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Etnográfica

Print version ISSN 0873-6561

Etnográfica vol.28 no.1 Lisboa Apr. 2024  Epub Apr 18, 2024

https://doi.org/10.4000/etnografica.15409 

Artigo original

Sonhos humildes: cimentar futuros numa região indígena do México

The humble dreams: a concrete future in an indigenous region of Mexico

Raúl H. Contreras Román1  , conceptualización, curación de conteenidos y datos, investigación, metodología, visualización, redacción - borrador original, redacción - revisión y edición
http://orcid.org/0000-0002-4606-8436

1 Centro de Investigaciones Interdisciplinarias en Ciencias y Humanidades, Universidad Nacional Autónoma de México, rcontreras@ceiich.unam.mx,


Resumo

Neste artigo analisam-se os “sonhos humildes” enquanto modelo local de futuro imaginado que emerge de conversas diversas e historicamente situadas na construção de sentidos comuns que possibilitem às pessoas imaginar outras vidas possíveis e comprometer-se com elas no presente. A partir desta ideia, analisa-se uma experiência de mudança social no Valle del Mezquital, uma população indígena que durante o século XX foi descrita pela antropologia como a região indígena mais pobre e socioculturalmente atrasada do México. O autor centra-se numa expressão concreta desses sonhos humildes: a construção da casa de cimento, que desde cedo surgiu como principal aspiração dos trabalhadores que saíram da região para ganhar a vida. A construção da casa de cimento permitiu e permite aprendizagens temporais relacionadas com a articulação entre presente e futuro, bem como formas de pertença a comunidades que permitem que quem “anda longe” continue a fazer parte das suas comunidades.

Palavras-chave: sonhos humildes; migração; casa; cimento; mudança social; futuro

Abstract

This article explores “humble dreams” as a local model of an imagined future, emerging from diverse and historically situated conversations that build common sense and enable people to imagine other possible lives and engage with them in the present. Based on this idea, an experience of social change is explored in the Mezquital Valley, a Mexican indigenous population that, during the 20thcentury, was described by anthropology as the poorest and socioculturally most backward indigenous region of Mexico. The author focuses on a concrete expression of those “humble dreams”: the construction of the cement house, that was installed early on as the main aspiration for the workers who left the region to earn a living. The construction of the cement house allowed and allows temporary learnings related to the link between present and future, as well as forms of belonging to the communities that enable those who “andan lejos” to continue being part of their communities.

Keywords: humble dreams; migration; house; cement; social change; future

Introdução

Na antropologia existe uma longa tradição no estudo dos sonhos.1 Desde há muito, a antropologia do onírico entre povos indígenas do mundo vem mostrando que os sonhos constituem uma forma específica de comunicação, de conhecimento e de orientação cultural. Uma forma de nos relacionarmos com o mundo do existente e o transcendente, onde as fronteiras entre o real e o fantástico são frequentemente porosas. No entanto, a antropologia pouco disse sobre os sonhos diurnos (Bloch 2007), essa capacidade de sonhar acordado que constitui, antes de mais, uma orientação temporal entre o agora e o depois, em que a imaginação parece dilatar-se e a ordem simbólica confere uma certa margem de liberdade à ação.

Neste artigo abordarei uma expressão particular de sonhos diurnos, os sonhos humildes, entendidos como um modelo local de futuro imaginado, que emerge de conversas diversas e historicamente situadas que constroem sentidos comuns e que possibilitam às pessoas imaginar outras vidas possíveis e comprometer-se com elas no presente. Faço-o a partir de uma etnografia centrada nas formas de ganhar a vida, na mudança social e nas orientações de futuro, desenvolvida desde 20132 numa região indígena otomí do centro do México,3 denominada Valle del Mezquital. Esta região, que até meados do século passado foi descrita como a zona de maior pobreza e atraso sociocultural do México (Gamio 1952), experimentou uma mudança social que torna a sua situação atual irreconhecível, quando comparada com as abundantes descrições antropológicas que se fizeram sobre ela e os seus habitantes.

Desde os meus primeiros dias de terreno no Valle del Mezquital, ouvi histórias sobre as formas como a região mudou e sobre como a mobilidade laboral, primeiro para a Cidade do México e depois para os Estados Unidos, é indissociável dos modos como essa mudança é percebida e narrada. Os mezquitalenses descobriram na mobilidade laboral novas formas de articular os seus esforços no presente com as formas de imaginar um melhor futuro e bem-estar. Entre esses futuros imaginados, a construção de uma casa sólida, uma casa de cimento, tornou-se uma aspiração central e, ao mesmo tempo, uma forma de possibilitar a continuidade das formas de pertença às comunidades para quem andava trabalhando longe.4 O processo de construção, temporalmente dilatado pelas próprias dinâmicas de acesso irregular a mercados de trabalho precários, transformou o sonho humilde de construção de uma casa de cimento numa orientação temporal e numa prática de pertença na qual se reconhecem as gerações de trabalhadores que partiram para a Cidade do México, bem como aquelas que atualmente “andam trabalhando” nos Estados Unidos.

