1. Introdução
A teoria política comparada nasce, ao par de outras disciplinas, por instância dos estudos cross-culturais e orientalistas, além de vários fatores, tais como a emergência de uma ordem internacional unipolar e a crescida velocidade e difusão do fenómeno da globalização. A exigência duma “renovação” além dos cânones na teoria política parte do pressuposto que as problemáticas e teorizações da disciplina deparam-se com questões no contexto global. A pluricêntrica e compósita condição partilhada de modernidade compele para que “we [teoristas políticos] move toward a more global understanding of political theory as a discipline” (El Amine, 2016, p. 114), interligando diferentes cânones normativos de pensamento político. Face às novas questões emergentes na arena política da modernidade, os recursos disponíveis na tradição da teoria política podem não estar preparados para as analisar (Von Vacano, 2015). Para fazer frente a estas exigências epistemológicas torna-se necessário instaurar um diálogo imparativo e cross-cultural (Dallmayr, 2008; Parekh, [2000] 2006; Parel, 1992) que proporcione uma troca estável e mútua entre diferentes tradições de pensamento político.
O incipit da CPT deve muito aos estudos da filosofia cross-cultural (Dallmayr, 1999b, 1999a, 2008) e das críticas de-coloniais, antirracistas e feministas (Mills, 2015). Respetivamente, os primeiros vêm duma crítica aos estudos do orientalismo considerados simplistas nas suas formulações; uma revisão sob ótica de diálogo mútuo, privo de etnocentrismo era a proposta visada para revitalizar a área de estudo. As segundas seguem de um pensamento anticolonial, para criticar as formulações dominantes em sistema e paradigma da teoria política “ocidental”. Segundo Charles Mills, a teoria política da modernidade, como disciplina, baseia-se fundamentalmente no Estado-nação teorizado pelo contratualismo (Mills, 1997, 2015). Este entendimento exíguo do político e do poder perpetuado pela tradição política anglo-saxónica e os cânones da teoria política carece dum aparato teórico adequado para compreender a experiência e o pensamento dos povos que passaram pela colonização.
Portanto, em reação e resposta às forças inerentes o fenómeno da globalização e o pensamento cosmopolita, o projeto epistemológico da CPT rejeita e desconstrói a hegemonia conceitual dos cânones da teoria política (Godrej, 2015; Von Vacano, 2015). O propósito da CPT não é substituir a tradição da teoria política, mas decentralizar o centro e desconstruir a hegemonia epistemológica na disciplina, ao fim de integrar sistemas de pensamento, autores, textos e conceitos não-ocidentais - ou do ‘the rest’, parafraseando a expressão de Bhikhu Parekh (Parekh, [2000] 2006) - ao lado da tradição teórica ocidental.
Face a estes pressupostos, este artigo pretende evidenciar a insularidade dos avanços na CPT na literatura portuguesa. Esta crítica resulta ainda mais pertinente por vir dum contexto (Portugal) que é ocidental e ao mesmo tempo paralelo à tradição anglo-saxónica. A subdisciplina da CPT continua, no momento em que escrevemos, quase desconhecida na lusofonia, sendo que não há dados acerca de pesquisas ou textos produzidos nessa área, nem aparece em currículos do ensino superior. Esta ausência assinala que, por um lado, a tradição da teoria política desenvolvida no contexto lusófono não abarcou a proposta de abertura dos cânones proposta pela CPT.
Na terceira e última sessão, o artigo pretende discutir o anteriormente exposto no caso específico da teoria política na área subsaariana. Frisa-se a escassa representação do pensamento africano ou subsaariano, que é desconsiderado na CPT ou confundidos com autores e textos da filosofia política africana ou da filosofia africana no geral. A coincidência assim estabelecida entre teoria e filosofia política põe o risco de realçar demasiado a importância da quintessência africana em formulações e sistemas de pensamento político, um risco que não é novo às disciplinas nascidas no continente subsaariano (Kasanda, 2018). Em relação à literatura portuguesa, o artigo assinala que, além de não haver académicos a trabalhar na CPT, também não parece que haja uma pronta receção de textos, ideias, autores e conceitos do mundo africano e dos PALOPs no específico.
