Poucas são as situações em obstetrícia em que o princípio da “não-maleficência” se aplica de forma tão inequívoca como a perda gestacional recorrente (PGR), exigindo uma reflexão crítica sobre a conduta clínica existente.
A PGR atinge 1 em cada 50 casais em idade fértil e é para a maior parte deles um acontecimento extremamente traumático e com grande impacto na sua qualidade de vida. Embora seja uma entidade extensamente reconhecida na literatura médica, a PGR continua envolta em aspetos controversos. Clínicos e Sociedades Científicas dividem-se ainda quanto à sua definição e às circunstâncias que devem determinar o início de uma investigação. Enquanto o Royal College of Obstetricians and Gynaecologists (RCOG) considera critérios para iniciar uma investigação a existência de pelo menos 3 perdas consecutivas, já a American Society for Reproductive Medicine (ASRM) recomenda um estudo etiológico após duas perdas clínicas consecutivas e a European Society for Human Reproduction and Embryology (ESHRE) depois de duas perdas gestacionais, consecutivas ou não1,2,3. A decisão deve ser individualizada, partilhada com o casal e deve ter em conta os recursos existentes.
A identificação de fatores médicos associados é importante pois permite desenvolver estratégias de vigilância e terapêutica numa gravidez subsequente. Contudo, o caráter heterogéneo da perda gestacional, a caracterização inadequada das doentes e das perdas, assim como diferentes metodologias utilizadas no seu estudo, têm resultado em estudos epidemiológicos de fraca qualidade e dificultado a sua compreensão. As investigações e os tratamentos com evidência científica comprovada são escassos e a PGR continua uma questão frustrante quer para os casais, quer para os clínicos, permanecendo muitos casos sem uma causa identificada4.
É comum, os casais recorrerem a diversos clínicos, em busca de uma explicação e na esperança de uma solução. Na tentativa de responder às suas expectativas, os clínicos optam com frequência por uma multiplicidade de investigações, algumas das quais onerosas e não validadas e, muitas mulheres aderem a terapêuticas ineficazes, desnecessárias e eventualmente prejudiciais.
Com o objetivo de melhorar a qualidade da assistência a estas situações e reduzir a variabilidade da prática clínica nacional, é publicada neste número da ACTA a norma de orientação clínica da SPOMMF para a PGR. Coordenada por Monteiro et al., resulta de um trabalho de reflexão sobre a evidência clínica mais atual5. Este documento chama a atenção sobre a importância do aconselhamento reprodutivo destes casais com enfoque na promoção de estilos de vida saudáveis. Reforça a importância da realização do estudo genético do produto de conceção a partir da segunda perda gestacional, cujo resultado permitirá orientar estudos adicionais. Recomenda também a suplementação com progesterona em casos de PGR inexplicada, particularmente nas situações que cursam com hemorragia do 1.º trimestre.
Muitas questões e aspetos relativos à PGR são ainda controversos e um longo caminho espera ainda os casais e os clínicos. A abordagem dirigida às diferentes necessidades de cada casal e situação, conduzindo à compreensão quer das razões médicas, quer da situação emocional das perdas, é essencial para garantir um processo de luto normal e um melhor acompanhamento em gestações futuras.