O tempo estagnado e a mudança social

Já em pleno século XXI, a antropóloga alemã Maya Nadig revisitou duas vezes a comunidade do Valle del Mezquital na qual, na década de 70 do século passado, desenvolveu a sua investigação. “Percebi”, disse Nadig,

“que desde então ocorreram muitas mudanças na aldeia […]. Ao entrar tive um choque porque não reconheci os caminhos e as casas, que estavam cercadas por altas vedações de cimento ou de metal, de tal forma que não se viam as casas e os jardins. Anteriormente tudo era aberto e acessível: uma paisagem semidesértica com casas rodeadas de árvores, catos e plantas. Hoje andei por caminhos entre muros altos sem saber onde me encontrava. Aos poucos fui encontrando as minhas amigas de então, com as quais tinha falado há tantos anos, e pude entrar nalguns pátios. Vi que metade das casas foram reconstruídas de tal forma que pareciam bungalows californianos, mobilados como outras casas mexicanas. À frente havia um ou dois carros […]. Apercebi-me até que ponto a aldeia tinha mudado e saído da profunda pobreza e isolamento do resto da sociedade mexicana.” (2015: 17-18)

A observação de Nadig coincide com a dos habitantes do Valle del Mezquital, que dizem que a sua região mudou “de repente”, de volada.5 Essa região, outrora descrita como a mais pobre e atrasada do México, apresenta hoje uma face muito distinta daquela observada e documentada pelas e pelos antropólogos do século XX. Tal não significa que a pobreza tenha desaparecido ou que a desigualdade se tenha extinguido. Significa, antes, que a imagem da miséria e do tradicionalismo, captada pela imaginação etnográfica daqueles que desenvolveram as mais notáveis descrições da região no passado, parece distante e anacrónica em relação ao presente.

A mudança social produzida no Valle del Mezquial expressa-se em âmbitos diversos. Cada um desses âmbitos possui histórias particulares, e carecemos de uma análise longitudinal que os considere como um todo. Pelo contrário, o que existe em abundância são as descrições antropológicas do Mezquital e da sua gente ligadas ao atraso sociocultural e ao atavismo, um lugar onde o tempo parou, onde a relutância à mudança era uma das principais caraterísticas de uma cultura indígena fechada ao futuro.6

Esta abundância de descrições está ligada ao facto de o Valle se ter transformado, pelo menos desde a segunda década do século passado, num verdadeiro laboratório para a antropologia mexicana. Desde então, os Otomí foram posicionados como os representantes por excelência da pobreza, do conservadorismo e do atraso. Desde cedo, essas descrições da região e dos seus habitantes permearam as representações coletivas que os mexicanos e, principalmente, os seus intelectuais tinham do Valle e da população que ali vive. No ensaio sobre a mexicanidade mais influente do século passado, o prémio Nobel Octavio Paz (1976 [1950]: 11) não tem dúvidas em salientar que, no México, “não só coexistem distintas raças e línguas, como também vários níveis históricos. Há quem viva antes da história; e outros, como os Otomí […], à margem dela”. É difícil interpretar a que se referia Paz com viver antes da história. Menos difícil é, contudo, compreender os motivos que o levaram a colocar os Otomí à margem da mesma.

Entre esses motivos, a influência das descrições feitas pela antropologia sobre o Mezquital foram centrais. Os Otomí foram descritos como um povo dominado pela apatia, avesso à mudança e ao “progresso”, conservador e com práticas antiquadas e anacrónicas. Muitas destas caraterísticas foram atribuídas aos Otomí pelo próprio pai da antropologia mexicana, Manuel Gamio, e foram reiteradas uma e outra vez nas monografias do século XX. Em 1966, a antropóloga Margarita Nolasco, após elencar algumas das mais destacadas descrições feitas sobre os Otomí durante 40 anos de trabalho etnográfico na região (de 1922 a 1962), concluía: “O grupo Otomí permaneceu social, cultural e economicamente igual”. Pouco tempo antes, esta mesma antropóloga sentenciou: “passarão muitos anos antes que os Otomí deixem de constituir um problema económico” (Nolasco 1963: 184).

Não há espaço aqui para fazer uma apresentação detalhada das formas como este tipo de descrições continuaram a ser feitas ao longo do século XX. No entanto, é possível adiantar que a atenção à estagnação sociocultural ligada à ausência de melhoria económica no Mezquital continuou (e continua) a dominar a forma como o vale é pensado a partir do exterior, como “uma região onde nada acontece e nada se move” (Sarmiento 1991: 195). Como notou López Aguilar (2005: 14), o Valle del Mezquital marginal, marginalizado e leigo da sua história, permeia os mitos que se criam sobre ele.

Míticas ou não, as descrições que apresentam a região como vivendo de um “outro lado do tempo que parou ali” (Martínez Assad 2019: 23) contrastam com a imagem que os mezquitalenses têm da sua própria história recente. Essa história não é a de uma grande transformação, mesmo que ela surpreenda aqueles que, como Nadig, se reencontram com o Valle del Mezquital e contrastam as suas memórias com o presente vivido na região. Esta história é, antes, a de uma mudança profundamente sentida nas localidades, produzida a partir de cenas fragmentadas no tempo, mas afetivamente saturadas na narração do passado. Nesta narrativa, a concretização de pequenas mudanças - quase todas ligadas, de uma forma ou de outra, ao ir e vir migratório - assemelha-se a nós que articulam passado e presente com futuros passados e presentes futuros, tal como o projeto migratório vinculava antes (e agora) a “esperança numa vida melhor” 7 com a “esperança num futuro melhor” (Contreras 2021).