2. Comparative Political Theory: O que é a Teoria Política Comparada
A noção de teoria política comparada (CPT, do inglês comparative political theory) apareceu pela primeira vez na literatura num artigo publicado por Roxanne L. Euben, “Comparative Poliical Theory: na Islamic Foundamentalist Critique of Rationalism” (Euben, 1997). A definição dada por Euben é inovadora e desencadeou interesse no ambiente académico, levando à produção dum número especial do The Review of Politics sobre o tema, edição coordenada pelo professor Fred Dallmayr (1999b). A resposta positiva à inovação de Euben deve-se não só a fatores contingentes, entre os quais a ordem unipolar do mundo, a globalização e a emergência dos estudos cross-culturais, mas também ao fato de a teoria política não estar a acompanhar parecida abertura e desenvolvimento que acontecera em outras áreas do conhecimento, tais como filosofia, antropologia, sociologia, literatura e demais ciências humanas e sociais.
Esta abertura visa superar as barreiras postas por estudos etnocêntricos, que apostam em estudos de área paralelos, acentuando assim as diferenças de culturas e epistemologias; assim como visa ultrapassar a quase-universalidade das formulações produzidas nas ciências humanas e sociais. Neste sentido, o caracter de comparativismo implícito na CPT acrescenta valor analítico e crítico à análise da teoria política. Na opinião do professor Michael Freeden, o papel da CPT é relevante tanto pela filosofia política, tanto pela ciência política (Freeden, 2007). Em relação à primeira, a CPT ressalta e salienta a importância de teoria, ideias e sistemas de pensamento, equipando os politólogos com a engenharia teórica necessária para o estudo de fenómenos e contextos relacionados com o poder no e além do ocidente.
O professor britânico chama atenção sobre a distinção entre filosofia, teoria e pensamento. Este último representa o objeto de estudo, a matéria a ser examinada, os corpora em análise; pelo contrário, filosofia e teoria política são disciplinas estruturadas, dedicadas ao estudo do fenómeno do político (Freeden, 2007). Contudo, as duas disciplinas são distintas e separadas áreas do conhecimento. O caracter comparativo da CPT realça a relação estreita entre teoria política e ciência política, uma vez que a teoria política é parte constitutiva das ciências sociais e não uma vertente da filosofia1 (Freeden, 2007).
O epíteto de “comparative” sob o qual a disciplina nasce é causa de debate entre os proponentes da disciplina. Por um lado, há quem defenda, como o Andrew March, que o comparativismo não se refere a um carater técnico ou quantitativo da disciplina, mas enfatiza a partilha do mesmo objeto de estudo - o poder e o político - entre teorias políticas e sistemas de pensamentos diferenciados no tempo e no espaço (March, 2009). Por outro lado, há quem proponha uma leitura de “comparativa” mais ligada aos paradigmas da política comparada, pondo assim o foco na possibilidade de individuar unidades de análise que podem ser comparadas (Freeden, 2007). A comparação de categorias ou unidades de análise2 propostas seria assim capaz de produzir um quadro teórico para estudar o poder como fenómeno (observável ou inobservável), como prática, discurso e conhecimento generalizado da quotidianidade, como expressão escrita de pensamento político, e como estudo de especificidade assim como de generalidades.
Além destas definições do caracter comparativo da CPT, há também a leitura em chave cosmopolita proposta por Farah Godrej. Transcendendo do original sentido do conceito comparativo, a professora norte-americana, define “comparative” como uma forma de inclusão, de abertura para e de curiosidade para com o outro (Godrej, 2015). O projeto da CPT, assim entendido, desencadeia da ideia de tornar o estranho familiar, e o familiar estranho, segundo o proposto por Roxanne Euben (1997). Em outras palavras, a CPT representa o palco que possibilita e estimula convergências, dialogo, aprendizagem assim como conflito e contestação de ideias, teorias e ideologias que compõem a teoria política. O comparativismo é alcançado, segundo Godrej, pelo caminho metodológico, adotando uma hermenêutica cosmopolita3 do pensamento político (Godrej, 2009b).
Em termos metodológicos, a CPT não aparenta ter um guia único, nem um sistema de classificação unívoco, mas sim uma ampla variedade de opções metodológicas e de abordagens epistemológicas. Se por um lado a pluralidade metodológica representa uma vantagem pois salienta e aprecia a diversidade, por outro lado levanta dúvidas sobre assuntos centrais à disciplina. Ackerly e Bajpai (2013), em contraste com o acima referido, remarcam que o caracter comparativo da disciplina não é o aspeto mais essencial dela, pois deve ser acompanhado pelo engajamento com sistemas de pensamentos marginalizados e/ou não-ocidentais. A CPT constitui assim uma área que abrange o pensamento normativo, assim como a história da teoria política, a interpretação crítica, as ideologias políticas, a interpretação política (Ackerly & Bajpai, 2013; Freeden, 2007; March, 2009).
