INTRODUÇÃO
A osteoartrite (OA) é definida como uma doença degenerativa, progressiva que afeta não só a cartilagem articular, mas também o osso (1, 2) e os tecidos moles circundantes (1). Esta patologia pode ocorrer em qualquer estrutura osteoarticular (1, 2), sendo mais frequente no joelho, mãos, anca (2, 3) e coluna (2). Entre 2011 e 2013, a prevalência de OA em Portugal foi de 12,4% no joelho, 8,7% na mão e 2,9% na anca (4). A OA é considerada uma das principais causas de incapacidade a nível mundial (3, 6, 7). Verifica-se uma incidência crescente desta patologia crónica, não só devido ao aumento da esperança média de vida, mas também da prevalência do excesso de peso (5). Para a etiologia da OA contribuem fatores de risco modificáveis, como a obesidade (1, 2), atividade física intensa e sobrecarga articular e não modificáveis, tais como a etnia (1), a idade, sexo feminino (1, 2, 6) e a genética (2). O tratamento da OA tem como principais objetivos reduzir e controlar a sintomatologia (2, 3, 5) e retardar a progressão da patologia (5, 6). Existem diferentes opções de tratamento, nomeadamente farmacológico, não farmacológico (perda de peso, exercício físico) (1, 2), medicina alternativa e complementar e, em último caso, a cirurgia (2). Para além disso, a colaboração do utente é fundamental para garantir a adesão ao tratamento (6). A terapia farmacológica inclui fármacos de ação rápida como analgésicos, anti-inflamatórios não esteróides (AINEs), opióides (1) e fármacos de absorção lenta, como sulfato de condroitina, sulfato (SGA) ou hidrocloreto de glucosamina (CGA) e ácido hialurónico (1, 3, 9).
A glucosamina (2-amino-2-desoxi-D-glicose) (gluN) é um amino- monossacarídeo, que constitui um componente não celular essencial do tecido conjuntivo, cartilagem, ligamentos e outras estruturas, sendo um percursor dos glicosaminoglicanos presentes na matriz da cartilagem e no líquido sinovial. A gluN é sintetizada endogenamente, sob a forma de N-acetil-glucosamina e, para além disso, pode ser administrada sob a forma de SGA e CGA (1), por via oral e, ocasionalmente, por via intravenosa ou tópica (10). A gluN apresenta vários efeitos terapêuticos, entre os quais atividade anti-inflamatória, imunomoduladora, antioxidante, anticancerígena, cardioprotetora e antimicrobiana (10). Na OA, a gluN exerce efeitos farmacológicos na cartilagem e nos condrócitos osteoartríticos, resultando na atenuação da degradação da cartilagem com redução da progressão da doença e alívio da dor (11).
Esta revisão bibliográfica tem como objetivos compreender o mecanismo de ação da gluN na OA e a sua respetiva eficácia e segurança.
METODOLOGIA
Foi realizada uma pesquisa bibliográfica nas bases de dados “ScienceDirect” e “Pubmed”, utilizando a combinação dos seguintes descritores “glucosamine” e “osteoarthritis” ou “pharmacokinetics”. Obtiveram-se 240 artigos publicados entre 2011 e 2021, dos quais 69 foram considerados potencialmente relevantes atendendo à análise do título. Por fim, foram selecionados 23 artigos após leitura integral, considerando a sua adequação face à temática abordada. Realizou-se ainda uma pesquisa na base de dados “Nutrition Reference Center” utilizando o descritor “glucosamine”, tendo-se selecionado 1 artigo. Foram também consultados documentos de entidades reguladoras e institucionais.
