. 3-4
A suspeita clínica é um dos pontos chave na EP. Neste sentido, o conhecimento de fatores predisponentes torna-se fundamental. Não obstante, é de realçar que estes, em alguns casos, não estão presentes. 3
No presente relato de caso, após exploração da queixa principal, percebeu-se que estaria associada mais provavelmente ao sistema cardiorrespiratório. A hipótese de anemia foi descartada no estudo analítico anteriormente solicitado. Ao exame não se objetivou sinais de dificuldade respiratória, nem taquicardia, nem sinais de TVP ou superficial. O doente apresentava um bom estado geral. O único sinal a realçar é a saturação periférica de oxigénio de 92% num doente sem antecedentes de doença pulmonar ou cardíaca de relevo. Contudo, tinha antecedentes de TVP no membro inferior direito em 2012, veias varicosas, obesidade e HTA. Tinha sido submetido a uma intervenção cirúrgica aberta, com internamento de oito dias e repouso no leito há menos de três meses. Pelo juízo clínico surge a suspeita de EP, com referenciação para o serviço de urgência.
Quando questionado sobre a sua perspetiva, o doente referiu: “Recusei a cirurgia às varizes porque tinha um conhecido que foi operado e ficou pior. Depois da cirurgia à próstata comecei a ir abaixo. Ficava mal a caminhar e nem conseguia lavar o cabelo” (sic). A anamnese cuidada e o exame objetivo, mais do que o resultado de exames complementares de diagnóstico, são fundamentais na avaliação de hipóteses diagnósticas menos frequentes no dia-a-dia.
A probabilidade clínica de EP, quer seja avaliada por juízo clínico quer por uma escala de predição validada, dita a abordagem diagnóstica. 3,5 O score de Wells avalia a presença de sinais, sintomas e fatores predisponentes e classifica a suspeita de EP em duas categorias de probabilidade (EP provável > 4 e improvável ≤ 4). 5,10 De acordo com a Tabela 1, no presente relato de caso, o resultado de 6 pontos indica EP provável, assumindo nesta fase não existir um diagnóstico alternativo mais provável que a EP. Desta forma, de acordo com o fluxograma diagnóstico (Figura 1) há indicação para iniciar o estudo com angio-TC pulmonar.
A duração do tratamento da EP varia com o risco de recidiva a longo prazo, de acordo com a presença de fatores de risco reversíveis ou não, neoplásicos ou não. Apesar de neste caso se ter assumido EP provocada, perante dois ou mais episódios de TEV deverá ser considerado prolongar a hipocoagulação indefinidamente, quando pelo menos um deles não está associado a fatores de risco transitório major, como cirurgia ou fratura. 3
A permeabilidade arterial pulmonar é restabelecida na maioria dos casos nos primeiros meses após o episódio agudo, não sendo, portanto, necessário repetir angio-TC nos doentes tratados. 3 Não obstante, a vigilância da sintomatologia é importante, nomeadamente dispneia progressiva e sinais e sintomas de disfunção do ventrículo direito, como edema periférico, toracalgia de esforço, pré-síncope ou síncope, que se relacionam com hipertensão pulmonar tromboembólica crónica. 3
Relativamente à sua evolução, o doente mencionou: “No internamento já me senti melhor da respiração. Já consigo levar as compras do supermercado para casa, e olhe que tenho de subir três andares de escadas porque o prédio não tem elevador. Já me sinto um rapaz novo” (sic).
Este relato de caso pretende realçar o desafio na suspeita clínica de EP, em qualquer nível de cuidados de saúde, mas principalmente nos primários, atendendo à apresentação das doenças nos dois contextos. Sinais e sintomas inespecíficos atrasam o diagnóstico de EP e levantam outras hipóteses diagnósticas, com outros caminhos terapêuticos. O diagnóstico e tratamento adequado diminuem a mortalidade e morbilidade associadas. Para a suspeita clínica, além de uma história clínica detalhada e exame objetivo, a procura ativa de fatores predisponentes é de extrema importância.