Andar trabalhando

A história recente do Valle del Mezquital pode ser traçada se atentarmos aos sonhos humildes dos seus habitantes que, em busca de uma forma de ganhar a vida, descobriram maneiras de ir articulando o presente com futuros desejados. Até à década de 1950, na mesma altura em que Manuel Gamio (1952) publicava as suas “Consideraciones sobre el problema del Valle del Mezquital” e Antonio Rodríguez (1952) o seu romance La Nube Estéril: Drama del Mezquital,8 os mezquitalenses começavam a migrar para a capital do México, para trabalharem como operários da construção civil numa cidade que crescia sob o impulso do chamado milagre mexicano. Nesses anos, algumas comunidades começavam a experimentar a migração de trabalhadores para os Estados Unidos, alguns deles ligados ao Programa Bracero 9 e outros como espaldas mojadas  10 (Ramsay 1974; Finkler 1974).

Tanto os que partiram para a Cidade do México como os que começaram a migrar para os Estados Unidos fizeram-no segundo formas de mobilidade sazonal, regressando constantemente às suas comunidades. Nessas idas e regressos, estes trabalhadores e as suas famílias que permaneciam começaram a experimentar a mudança das suas comunidades. Ao regressar, os trabalhadores vinham com poupanças, novos consumos, novas aspirações. O cimento que na cidade abria sulcos nas mãos destes trabalhadores, antes só abertos pelas ferramentas camponesas, veio também com eles para construir novas formas de habitar as comunidades. O dinheiro transformou-se no elo que unia a necessidade presente com as aspirações de tempos vindouros. Desde então, o dinheiro procurou mais dinheiro e os trabalhadores procuraram outras e diversas ocupações. O futuro descoberto por esses primeiros trabalhadores migrantes cruzou-se posteriormente com o de gerações que aprenderam a improvisar trajetórias e formas de ganhar a vida que fizeram do “andar trabalhando” fora das comunidades um habitus.

Entre as múltiplas aprendizagens sociais que a experiência da mobilidade laboral trouxe aos trabalhadores do Mezquital, talvez a principal tenha sido o imperativo de “andar trabalhando” longe para tornar possível a vida nas comunidades. No Mezquital, o verbo “andar” costuma ser usado imediatamente antes da referência à localização de uma atividade ou da própria atividade descrita genericamente. “Andar em”, ou o verbo infinitivo “andar” acompanhado do gerúndio - trabalhando, cultivando, visitando, estudando -, expressa duas dimensões sobrepostas da quotidianidade das comunidades mezquitalenses: a constante mobilidade e a experiência do trabalho.

Quando, a partir de meados do século passado, o “andar trabalhando” dos mezquitalenses começou a ultrapassar cada vez com maior intensidade as fronteiras das suas comunidades, tal andar adquiriu outras nuances, dado que já não se relacionava com a natureza acidentada do território, nem com as temporalidades caraterísticas das atividades camponesas. Em primeiro lugar, o “andar trabalhando” desvinculou-se do saber fazer tradicional e integrou novas práticas no repertório de formas de ganhar a vida dos mezquitalenses. E, em segundo lugar, tornou a mobilidade laboral para o exterior das comunidades um imperativo para a reprodução económica local. Desde então, o “andar trabalhando” vinculou-se a uma dupla precariedade: a primeira, referente à economia camponesa local para sustentar a reprodução social; e a segunda, a dos mercados de trabalhos urbanos, para absorver definitivamente, ou pelo menos de forma regular, a força de trabalho mezquitalense.

Contudo, a diversificação das formas de ganhar a vida não extinguiu a precariedade, tendo sido, em muitos casos, uma consequência da mesma. Desde finais do século XX, a pluriatividade dos trabalhadores rurais mexicanos constituiu-se como uma estratégia defensiva das famílias rurais mais pobres, particularmente as camponesas, devido à impossibilidade de concretizar a sua reprodução económica através de uma única atividade (Carton 2010). Daí que o “andar trabalhando” adquira relevância neste contexto, enquanto metáfora para a precarização laboral e a constante mobilidade laboral dos trabalhadores do Valle del Mezquital, não apenas no espaço, mas também entre o trabalho assalariado fora da comunidade e a vida sem salário no seio desta.

A partir do momento em que aqueles que são hoje anciãos fizeram da transumância por um salário uma das suas práticas para ganhar a vida, as trajetórias laborais dos trabalhadores mezquitalenses têm sido marcadas pelo ir e vir entre o campo e a cidade. Ou, dito de outro modo, pelo emprego temporalmente desigual dos seus esforços e energias no trabalho assalariado fora das comunidades e no trabalho reprodutivo, de recolha e cultivo de alimentos e de transformação primária de recursos naturais nas comunidades. Nas últimas décadas do século passado, esse ir e vir foi atravessado por dois fenómenos que aprofundaram a desigualdade temporal entre o estar na comunidade e o “andar” fora dela. Em primeiro lugar, a deterioração das oportunidades laborais na Cidade do México, principal destino da mão-de-obra mezquitalense migrante desde os anos 50; e, em segundo lugar, a massificação do fenómeno migratório em direção aos Estados Unidos e a subsequente quebra da circularidade migratória para este país.