Portanto, a metodologia que guia a CPT é definida pela abordagem adotada. Ackerly e Bajpai (2013, p. 275) identificam quatro abordagens principais. A normativa-analítica trabalha rumo à construção ou reconstrução de teorias, enquanto a histórica visa informar e enriquecer o corpus internacional da teoria política além dos cânones. A disciplina conta também com a abordagem interpretativa, que se interessa principalmente com práticas políticas, das quais extrair explicações, interpretações para (re-)teorizar assuntos políticos do mundo concreto; e com a perspetiva crítica, cujo foco são vozes, ideias, teorias marginalizadas, dissidentes, da oposição e estranhas à elite política.
Por quanto a classificação proposta por Ackerly e Bjapai seja abrangente, não encontra correspondência nem unanimidade entre os estudiosos, que propuseram ulteriores distinções baseadas em questões metodológica (March, 2009; Von Vacano, 2015). O que importa ressaltar é que estas distinções são criadas por indução a partir dos estudos existentes na área, numa tentativa de organizar de forma coerente a multiplicidade de estudos desenvolvidos sem normas nem diretrizes específicas ou orgânicas. Neste aspeto, Diego Von Vacano (2015) e Andrew March (2009) referem, mesmo com diferenças, duma distinção preliminar entre CPT normativa (Von Vacano) ou engajada (March) e CPT interpretativa (Von Vacano) ou académica (March). Tal como reporta Andrew March, o objetivo principal da CPT engajada é o de ‘investigar se um determinado conjunto de ideias são as ideias justas para nós’ (March, 2009, p. 535. Tradução da autora), enquanto a versão académica interessa-se por investigar e avaliar o conhecimento de textos, práticas, fenómenos além do ocidente e dos cânones da teoria política.
Von Vacano baseia-se na definição de March, mas a torna mais abrangente em substância e objetivo, ganhando assim o rotulo de normativa a substituir o de engajada. Por Von Vacano, a vertente metodológica normativa delineia a CPT como um meio para alcançar fins de natureza moral, cujo conteúdo é amplo e variado (Von Vacano, 2015). O estudioso de CPT torna-se assim uma dúplice figura: um teorista e um guia; Von Vacano reconhece assim a validade da revindicação de fins críticos-transformativos apelada por March4. Pelo contrário, a vertente interpretativa mútua a definição da académica, indicando uma escolha metodológica isenta de objetivos prescritivos (Von Vacano, 2015). A CPT interpretativa ou académica propõe-se alargar o conhecimento sobre questões, problemas, assuntos, dilemas do político, uma vez que o analista político tem função de interprete que explica, reporta transculturalmente e faz sentido de fenómenos e de conceitos políticos.
3. Nas Origens da Teoria Política Comparada
Face à falta de univocidade nas classificações definidas pela metodologia, é nossa opinião que uma distinção mais clara se obtenha por tomar em consideração a tipologia de CPT, entrelaçada com a fundamentação correspondente. A distinção que propomos está baseada na tripartição operada por Ackerly e Bajpai (2013, p. 275), mas enfatiza como o carater de cada tipo de CPT esteja profundamente ligado às razões subjacentes o emergir da vertente de estudo.
Como acima referido, as origens da CPT devem muito aos estudos da filosofia cross-cultural, desenvolvidos na segunda metade do séculos XX, sobretudo nos anos Noventas. A emergência dos estudos cross-culturais está intrinsecamente ligada a fatores contingentes, tal como a ordem internacional, e a fatores de natureza académica. Entre os primeiros, conta-se com o fim da polaridade liberal-soviética e a instauração dum paradigma unívoco e quase-universal em termos políticos, culturais, económicos. Fenómenos quais globalização e cosmopolitismo enfatizam esta tendência, realçando igualdade e semelhanças face a diferenças e especificidades. No plano académico, a ordem internacional unipolar colabora para a produção de teoria de cunho pessimista de Samuel P. Huntington e F. Fukuyama, a declarar o fim da história de desenvolvimento sociopolítico humano e da indistinção das civilizações. Em contraste com tal posicionamento, os ideais cross-culturais apoiam a revitalização de culturas, filosofias e sistemas de pensamento marginalizados pelos cânones. A abertura que a vertente cross-cultural propõe, na teoria política, é um projeto que inclui vozes discordantes endógenas à tradição anglo-saxónica, assim como vozes externas provenientes do contexto global (Mills, 2015).
