Enquadramento
A pré-eclâmpsia é uma patologia multissistémica caracterizada por hipertensão de novo e proteinúria, afetando cerca de 5% das gravidezes em todo o mundo e sendo responsável por 10 a 15% das mortes maternas.1
De acordo com a International Society for the Study of Hypertension in Pregnancy (ISSHP), a pré-eclâmpsia é definida como o início de hipertensão após as vinte semanas de gestação, combinada com proteinúria ou outra disfunção de órgão-alvo (lesão renal aguda, disfunção hepática, alterações neurológicas ou hematológicas) ou disfunção útero-placentária (restrição de crescimento intrauterino [RCIU] ou alterações no fluxo doppler das artérias uterinas). 2
A importância de identificar precocemente esta entidade clínica prende-se com o facto de a mesma poder condicionar elevada morbimortalidade materna e fetal, nomeadamente evolução para eclâmpsia, síndroma HELLP (hemólise, elevação das enzimas hepáticas, diminuição das plaquetas), edema pulmonar, acidente vascular cerebral, insuficiência renal, RCIU, oligohidrâmnios e inclusivamente morte fetal. 3
Nos últimos anos tem surgido crescente evidência de que a utilização de ácido acetilsalicílico (AAS) em baixa dose, em prevenção primária, mostrou diminuição na incidência de pré-eclâmpsia. Este benefício apenas foi demonstrado na pré-eclâmpsia precoce e nas grávidas com risco elevado de pré-eclâmpsia, quando o AAS foi começado antes das dezasseis semanas. 4
Esta evidência tem levado ao crescente desenvolvimento de algoritmos que permitem estimar, no primeiro trimestre, o risco de pré-eclâmpsia (precoce e tardia). Um desses algoritmos é o desenvolvido pela Fetal Medicine Foundation que engloba: antecedentes maternos (inclui patologias prévias e história obstétrica), a pressão arterial média (PAM), o fluxo na artéria uterina (medido por doppler) e o valor do fator de crescimento placentário (PIGF) ou da proteína plasmática A associada à gravidez (PAPP-A) sérico. 5
Nos cuidados de saúde primários em Portugal, e de acordo com o Programa Nacional de Vigilância da Gravidez de Baixo Risco, da Direção-Geral da Saúde (DGS), está preconizada a realização de uma ecografia e de análises durante cada um dos três trimestres de gestação. 6
O Programa Nacional de Vigilância da Gravidez de Baixo Risco da DGS recomenda ainda a medição da pressão arterial em cada consulta durante a gravidez,6 apesar deste procedimento não ser formalmente referido como rastreio de pré-eclâmpsia. Múltiplas instituições de saúde internacionais recomendam esta monitorização frequente como método de rastreio da pré--eclâmpsia. 7-8
É também recomendada a identificação, na primeira consulta concecional, dos fatores de risco de pré-eclâmpsia (os quais podem ser divididos em fatores de alto e médio risco - Tabela 1). 8
Face ao desenvolvimento destes novos algoritmos e à crescente convicção de alguns clínicos do benefício de adição do doppler à ecografia obstétrica do primeiro trimestre, o qual não é comparticipado pelo Serviço Nacional de Saúde (SNS) português, surgiu a necessidade de perceber se a realização do rastreio com doppler isolado ou incluído num algoritmo preditivo tem benefícios na morbimortalidade materna e fetal.
Para responder a esta questão foi adotada uma abordagem de cinco passos (5 As) de acordo com a prática clínica baseada na evidência, que se descreve de seguida. 9
Assim, no primeiro passo, perguntar, foi formulada uma pergunta estruturada através da sigla PICO. No segundo passo foi feita a pesquisa de prova científica, começando pelas plataformas de sumários clínicos. A resposta à pergunta foi encontrada neste nível de evidência (sumários), pelo que se procedeu a uma breve análise da informação encontrada (terceiro passo, avaliar). O quarto passo consistiu na aplicação da evidência ao contexto clínico. No quinto passo (atuar/mudar prática clínica) foi feita uma reflexão sobre o impacto desta evidência no futuro da nossa prática enquanto médicos de família.