No início do século XXI, o “andar trabalhando” dos habitantes do Mezquital é uma metáfora que nos permite compreender as suas trajetórias laborais ligadas às transformações económicas locais e globais no quadro do neoliberalismo. Esta metáfora revela o aprofundamento da precariedade anteriormente descrita, na qual se situam as margens de ação dos trabalhadores da comunidade na implementação das suas estratégias para ganhar a vida. “Andar trabalhado” surge como uma metáfora da precariedade do trabalho e da mobilidade enquanto imperativo para aceder a esse trabalho. Mas, da mesma forma, este “andar trabalhando” e as memórias das trajetórias laborais ligadas à mobilidade, bem como a memória relativa aos projetos de melhoria que os trabalhadores mezquitalenses imaginaram a partir dela, permite abordar os modos situados como essa precariedade se deparou com a continuidade e transformação da vida.

Criar raízes

Noutros contextos, a dificuldade ao nível da reprodução económica nas localidades rurais e o imperativo de mobilidade dos seus habitantes resultou no esvaziamento da ruralidade. No Mezquital, esta não é uma realidade generalizada. Noutro lugar, descrevi (Contreras 2022) algumas trajetórias laborais de mezquitalenses que saíram das suas comunidades para trabalhar na Cidade do México desde meados do século passado, bem como de outros que fizeram o mesmo em direção aos Estados Unidos, a partir da década final desse século. Com estas descrições, bem como com as que emergem das memórias locais sobre a mudança social e o seu vínculo com noções situadas de bem-estar, procurei demonstrar que uma das aprendizagens fundamentais dos habitantes do Mezquital, central para entender a reprodução das suas comunidades, manifesta-se na emergência de uma espécie de solidariedade sobre a qual assentou a reprodução social. Ao mesmo tempo, essas aprendizagens impulsionaram a transformação radical nas formas tradicionais de entender o bem-estar, a escassez, a dignidade, e tudo aquilo que a antropologia associou à ideia de modos de vida e que, desde cedo, Robert Redfield (1963 [1953]) relacionou com a noção de vida boa.

Esta solidariedade assentava, antes de mais, na forma como o esforço presente de quem “andava trabalhando” longe estava ligado à reprodução da vida dos seus próximos, que permaneciam nas comunidades de origem. Este vínculo não demorou a incorporar aprendizagens temporais que corresponderam de forma direta à temporalidade do dinheiro. O futuro, sob noções de poupança, continha novas formas de aspiração, de imaginação do que viria, ligadas a formas emergentes de pensar a vida boa. Deste modo, o esforço de quem andava longe e de quem permanecera na comunidade interligava-se em sonhos comuns, em projetos comuns que visavam a concretização desses sonhos. A emergente mudança do padrão construtivo das vivendas no Valle del Mezquital constitui, como tentarei mostrar mais à frente, uma expressão material de tal concretização.

A referência ao “andar” nas formas de falar quotidianas nas comunidades indígenas do Valle del Mequital é fruto de um condicionamento social permanente: o da quase obrigatoriedade da mobilidade como base da reprodução social comunitária. Esse “andar”, enquanto capacidade de resposta à urgência, tornou-se habitus porque foi aprendido e transmitido enquanto disposição duradoura e incorporada nos corpos daqueles que têm de mover o seu corpo e o seu tempo de vida fora da comunidade para tornar possível a sua vida e a dos seus próximos na comunidade. Aprendeu-se a “andar longe”, a “pertencer desde longe” (May 2017) e a gerir a ausência daqueles que andam longe. Nessa gestão, foi-se construindo um vínculo com o tempo futuro projetado como possível nas noções locais emergentes de vida boa.

O imperativo da mobilidade exigiu (e exige) a improvisação e respostas espontâneas, para reinventar trajetórias e ofícios num contexto de integração precária em mercados laborais igualmente precários. Mas, ao mesmo tempo, essa exigência requereu (e requer) um esforço permanente para continuar a articular o “andar longe” com a pertença e um projeto de vida na comunidade. Um projeto que, desde meados do século passado, começou a ser construído em fragmentos de esperança, perante a rutura patente da ausência e a dilatação das esperas. É este projeto que, no passado e atualmente, proporciona alguma segurança ontológica ao “andar trabalhando” relativamente perto ou extremamente longe de casa. É esse projeto situado que confronta a desidentificação e permite o enraizamento material e imaginário de quem anda longe, mesmo quando o tempo indeterminado da migração internacional contemporânea parece favorecer a diáspora.

Nos projetos de melhoria e de vida boa que os mezquitalenses imaginaram como objetivo do seu “andar trabalhando”, as comunidades aparecem em primeiro plano do horizonte imaginado. Pertencer desde longe significa, então, participar permanentemente nas dinâmicas comunitárias e vincular projetos migratórios com projetos nas comunidades que não só favoreçam o futuro regresso, mas também a existência do ausente, daquele que anda longe, no presente das comunidades. Pertencer desde longe, mesmo na lógica de comunidades transnacionais, é uma forma de expandir as próprias raízes e de as vincular não só ao território, mas também ao próprio tempo. Nesse pertencer desde longe que os mezquitalenses aprenderam com o seu “andar trabalhando”, constroem-se pertenças ontológicas (Bennett 2015) ligadas à manutenção de obrigações e compromissos mútuos para cuidar do passado e do futuro dos lugares e daqueles que os habitam. Porque, tal como defendeu Simone Weil (1996 [1949]: 51), para uma pessoa em particular, criar raízes - enquanto necessidade primordial da alma humana - é resultado “da sua participação real, ativa e natural na existência de uma coletividade que conserva vivos determinados tesouros do passado e determinados pressentimentos de futuro”.

