Introdução
Desde os primeiros casos de COVID-19 na China em 2019, já houve milhões de infetados com um número crescente de mortes em todo o mundo.1
Entre as manifestações da COVID-19, encontramos a síndrome inflamatória multissistémica (MIS), inicialmente descrito em crianças (MIS-C)2,3havendo poucos casos des-critos em adultos.4-6
Caso Clínico
Mulher de 22 anos, previamente saudável, recorre ao serviço de urgência (SU) por quadro de tosse seca, mialgias, astenia, anosmia, ageusia e odinofagia com 3 dias de evolução. Concomitantemente apresentava um exantema maculopapular não pruriginoso, inicialmente nas coxas, com progressão para o tronco e membros superiores, pou-pando a face, palmas e plantas das mãos e pés.
Foi avaliada no SU, apresentando-se normotensa, taquicardica, com temperatura timpânica de 39,3ºC, SpO2 96% (FiO2 21%), sem alterações de relevo ao exame objetivo, à exceção das alterações cutâneas descritas.
Analiticamente destacava-se anemia normocítica nor-mocrómica, trombocitopenia ligeira, hiponatremia, aumento das transaminases hepáticas e PCR aumentada (Tabela 1).
A radiografia do tórax não mostrava alterações parenquimatosas (Fig. 1) e a PCR para SARS-CoV-2 foi positiva.
Admitida infeção por SARS-CoV-2 ligeira com possível sobreinfeção bacteriana. Teve alta com medidas de isolamento preconizadas pela Direção Geral da Saúde e medicada com amoxicilina e ácido clavulânico.
Por agravamento da sintomatologia, cansaço para pequenos esforços, intolerância alimentar e diarreia, retornou ao SU dois dias depois.
Ao exame objetivo encontrava-se com TA 74/45 mmHg, FC 109 bpm, FR 18 cpm com SpO2 de 97% em ar ambiente, mantendo o exantema já descrito anteriormente, sem outras alterações de relevo.
Analiticamente com leucocitose, neutrofilia, linfopenia, anemia normocítica normocrómica, trombocitopenia, hiponatremia, aumento das transaminases, PCT 15,65 ng/mL e PCR 16,45 mg/dL (Tabela 1).
Gasimetricamente em ar ambiente apresentava pH 7,46, pO2 88 mmHg, pCO2 33 mmHg (relação paO2/FiO2 419), hipocaliémia (3,0 mEq/L).
A radiografia do tórax mostrava um infiltrado intersticial difuso e aumento da silhueta cardíaca (Fig. 1).
Admitida em internamento por infeção SARS-CoV-2 com possível afetação cutânea, provável sobreinfeção bacteriana, hiponatremia e hipocaliemia secundárias a vómitos e diarreia. Manteve antibioterapia instituída previamente.
Foi observada por Dermatologia com descrição de dermatose simétrica, polimorfa, constituída por manchas e placas eritemato-violáceas, não descamativas, de configuração em alvo, localizadas no tronco, coxas e dorso das mãos, mucosas aparentemente poupadas (Fig. 2). Impressão diagnóstica de eritema multiforme de provável etiologia vírica. Foram excluídas outras possíveis etiologias, como infeção por Mycoplasma, hepatites víricas, VIH, EBV e CMV.
Em dia 7 de doença, apresentou agravamento clínico, com taquipneia (FR 30 cpm), TA de 86/50 mmHg e toracalgia com insuficiência respiratória tipo 1 de novo (relação paO2/FiO2 229).
Analiticamente com parâmetros inflamatórios em perfil descendente, marcadores de necrose miocárdica negativos, anemia sem agravamento, NT-pro-BNP 11140 ng/dL. ECG sem alterações sugestivas de isquemia miocárdica.
Realizou tomografia computorizada (TC) toraco-abdomino-pélvica com contraste que não apresentava imagens sugestivas de infiltrados ou de consolidações ao nível do parênquima pulmonar, nem sinais de tromboembolismo; moderado derrame pleural direito, fígado de aspeto marmoreado, com edema periportal, sinais de hipoperfusão renal, esplénica e hepática e moderada ascite (Fig. 3).