Metabolização
A gluN administrada por via oral é absorvida a nível intestinal, principalmente no duodeno. O transporte para o interior das células é realizado através dos transportadores de glucose, nomeadamente os GLUT2, para os quais apresenta maior afinidade (12). Posteriormente, a gluN intracelular é convertida, pela enzima hexocinase, em glucosamina-6-P. Este metabolito participa na via das hexosaminas, através da qual é convertido no percursor da biossíntese de proteoglicanos e glicoproteínas UDP-N-acetil-glucosamina (1). Estudos realizados em ratos, sugerem que a gluN apresenta um metabolismo de 1.ª passagem nas células epiteliais do intestino, conduzindo à redução da sua biodisponibilidade quando administrada oralmente. Este fenómeno pode estar relacionado com a produção de mucina nas células epiteliais do intestino induzida pela gluN e também com a utilização da gluN na via das hexosaminas. A flora intestinal poderá também condicionar a biodisponibilidade da gluN (12). Após absorção, a gluN exógena parece ficar biodisponível, tanto no plasma como no líquido sinovial, no qual a concentração é superior. Parece existir acumulação seletiva de gluN na cartilagem após administrações repetidas (13). A existência de transportadores de glucose nos condrócitos do joelho poderá explicar a presença de gluN nesse local (12).
Ação da Glucosamina na Osteoartrite
A cartilagem articular consiste num tecido conectivo que reveste a superfície dos ossos nas articulações sinoviais, com a função de absorver os choques e reduzir a fricção durante os movimentos. Este tecido é constituído por uma matriz extracelular rica em colagénio e proteoglicanos, na qual os condrócitos (células produtoras de matriz extracelular) se encontram dispersos (11).
Na OA, ocorre a inflamação das células sinoviais (células produtoras de líquido sinovial) e dos condrócitos (11), com produção de elevadas quantidades de IL-1β. Esta citocina pró-inflamatória desencadeia a expressão de outros fatores inflamatórios, tais como a cicloxigenase-2 (COX-2), que conduz à produção de prostaglandinas (PGE2); Óxido Nítrico induzido (iNO); interleucina-6 (IL-6) e Fator de Necrose Tumoral-α (TNF-α) e de fatores desintegrantes da matriz, nomeadamente metaloproteinases e agrecanases. Estas enzimas proteolíticas são responsáveis pela degradação das moléculas de colagénio e de proteoglicanos da matriz extracelular da cartilagem (1, 11, 14). É de referir que a maioria dos genes que codificam estas substâncias estão sob controlo transcricional da via de sinalização do fator nuclear NFκB (14). Quando administrada exogenamente, a gluN parece promover a inibição da ativação desta via de sinalização, interrompendo a transcrição de genes envolvidos na resposta inflamatória (10, 14) e contribuindo para a inibição da expressão génica de algumas metaloproteinases e agrecanases, promovendo a redução da destruição da cartilagem (14). Por outro lado, poderá também estimular o aumento da produção de glicosaminoglicanos pelas células sinoviais e pelos condrócitos (8). No entanto, os efeitos enunciados estão dependentes, não só da dose administrada, mas também da formulação utilizada (10, 14).
Eficácia e Segurança
A gluN pode ser administrada por via oral, sob diferentes formulações: SGA, sulfato de glucosamina cristalina patenteada (SGACP) e CGA. Estudos farmacocinéticos e farmacodinâmicos sugerem que as doses que permitem obter um efeito terapêutico situam-se entre 1250-1500 mg (1). Dois estudos demonstraram que após a administração de doses de 1500 mg/dia de SGA em doentes com OA foram obtidos picos médios de concentração plasmática de 7,2 e 6,6 μM, respetivamente. Em ambos os estudos verificou-se uma grande variabilidade entre indivíduos (15). No estudo Glucosamine/ Chondroitin Arthritis Intervention Trial realizado por Sawitzke et al. (2008) foram observadas concentrações plasmáticas máximas de 1,77 ± 0,5 μM em pacientes que receberam 1500 mg de CGA em cápsulas de 500 mg, 3 vezes ao dia, durante 3 meses (15). Assim, uma dose única de 1500 mg/dia parece ser mais eficaz no aumento das concentrações plasmáticas de gluN em comparação com a mesma dose repartida por 3 administrações de 500 mg. Por outro lado, parece que é necessário atingir um pico de concentração de gluN entre aproximadamente 10 e 20 μM para existir um aumento da expressão relativa do mRNA de TGFβ1 (15). Foi sugerido que é possível atingir estes valores em indivíduos que receberam doses em bólus de 1500 mg a 2000 mg de SGA, mas raramente em pacientes que tomaram CGA em cápsulas (15). No estudo realizado por Persiani et al. (2007) sobre a farmacocinética do SGA em 12 voluntários saudáveis, foram obtidas concentrações plasmáticas máximas de 10 μM após a toma de doses únicas de 1500 mg. Posteriormente, os autores realizaram a mesma investigação em indivíduos com OA, tendo-se verificado que a gluN se encontrava biodisponível, quer no no plasma, quer no local de ação, ou seja, dentro da articulação (13). Por outro lado, Jackson et al. (2010) verificaram que a toma de CGA em combinação com sulfato de condroitina revelou níveis plasmáticos mais baixos, demonstrando que o último inibe a absorção e diminui a biodisponibilidade do CGA (13). Estudos farmacocinéticos demonstraram que uma dose diária de 1500 mg de SGACP originou concentrações plasmáticas próximas de 10 μM, em indivíduos saudáveis. Concluiu-se, assim, que este valor foi efetivo na neutralização da expressão génica induzida por IL-1. Num estudo cruzado, a troca de SGACP para CGA resultou num decréscimo do pico de concentração plasmática de 50% e numa redução de 75% da biodisponibilidade total (14, 16).