Um sonho cimentado

Sair das comunidades para ganhar a vida e, ao mesmo tempo, permitir com essa saída a própria vida nas comunidades, implicou, desde o início, essa participação real e ativa na coletividade a que Weil se refere. Das muitas práticas que permitiram essa participação, a da construção da casa de cimento é, talvez, uma das mais expressivas.

Na década de 70, Galinier (1977: 110-111) relatava que, entre os Otomí, prevalecia a regra de viver “segundo um modelo de pobreza e de respeito pela tradição”, o que fazia com que mesmo os indígenas mais abastados tendessem a “dissimular o seu património atrás de muros de casas mais modestas”. “Viver como os ricos”, ou incorporar formas de construção de vivendas com materiais exógenos e “modernos”, era o que faziam os mestiços das aldeias, precisamente para se diferenciarem dos Otomí. No entanto, várias etnografias das décadas de 50, 60 e 70 do século passado registaram a transformação progressiva das casas no Mezquital (Padelford 1969; Tranfo 1990 [1974]; Medina e Quezada 1975; Ramsay 1974; Nolasco 1963).

Embora em algumas dessas etnografias estas mudanças tenham sido associadas à intervenção de instituições governamentais indigenistas, estas mudanças devem-se, principalmente, à influência que a migração temporária para a Cidade do México teve na capacidade de poupança e na aspiração por formas de construir a habitação distanciadas do modelo tradicional. Talvez por esse motivo, a casa vernácula, feita com materiais da região, foi dando lugar a paralelepípedos de tijolo ou blocos de cimento, com uma ou nenhuma janela, com portas de ferro e, algumas, com telhados de duas águas cobertos com chapas de zinco ou amianto.

Até finais da década de 40, Manuel Gamio tinha encarregado um dos seus discípulos, Raúl Guerrero - um jovem antropólogo oriundo do Mezquital - de estudar diversos aspetos da cultura e do folclore dos Otomí. Ao referir-se às formas de construção das moradias, na sua monografia publicada vários anos depois, Guerrero (1983: 219) relatava ter observado entre os jovens Otomí “um novo espírito de elevação material” que “servia de exemplo aos seus vizinhos”, que observavam nestes a busca de maior bem-estar e segurança na construção das casas de cimento. Um professor rural, recordando o tempo em que começaram a aparecer casas de cimento nas comunidades, dizia-me que os primeiros a construir as suas casas assim iniciaram uma espécie de “contágio por viver com um pouco mais de comodidade e economia” entre os seus vizinhos. Foi talvez isso que o antropólogo italiano Luigi Tranfo registou, ao dizer que, em 1972, “a transformação [do Valle] foi muito marcante” (1990 [1974]: 112). Nesse ano, continua Tranfo, “as casas [de cimento] multiplicavam-se pelos montes” (ibidem) das comunidades indígenas do Mezquital.

No passado, a habitação vernacular na região era construída em poucos dias de trabalho e, como reportou Soustelle (1993 [1937]: 71) na década de 1930, não envolvia o pagamento a especialistas, sendo geralmente feita pelo pai da família, ajudado ocasionalmente por amigos ou irmãos. As novas casas de cimento que, desde meados do século passado, começaram a proliferar, exigiam, pelo contrário, o investimento na aquisição de materiais vindos de fora das comunidades e o pagamento a especialistas (como pedreiros) para a sua construção. Consequentemente, a par da modificação no padrão de construção da casa, alterou-se também a temporalidade do processo de construção. Como observou Tranfo (1990 [1974]: 112), “a construção da casa de tijolo ou de bloco de cimento, que podia ser concluída em poucos dias, às vezes durava anos porque os tijolos são comprados quando há dinheiro, pouco a pouco”. Fora das cabanas humildes do Mezquital, era possível ver pilhas de “tijolos amontoados, histórias de poupanças dolorosas”, dizia o italiano. Kaja Finkler assinalou que, entre os trabalhadores Otomí migrantes para os Estados Unidos e a Cidade do México, a construção de casas nas suas comunidades era a primeira prioridade. Tal como Tranfo, Finkler referiu-se à duração do processo de construção. “Muitas das casas construídas com paredes de cimento”, dizia a antropóloga, “são acabadas depois de várias temporadas” (1974: 195).

A ligação entre a migração e a construção da casa de cimento foi precoce no Valle del Mezquital. O acesso ao dinheiro que permitia a compra de materiais de construção estava sempre fora das comunidades. “Temos dinheiro se formos para [Cidade do] México [ou] para os Estados Unidos”, respondeu uma jovem mezquitalense a Benítez (1972: 261) nos finais da década de 1960. No entanto, como descreveu o próprio investigador e como referi acima, os trabalhos a que os migrantes tinham acesso eram sempre precários e sazonais. Talvez essa insegurança no acesso ao trabalho tenha favorecido, junto daqueles que foram trabalhar para fora do Mezquital, práticas de pertença destinadas a manter a ligação com as suas comunidades e a imaginar um retorno permanente a estas. Tal foi documentado por Godínez e Martín (1990: 270), ao assinalarem: “como o trabalho na cidade não é seguro, ele [o mesquitalenze migrante] mantém uma presença pequena mas estável na sua aldeia e pode regressar”.