Realizou ecocardiograma transtorácico, que mostrou disfunção sistólica moderada por hipocontratilidade global (FEVE 25%-30%), ventrículo direito com diminuição da função sistólica longitudinal, insuficiência mitral moderada e insuficiência tricúspide grave.
Assim, na ausência de evidência de alterações pulmonares condizentes com afeção pulmonar por COVID-19, presumiu-se insuficiência respiratória tipo 1 em relação com insuficiência cardíaca aguda com disfunção biventricular e consequente hipoperfusão multiorgânica. Transferida para a UCIC para monitorização e avaliação da evolução da função cardíaca.
Admitiu-se MIS-A, com envolvimento cutâneo, gastrointestinal e cardíaco. Iniciou Imunoglobulina humana 1 g/kg, endovenosa, dividida em duas doses, metilprednisolona 1 mg/kg bid e terapêutica diurética.
Ao terceiro dia após admissão na UCIC, ecocardiograma TT sumário mostrou ventrículo esquerdo com função sistólica global melhorada (FEVE 48%), boa função do ventrículo direito e insuficiência tricúspide e mitral ligeira a moderada. Boa evolução clínica e sintomática, com possibilidade de redução progressiva de oxigénio, terapêutica diurética e de corticoterapia.
Analiticamente parâmetros inflamatórios em decrescendo, transaminases hepáticas e NT-pro-BNP com tendência a normalização (Tabela 1).
À data de alta, em D16 de doença, apresentava melhoria sintomática franca, com lesões cutâneas hiperpigmentadas vestigiais na face interna das coxas e região torácica, quase impercetíveis (Fig. 4). Cumpriu esquema de desmame de corticoterapia no domicílio.
Reavaliada em consulta externa, referindo melhoria clínica significativa, sem sintomas de novo desde a alta.
Realizou ecocardiograma transtorácico após a alta, que revelou válvula tricúspide com regurgitação de grau mínimo, cavidades esquerdas de dimensões normais, boa função sistólica global (FEVE 64%); sem evidentes alterações da motilidade segmentar e cavidades direitas de dimensões normais e boa função sistólica longitudinal.
Discussão
Novas manifestações da infeção por SARS-CoV-2 foram surgindo, entre as quais a MIS, uma entidade cuja fisiopatologia não está completamente esclarecida.
Apesar de poder haver envolvimento respiratório na MIS-A, ao contrário das formas mais comummente observadas de infeção por SARS-CoV-2, geralmente os sintomas são ligeiros podendo mesmo estar ausentes.4,5
Na MIS-A, é frequente a presença de sintomas gastrointestinais, e o envolvimento cardíaco com arritmias, elevação da troponina, disfunção ventricular esquerda ou direita e miocardite, assim como a febre, hipotensão e choque.4-7
O Centro de Controlo e Prevenção de Doenças, definiu quatro critérios para o seu diagnóstico: 1. Idade ≥ 21 anos; 2. Ausência de diagnóstico alternativo; 3. Presença de pelo menos 3 critérios clínicos, nomeadamente febre, doença cardíaca severa, rash e conjuntivite não purulenta, sinais e sintomas neurológicos de novo, choque ou hipotensão não atribuível a terapêutica médica ou trombocitopenia e 4. Presença dos critérios laboratoriais, infeção confirmada ou exposição a SARS-CoV-2 e elevação de proteína C reativa, ferritina, IL-6, procalcitonina ou velocidade de sedimentação.8
A suspeita deste diagnóstico na doente apresentada, que cumpria critérios diagnósticos de MIS-A, permitiu uma abordagem atempada com uma boa resposta à terapêutica instituída.
Este caso ilustra a necessidade de alerta para possíveis complicações cardiovasculares da infeção por SARS-CoV-2, reforçando que a MIS é uma entidade que pode ocorrer na idade adulta. Este estado hiperinflamatório e possivelmente imunomediado, pode levar, num curto período de tempo, ao desenvolvimento de doença crítica.9
O tratamento tem-se baseado principalmente em relatos clínicos, tendo por base terapêutica de suporte e anti-inflamatórios, nomeadamente imunoglobulina intravenosa e corticosteroides.10