Na América do Norte o CGA e o SGA são considerados nutracêuticos, enquanto na Europa são considerados medicamentos. Este facto traduz-se numa maior regulamentação dos mesmos nos países europeus em relação à América do Norte (17). Em Portugal, a gluN está aprovada como medicamento, assim como noutros Estados- Membro da União Europeia. Por se tratar de uma das substâncias mais consumidas no mundo, existe uma grande preocupação com a sua segurança e níveis de toxicidade em seres humanos (10). A gluN é considerada segura, não tendo sido reportados efeitos adversos graves ou fatais, nem casos de sobredosagem (10, 18, 19). Esta apresenta um número reduzido de efeitos secundários em comparação com placebo ou com os AINEs, sendo que os mais comuns são sintomas gastrointestinais ligeiros como pirose, diarreia, náuseas ou stress epigástrico (10, 18). Outro efeito secundário que pode surgir relaciona-se com pacientes alérgicos a marisco, uma vez que a substância ativa da gluN é extraída da quitina presente no mesmo. Para além disto, o SGA é administrado como um sal, combinado com cloreto de sódio, fator que deve ser considerado uma vez que pode ter influência na pressão arterial e na função renal (13). Existe ainda alguma informação contraditória relativa à influência da gluN no metabolismo da glicose, tanto em indivíduos saudáveis como em diabéticos (10). Ainda assim, recomenda-se aos indivíduos diabéticos e hipertensos o controlo dos valores séricos de glucose e da pressão arterial, respetivamente (13). Num dos medicamentos de gluN comercializados em Portugal, aconselha-se aos doentes com fatores de risco cardiovasculares a manutenção dos níveis sanguíneos de lípidos, uma vez que tem sido relatada hipercolesterolemia em indivíduos tratados com gluN (20). Em relação a interações medicamentosas a informação disponível é reduzida, tendo sido reportado um aumento do índice internacional normalizado (INR) com anticoagulantes cumarínicos (varfarina e acenocumarol) (20). A gluN parece também interagir com o paracetamol, aumentado a sua biodisponibilidade e exercendo uma atividade protetora na lesão hepática induzida por este medicamento (21).
ANÁLISE CRÍTICA
Relativamente ao impacto económico da OA, verificou-se a existência de custos indiretos elevados, relacionados com o absentismo laboral e consequente diminuição da produtividade (6). Num ensaio com duração de 6 meses, concluiu-se que a relação custo-eficácia no tratamento da OA do joelho foi mais elevada com a administração de pCGS relativamente ao paracetamol e a um placebo. Verificou-
-se ainda que o tratamento contínuo com pCGS se traduziu numa diminuição da utilização simultânea de outra terapêutica, bem como, a longo prazo, numa diminuição do número de consultas e exames médicos (6, 14, 17).