Embora essas pequenas presenças se manifestassem em múltiplas práticas, muitas delas ligadas a formas de cidadania étnica há muito estabelecidas na região, é de assinalar o lugar que o projeto de construção da casa ocupou nos modos íntimos como os mezquitalenses foram configurando práticas de pertença dilatadas no tempo e resistentes às vicissitudes da sua relação precária com os mercados laborais fora da região. Os trabalhadores que saíram do Mezquital, no seu ziguezaguear entre o campo e a cidade, descobriram na construção da casa uma possibilidade de articular o presente de esforço ao futuro imaginado de vida boa. Uma forma subtil e concreta de enfrentar o desenraizamento. Em meados da década de 1970, na sua investigação sobre o trabalho à jorna no Mezquital, Hubert Carton (1982: 87-88) escrevia:

“É incrível constatar como o facto de ter […] uma pequena casa onde morar, por mais pobre que seja, é determinante para evitar que uma pessoa saia […], que migre permanentemente. É claro que a migração do campo para a cidade ocorre por necessidade, mas queremos destacar que, nas condições de pobreza dos trabalhadores e diante da dificuldade em encontrar um trabalho seguro na cidade, […] a pequena casa representa a única segurança da qual o trabalhador não se desprende facilmente.”

Quando os migrantes internacionais da viragem do século começaram a imaginar o seu futuro regresso à comunidade através da construção de uma casa ao estilo californiano - facto que surpreendeu Maya Nadig no seu regresso ao Mezquital -, fizeram-no, de alguma forma, inspirados por aqueles que anteriormente vincularam o seu presente de “andar longe” à projeção de um futuro alternativo, imaginado como melhoria das condições materiais de existência na região. Essa projeção teve (e continua a ter) na construção de uma casa a sua expressão mais íntima e ansiada. A casa de cimento tornou-se a manifestação material do compromisso de quem está longe em continuar a fazer parte das suas comunidades e da promessa de um dia voltar. O seu processo construtivo, dilatado no tempo, continua a ligar passados e presentes ao sonho humilde de “viver com um pouquinho mais de comodidade e economia”.

Sonhos humildes

Perante os grandes temas que concentram as discussões contemporâneas sobre o fenómeno migratório entre o México e os Estados Unidos, é muitas vezes esquecido que, tanto ao nível macroeconómico como ao nível de amplas economias regionais, sobretudo rurais, a migração continua a constituir uma dinâmica fundamental. Tal sucede porque quem está “do outro lado”, quase sempre como migrante indocumentado, continua a fazer do seu esforço um compromisso com os seus, com a sua terra natal e com o seu regresso imaginado. Deste modo, através da migração, agora transnacional, continuam a ser tecidos sonhos humildes: de “uma vida melhor”, de formas locais de pensar o bem-estar, de construir uma vida boa, e, muito antes disso, de tornar a vida possível em locais onde, durante décadas, ela parecia negada. São esses sonhos humildes que dão significado temporal às narrativas locais de mudança social em muitas comunidades camponesas e indígenas do México. Sonhos em torno dos quais se configuram e cimentam modelos locais de futuro imaginado, emergentes de conversas diversas e historicamente situadas que constroem sentidos comuns e que possibilitam às pessoas imaginar outras vidas possíveis e envolver-se na prática presente.

Os sonhos humildes orientam práticas de compromisso com futuros intimamente desejados que permitem articular narrativamente o tempo vivido. Retrospetivamente, os sonhos humildes permitem associar o esforço presente com o passado que moldou as práticas atuais, bem como com aprendizagens e fragmentos de conquistas alcançadas que dão valor e sentido situado a esses esforços. Isto porque, seguindo a discussão de Bloch (2007: 26) em torno dos sonhos diurnos, os sonhos humildes estão ligados a esse desejo de ultrapassar, com a inquietação da mudança que não permite contentar-se com as dificuldades existentes. Esses sonhos, adianta o filósofo, têm no seu âmago a esperança e são transmissíveis. Assim, embora cronopoieticamente orientados para o futuro através da esperança (Raffaetà 2015), os sonhos humildes também permitem a avaliação retrospetiva e a construção de histórias locais nas quais as experiências de luta, esforços e conquistas ligadas a esses sonhos adquirem papel central na articulação narrativa.

Projetivamente, essas histórias fortalecem a capacidade de aspirar, entendida aqui como a capacidade de criar justificações, metáforas e novas narrativas sobre o futuro enquanto abertura afirmativa do possível (Appadurai 2015). Sobre essas histórias assentam modos de compromisso com um futuro imaginado (Mandich 2019) associado a um objetivo concreto ou a um conjunto de esperanças representacionais, relacionadas com aquelas que se dirigem a um futuro específico e esperado (Cook e Cuervo 2019). Ao associar a imaginação de futuros possíveis com práticas concretas e esperanças representacionais, os sonhos humildes cimentam futuros, estabelecendo uma base sobre a qual construir e começar a concretizar o porvir imaginado, em particular aquele possível de fazer a partir de baixo, de fazer à mão, com as próprias mãos.

Como mostrei aqui para o caso das pessoas do Valle del Mezquital, trata-se de sonhos aprendidos em mobilidade permanente, na qual assentou a reprodução social. Isto porque esse “andar fora” (andar fuera) das comunidades foi acompanhado de formas de pertencer desde longe (May 2017), nas quais os que “andam fora trabalhando” relacionam o seu esforço de melhoria das condições de vida no seu lugar de origem com aqueles que permanecem ali. As esperanças que os sonhos humildes mobilizam surgem, então, do compromisso, do cuidado em relação aos seus lugares, ao seu passado e ao seu futuro, do enraizamento nesses lugares e nas práticas sociais que neles se desenvolvem. Deste modo, a esperança que fundamenta os sonhos humildes é cronopoiética, e, por sua vez, geopoiética, no sentido de estar situada num lugar, no seu passado e no seu devir (Bennett 2015; Raffaetà 2015).