Passo 1. A pergunta
Nas mulheres com gravidez de baixo risco (P), o rastreio da pré-eclâmpsia com o doppler da artéria uterina ou com um algoritmo preditivo nele baseado (I), quando comparado com os cuidados habituais (C), tem benefício nos outcomes maternos e fetais (O)? Os outcomes considerados são a morbimortalidade materna (como mortalidade materna e patologias associadas à gravidez), morbimortalidade fetal (nomeadamente mortalidade fetal e perinatal, restrição de crescimento intrauterino, prematuridade, baixo peso ao nascer e internamento em unidade de cuidados intensivos) e complicações associadas ao parto (como taxa de cesarianas e partos pré-termo).
Passo 2. Adquirir
De acordo com a pirâmide dos 5S das fontes de evidência reportada por Haynes e colaboradores, iniciou-se a pesquisa da questão colocada pelo nível de evidência mais sintetizado e pré-avalidado (e por isso de maior qualidade): os sumários clínicos. 10 Assim, foi pesquisada na DynaMed, 4,11-12 UpToDate1 e BMJ Best Practice13 a resposta à questão colocada. Nestas três bases de dados foi pesquisada a secção «Rastreio» e/ou «Prevenção» dentro do tópico Pré-eclâmpsia ou Doenças hipertensivas da gravidez ou Cuidados pré-natais, apresentando-se os resultados encontrados na Tabela 2.
Passo 3. Avaliar
A evidência recolhida através dos sumários é consistente entre as três bases de dados utilizadas e refere que atualmente não está recomendado o rastreio da pré-eclâmpsia através do doppler das artérias uterinas nem com algoritmos preditivos que englobam antecedentes e biomarcadores maternos, doppler das artérias uterinas e outros dados.
A DynaMed refere que a Society of Obstetricians and Gynaecologists of Canada (SOGC) emitiu uma recomendação fraca contra a utilização de biomarcadores ou doppler da circulação uteroplacentar e que a American Congress of Obstetricians and Gynecologists (ACOG) e a United States Preventive Services Task Force (USPSTF) emitiram uma recomendação forte contra a adição de doppler ao rastreio. Estas recomendações basearam-se numa revisão sistemática de cinco ensaios clínicos, cuja qualidade da evidência foi considerada baixa. Esta revisão sistemática comparou a utilização de ecografia em combinação com doppler da artéria umbilical fetal, com ou sem doppler da artéria uterina, face a ecografia isolada em mulheres com gravidez de baixo risco e tinha como outcome (resultado) primário a morte perinatal ou morbilidade neonatal. Esta revisão encontrou cinco ensaios clínicos com 14.185 mulheres, dos quais três correspondiam à comparação ecografia em combinação com doppler da artéria umbilical fetal vs ecografia isolada e dois correspondiam à comparação ecografia em combinação com doppler da artéria umbilical fetal e doppler da artéria uterina vs ecografia isolada. A meta-análise dos ensaios da primeira comparação (ecografia em combinação com doppler da artéria umbilical fetal vs ecografia isolada) não demonstrou diferenças estatisticamente significativas em relação à morte perinatal (risco relativo [RR]=0,48; intervalo de confiança [IC] 95%, 0,21 a 1,97), nem à morbilidade neonatal (RR=0,99; IC95%, 0,06-15,75). A meta-análise dos dois estudos que avaliaram a segunda comparação também não mostrou diferenças estatisticamente significativas na morte perinatal (RR=1,16; IC95%, 0,29 a 4,56), sendo estes resultados pouco precisos devido ao reduzido número de eventos. Não se verificaram também diferenças noutros outcomes, como taxa de cesarianas, parto pré-termo e internamento em unidade de cuidados intensivos neonatais. Não foram medidos potenciais prejuízos da intervenção, como ansiedade materna ou sobrediagnóstico.
O sumário clínico da UpToDate não recomenda a realização de testes de imagem para o rastreio da pré-eclâmpsia, mas não qualifica a força desta recomendação. Esta baseia-se nas guidelines da ACOG, da USPSTF e do National Institute for Health and Care Excellence (NICE), bem como em três revisões sistemáticas. Estas revisões, que avaliaram os testes disponíveis na prática clínica, concluíram que estes não são suficientemente precisos (não têm elevada sensibilidade nem especificidade) para rastreio da população obstétrica geral e que a qualidade metodológica dos estudos foi na generalidade baixa.