A utilização de gluN na gestão dos sintomas da OA tem sido alvo de várias meta-análises e revisões sistemáticas (19, 22, 23). De acordo com estes estudos, parece existir evidência de um efeito positivo resultante da administração de sulfato de gluN na OA do joelho, nomeadamente, na redução da dor (19, 22, 23), melhoria da função física (19, 22, 23) e diminuição do estreitamento do espaço articular (22). Apesar de existirem diferenças estatisticamente significativas entre a utilização de gluN relativamente a um placebo, os resultados parecem ter um efeito clínico reduzido, quer a curto, quer a longo prazo (19, 23). É de referir que estes resultados podem ser influenciados pelas escalas de dor utilizadas, o tipo de formulação, a marca de gluN, entre outros (19, 22, 23).
A recomendação da administração de gluN no tratamento da OA não é consensual. A European Medicines Agency (EMA), recomenda a administração de uma dose diária de 1250mg. A gluN está indicada no alívio dos sintomas da OA ligeira a moderada do joelho, mas não da dor aguda. Este alívio pode demorar algumas semanas a ser observado e se não se verificar após 2-3 meses, o tratamento deverá ser reavaliado (20). Por outro lado, a European League Against Rheumatism e as diretrizes da Osteoarthritis Research Society International (2010) para o tratamento de doentes com OA no joelho e que revelem sintomas, recomendam o uso de GS associado ao sulfato de Condroitina (24). O American College of Rheumatology (2019) por sua vez, é contra a utilização de gluN no tratamento da OA do joelho e da anca, por falta de evidência quanto à sua eficácia (25). No entanto, recomenda a utilização condicional da gluN em associação com sulfato de condroitina apenas em pacientes com OA da mão (26). O National Institute for Health and Care Excelence (NICE) no Reino Unido recomendou a não utilização da gluN, principalmente por razões económicas (26, 27).
Nos Estados Unidos da América e no Canadá, a gluN é comercializada sob a forma de suplemento alimentar, contrariamente à Europa, na qual é considerada um medicamento (13). Esta diferença na classificação de substâncias está dependente da legislação em vigor em cada país (28) . Segundo o Infomed, em Portugal existem 23 registos de medicamentos que contêm como substância ativa a GluN, na sua maioria com uma dosagem de 1500 mg (29). Por outro lado, em dietéticas e lojas de venda de produtos alimentares a gluN é também comercializada sob a forma de suplemento, nos quais a dose recomendada não é indicada para o tratamento da OA. Considerando os factos acima descritos, a recomendação da utilização de gluN na gestão dos sintomas da OA deve ser realizada em equipa multidisciplinar e, em último caso, pelo médico responsável pela prescrição. Em doentes com OA, a terapêutica nutricional tem como objetivos a manutenção de um peso saudável (IMC entre 18,5 e 25kg/m2), a promoção de um estilo de vida saudável, seguindo as recomendações de uma dieta equilibrada, completa, variada e ajustada ao indivíduo e, incentivando prática de exercício físico regular para preservação da massa muscular e alívio de sintomas (30, 31).
CONCLUSÕES
A gluN parece desempenhar um papel anti-inflamatório e protetor da degradação na cartilagem na OA. No entanto, apesar de existir alguma evidência da eficácia da gluN no alívio da dor, na melhoria da função e redução do estreitamento articular, estes efeitos parecem ser clinicamente pouco relevantes. Por outro lado, a avaliação da eficácia da gluN é dificultada por diversos fatores relacionados com as características da formulação utilizada, a duração dos estudos e a uniformização dos critérios de avaliação da sintomatologia, associados a um possível risco de viés. Desta forma, ainda existe falta de consenso, por parte de entidades reguladoras, na recomendação da utilização de gluN como uma solução no tratamento da OA. São ainda necessários mais estudos para clarificar a dose terapêutica, as interações nutriente-medicamento e os efeitos da administração de gluN no metabolismo da glucose.
CONTRIBUIÇÃO DE CADA AUTOR PARA O ARTIGO
Os autores ASQ, DS, LS, SL e TM contribuíram igualmente para a elaboração do artigo, desde a sua estruturação à pesquisa bibliográfica e escrita do rascunho do manuscrito. A autora AB propôs o tema e acompanhou a realização do mesmo pelas etapas de investigação e realizou a revisão crítica e científica do artigo e a aprovação da versão final para submissão.