No Valle del Mezquital, a construção de uma casa é (e foi) expressão dessas esperanças representacionais que ajudam os mezquitalenses a alinhavar imaginariamente o tempo presente com o seu futuro, assim como o “andar longe” (andar lejos) com a pertença à terra natal. Avançar na concretização desse sonho humilde, começar ou continuar a construir a casa, fornece o presente de fragmentos concretizados de esperanças representacionais que continuam a conferir sentidos aos esforços presentes e a ativar compromissos práticos com representações afirmativas do futuro do seu lugar de origem e do regresso imaginado.

Deste modo, o cimento, material com que se começaram a construir as casas desde que a migração se tornou frequente no Mezquital, adquire - material e simbolicamente - uma dupla dimensão. Por um lado, como acontece com o cimento sobre o qual se instalam as novas casas, consolida as bases do sonho humilde que começará a concretizar-se no tempo longo de “andar trabalhando” longe. Por outro, enquanto argamassa que une tijolo a tijolo, une também o tempo dos primeiros trabalhadores que migraram com os que hoje migram, imaginando o mesmo sonho humilde: a casa de cimento.

Provavelmente em todo os cantos do planeta, para uma família da classe trabalhadora e de todos os setores populares, a construção de uma casa é um projeto dilatado no tempo. Um compromisso manifesto com o desejo de melhoria das condições materiais de existência, uma esperança representacional sustentada ao longo do tempo, a partir da qual se articulam narrativas íntimas de histórias familiares de esforço. Nesse sentido, não é de estranhar o orgulho com que alinhavam as suas memórias aqueles que conseguiram, ainda que parcialmente, materializar esse anseio. Narrativas como estas foram escutadas por Godinho, Gonçalves e Vicente (2020) entre mulheres do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) no Ceará, Brasil. Quando estas mulheres se referiam à conquista da construção das suas casas de cimento, faziam-no com a satisfação de ter concretizado uma parte importante da sua luta, dando simultaneamente uma visão afirmativa do seu presente e do seu futuro, em relação a um passado de precariedade. A casa de cimento, estável, de tijolo, que lhes trouxe conforto e segurança, aparece como uma conquista alcançada perante um passado superado de casas de palha. Essa conquista íntima, familiar, não traduz a conquista do grande sonho do movimento, a reforma agrária do Brasil ou, mais amplamente, a transformação política e económica do país. No entanto, assume-se como a concretização de um fragmento de sentido que justifica a luta do movimento e o compromisso das mulheres do MST neste movimento: a melhoria das condições materiais de vida, um passar melhor (mejor pasar) no presente a partir do qual construir um futuro melhor.

A construção da casa surge, então, como um sonho materializado, uma utopia concreta no quadro da grande utopia que orienta a luta do MST. Enquanto perceção de melhoria já vivida, a casa de cimento, fruto do esforço dessas mulheres, presentifica o futuro possível enunciado pelo MST e dá sentido ao compromisso das mulheres com esse futuro de transformação. Nos testemunhos recolhidos por Godinho, Gonçalves e Vicente, a concretização desse sonho humilde da casa de cimento surge como fragmento concretizado de um sonho maior que, graças a este e a outros fragmentos de sonhos concretizados, dá sentido ao presente de esforço e situa esse sonho maior como possível e viável. Isto porque, conforme defende Louçã (2021: 30), as utopias concretas ou as utopias materializadas no presente são formas de reafirmar que o futuro e a esperança são possíveis.

Conjugar sonhos

O anseio pela construção da casa de cimento pode ser entendido como moldado pela indústria do bem-estar, pela ideologia neoliberal, pela sua promessa de felicidade e o seu otimismo cruel (Ahmed 2019; Berlant 2020; Hage 2003). No entanto, ao mesmo tempo, esse anseio pode ser entendido se ouvirmos as narrativas daqueles que fizeram essa mudança a partir de baixo, que alimentaram as suas ligações com os territórios a partir de sonhos comuns de melhoria das condições de existência, e que deram sentido às suas práticas possíveis face às duras condições do seu presente.

É verdade que o capitalismo neoliberal normalizou e convencionou noções de bem-estar e de vida boa que se difundiram globalmente. No entanto, embora estas noções exerçam uma grande influência nas aspirações dos habitantes de comunidades rurais como o Vale del Mezquital, não é menos verdade que, com todas as suas contradições, na procura desse bem-estar, bem como no uso de materialidades próprias da modernidade capitalista, como o cimento, expressam-se agendas, projetos e formas de antecipação locais que reivindicam modernidades próprias e dotam de outros significados a própria conceção de bem-estar (Menon 2023). Isto porque a procura de melhoria nas condições de vida adquire força a partir de configurações de valor e de sentido que são locais e variáveis (Appadurai 2015: 382) e que têm uma duração histórica anterior à globalização.