A BMJ Best Practice também não recomenda a realização de exames doppler para o rastreio da pré-eclâmpsia. Esta recomendação baseia-se nas guidelines da ACOG, do NICE, da Society of Obstetric Medicine of Australia and New Zealand (SOMANZ) e da Sociedade Internacional de Ultrassonografia em Obstetrícia e Ginecologia (ISUOG).
Apesar destas duas últimas bases de dados (UpToDate e BMJ Best Practice) não referirem a força das recomendações, da análise da prova científica que lhes deu origem (qualidade da evidência baixa) considera-se que estas correspondem a recomendações fracas/condicionais.
Uma vez que a evidência encontrada neste tipo de recursos (sumários de evidência) já se encontra pré-avaliada não foi necessária avaliação adicional da prova científica encontrada, pelo que se procedeu à aplicação dos resultados à prática clínica.
Passo 4. Aplicar
Aplicando a evidência adquirida e analisada à prática clínica diária considera-se que a realização do rastreio de pré-eclâmpsia com doppler ou com um algoritmo preditivo que combina o doppler com dados maternos e com biomarcadores não tem benefício na diminuição da morbimortalidade materna e fetal quando comparado com o rastreio habitual, que inclui somente a monitorização frequente da pressão arterial e ecografias obstétricas de rotina. A taxa de falsos positivos deste teste é bastante elevada, podendo levar a iatrogenia/dano para as grávidas e aumento dos custos associados aos cuidados de saúde.
Nesta fase importa integrar esta evidência com a experiência e contexto do médico e com os valores e preferências das utentes. Tendo em conta que se trata de uma recomendação fraca, algumas grávidas poderão preferir a adição do rastreio por doppler, apesar da recomendação contra, após informadas dos riscos e benefícios potenciais da intervenção. Como médicos de família é importante estarmos preparados para uma decisão partilhada sobre este tema, caso a questão surja da parte da utente. Relativamente à experiência e contexto do médico, este exame não é comparticipado pelo SNS, o que limita a sua utilização e na prática clínica nacional a sua realização. O rastreio da pré-eclâmpsia em mulheres grávidas é realizado através da avaliação de fatores de risco de pré-eclâmpsia (identificados na Tabela 1) e da medição da pressão arterial ao longo da gravidez, pelo que manter a prática habitual parece ser o mais adequado. As mulheres que apresentam um ou mais fatores de risco elevado para pré-eclâmpsia ou dois ou mais fatores de risco intermédio são candidatas a uma vigilância em cuidados de saúde secundários e/ou a medidas profiláticas como a introdução de AAS em baixa dose.14
Passo 5. Atuar/mudar a prática clínica
Neste caso, a evidência encontrada não leva a mudança da prática clínica, uma vez que o doppler não está incluído na ecografia obstétrica do primeiro trimestre contemplada pelo Programa Nacional de Vigilância da Gravidez de Baixo Risco da DGS.
Contudo, salienta-se, na primeira consulta pré-natal, a utilidade do rastreio dos fatores de risco tradicionais de pré-eclâmpsia, 2 porque permite a identificação de mulheres com elevado risco de desenvolvimento da doença e o seu eventual tratamento com AAS em baixa dose durante a gravidez pode reduzir esse risco (Tabela 1). A evidência suporta ainda o rastreio por rotina7-8 da pré-eclâmpsia através da medição da pressão arterial em todas as consultas durante a gravidez, procedimento que é habitualmente realizado nas consultas de saúde materna em cuidados de saúde primários (CSP).
Da análise da evidência atual recolhida conclui-se não haver indicação para recomendar a adição do doppler da artéria uterina à ecografia do primeiro trimestre na vigilância da gravidez de baixo risco nos CSP em Portugal. No entanto, esta é uma recomendação fraca/condicional. Deste modo, são necessários mais estudos, com outcomes orientados para a pessoa (como a morbimortalidade materno-fetal), que considerem os potenciais prejuízos do rastreio como o sobrediagnóstico e a ansiedade materna e permitam retirar conclusões com uma classe de recomendação forte.