A continuidade destas configurações de valor e de sentido, a sua preponderância nas formas como as pessoas vivem o seu tempo, evocam as suas memórias e orientam o seu futuro deveriam ser do interesse de uma antropologia preocupada com as paisagens étnicas contemporâneas e o tempo futuro. Se a antropologia é a ciência que reconhece as pessoas como fazedoras e contadoras de histórias, então as histórias da mudança, de formas situadas de pensar e de fazer o bem-estar, da procura por uma vida boa, não deveriam estar ausentes da agenda antropológica. Ainda que nessa busca permanente por viver melhor se destruam mundos tradicionais que, aqueles que entre nós escolheram esta disciplina, tanto admiramos. Quando estes mundos tradicionais são sinónimo da precariedade premente que impede as pessoas de imaginarem vidas alternativas, devemos lembrarmo-nos de que “tradição não é aqui uma palavra que sirva para encher as vidas, porque o futuro não se conjuga em tempos pretéritos” (Godinho, Gonçalves e Vicente 2020: 23). Mas, da mesma forma, devemos ter presente que a etnografia e o conjunto de ferramentas que colocamos em prática na prossecução de uma agenda crítica (Ortner 2019) não nos servem apenas para nos concentrarmos nas zonas de tradição (Comaroff e Comaroff 1992) tão exploradas na nossa disciplina, mas também nos fornecem amplas possibilidades para investigar aquelas zonas de sonhos (Cross 2014) onde convergem diversas escalas de futuros imaginados, de práticas possíveis (Godinho 2017) e de futuros vividos (Adam 2023; Contreras, Santos y Olivos 2023).

Não se trata de optar por uma antropologia do “escuro” (dark anthropology) ou do “luminoso” (Ortner 2016), como se as condições urgentes das pessoas que e com quem estudamos nos oferecessem essa opção. Uma teoria afirmativa do futuro e das possibilidades da sua construção no presente (Bergman e Montgomery 2023) não deriva de uma dissociação das correntes frias e quentes do pensamento crítico (Bloch 1993; Godinho 2023). Pelo contrário, é aquela que, nas contradições do presente, observa possibilidades, sonhos humildes construídos a partir de baixo, em práticas concretas e etnografáveis. É nestes sonhos de mudança e nos seus possíveis cruzamentos com as grandes razões da transformação que a conquista do pão começa a combinar-se harmoniosamente com a conquista do céu.

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1Este artigo foi escrito no âmbito do projeto “Migración y futuro: ideal de retorno, modos de pertenencia y orientaciones temporales en la migración mezquitalense a Estados Unidos”, financiado pelo Programa de Apoio a Projetos de Pesquisa e Inovação Tecnológica da UNAM (PAPIIT, código IA301522).

2Entre esse ano e a redação deste artigo desenvolveram-se diversas estadias de terreno em comunidades dos municípios de Cardonal, Ixmiquilpan, Chilcuautla e Alfajayucan (todos eles reconhecidos como o coração do Mezquital, bem como em locais de acolhimento de migrantes mezquitalenses nos Estados Unidos. O trabalho etnográfico mais intenso desenvolveu-se na comunidade de El Boxo (Cardonal).

3O povo otomí é considerado um dos sete maiores povos indígenas do México. Os seus membros estão distribuídos por vários estados do país, sendo o Vale do Mezquital, no estado de Hidalgo, o local onde se encontra a maioria da sua população.

4N. T.: O autor utiliza a expressão andaban trabajando ou andar trabajando para sublinhar o uso do gerúndio nos modos de falar locais, a que se refere mais adiante no artigo. Em português, uma expressão próxima da utilizada no texto poderia ser “andar a trabalhar”.

5De volada é uma expressão idiomática utilizada em algumas regiões do México para expressar rapidez, imediatismo ou aceleração de um processo, ação ou experiência.

6Num extenso e detalhado estudo regional realizado pelo Centro Operacional de Vivienda y Poblamiento, realizado na região no final da década de 1960, resumia-se a falta de vocação para a mudança dos Otomí, ao assinalar: “Uma cultura secularmente oprimida como a dos Otomí, que viveu numa insegurança permanente, passiva e necessariamente defensiva, é uma cultura cujas capacidades autopropulsoras estão adormecidas, uma cultura alienada que não se projeta no futuro” (COPEVI 1970: 115).

7N. T.: No original, o autor utiliza a frase esperanza por un mejor pasar, referindo uma ideia frequentemente utilizada pelos seus entrevistados para relacionar a melhoria das condições de vida no presente e no curto prazo.

8Antonio Rodríguez foi o nome pelo qual Francisco de Paula Oliveira Júnior, conhecido como “Pavel”, dirigente do Partido Comunista Português na década de 1930, viveu seu exílio ou, como costumava dizer, sua segunda vida no México. Desde sua chegada ao país latino-americano em 1939, desenvolveu uma carreira como intelectual, jornalista, crítico de arte e fotojornalista. La Nube Estéril: Drama del Mezquital, seu primeiro romance, é reconhecido como uma das principais obras da narrativa indigenista mexicana.

9Reconhece-se como Programa Bracero um conjunto de leis e acordos diplomáticos entre os Estados Unidos e o México, implementados entre 1942 e 1964. Estes promoviam a migração “ordenada” de trabalhadores mexicanos, destinados principalmente a realizar tarefas agrícolas nos Estados Unidos.

10Espaldas mojadas é a tradução de Wetback, termo pejorativo com que se designava na década de 1950 os migrantes mexicanos ilegais que atravessavam a fronteira para os Estados Unidos pelo Río Bravo.

Recebido: 02 de Maio de 2023; Revisado: 28 de Agosto de 2023; Aceito: 22 de Setembro de 2023

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