Essencial para este fim é uma abordagem imparativa (Dallmayr, 1999a; Parekh, [2000] 2006; Parel, 1992), do verbo latim imparare (aprender) e ao mesmo tempo dialógica. Como bem lembra Anthony Black, a teoria política não é uma instituição fixa imune aos desenvolvimentos do mundo e aos intercâmbios dos povos. Pelo contrário, é uma disciplina cujos avanços e integrações de paradigma decorrem de ter aprendido, emprestado, copiado de outras tradições de pensamento. Black nota como
[the] ‘western political tradition’ is not a fixed entity but forever fluctuating, being added to, corrected, often from within or sometimes, as in Enlightenment or the French Revolution, by fresh awareness of an alternative path suggested by knowledge of another civilisation (Black, 2011, p. 223).
Diálogo e aprendizagem são os elementos essenciais para a formulação duma CPT que visa dar luz ao que foi marginalizado. Esta primeira tipologia da CPT, a conversational and discoursive (Ackerly & Bajpai, 2013) tem como fim último suplementar os cânones instituídos, não de os substituir; o diálogo e a aprendizagem mútua são valorizados acima de tudo. Exponentes desta vertente são os académicos que fundaram a própria disciplina da CPT, Fred Dallmayr e Roxanne Euben, acompanhados por Bhikhu Parekh, Raimon Pannikar e Anthony Black.
A posição dialógica cross-cultural é considerada, por teorista políticos quais Charles Mills e Achille Mbembe, não suficiente para realizar uma completa reabertura e renovação da teoria política. A disciplina encontra-se vinculada por uma hegemonia heurística dos cânones, de cunho eurocêntrico (Mbembe, 2015), tornando-se assim parciais e representativos de ideias, Weltanschauung 5, teorias, conceitos e pensamentos de alguns e não de todos. Sem rejeitar a importância das teorias atualmente incluídas nos cânones, é preciso expor esta parcialidade, torná-la patente, de forma que seja possível a contestar e a desconstruir (Godrej, 2009a, 2015; March, 2009). O cerne desta segunda tipologia de CPT - disruptive and decolonial (Ackerly & Bajpai, 2013) - está ligado a duas ações: decentralizar e descolonizar.
A descolonização da teoria política começa por uma crítica consciente do liberalismo (Mills, 1997, 2015), uma autoanálise do passado para refletir sobre a hegemonia do presente. Na opinião do professor Charles Mills, o eurocentrismo do liberalismo político está profundamente ligado aos pressupostos do Estado contractual concebido pelos Iluministas, que criou não tanto um contrato social, mas um contrato racial (Mills, 1997). A distinção entre Estado-nação e terras sem Estado legitima as pretensas de dominação sobre as terras nullius, elevando o Ius Publicum Europaeum a princípio-guia não só de ações políticas e militares, mas também de teorias e conceitos na academia. A legitimação teórica de colonialismo e imperialismo dada pelo liberalismo nunca foi objeto de uma revisão crítica pelos próprios académicos anglo-saxónicos, além de poucas vozes discordantes (Mills, 2015); pelo contrário, na aparente ausência de produção teórica do século XX, a escola anglo-saxónica e os textos de John Rawls sobressaltam o Estado-nação contractual, relegando outras configurações políticas na esfera do pré- ou extrapolítico.
Para sair deste monólogo etnocêntrico é preciso reconhecer que o próprio pensamento ocidental deriva de integrações filosóficas transcontinentais (Black, 2011), assim como deve-se tornar patente a cumplicidade entre o projeto teórico estadual do contratualismo e o colonialismo (Mills, 1997). Denúncias da parcialidade eurocêntrica e exposições de outros modos de ser e de pensar o político devem vir de vozes discordantes inerentes a própria tradição ocidental (e não só anglo-saxónica) tão como do contexto global. Por isto, a descolonização da teoria política marcha ao lado do projeto de decentralização da disciplina. Descentrar, no contexto em análise, entende-se como o antónimo de eurocêntrico, mas também de afrocêntrico, de oriente-cêntrico e assim por diante. O objetivo não é o de criar novas ou ulteriores insularidades na disciplinas, mas sim de atingir e desenvolver um quadro comum de igualdade que respeite e valorize as diferenças, propondo modelos teóricos com capacidades teóricas e metodológicas suficientes para as mais diferentes configurações de e pensamentos sobre o político. Descentrar significa, nas palavras de Achille Mbembe, apropriação do conhecimentos e das formas do conhecimento (Mbembe, 2015), em oposição à aquisição de noções exógenas.
O objetivo de decentralização trova de acordo muitos académicos da CPT, entre os quais Roxanne Euben, Fred Dallmayr, Michael Freeden, Farah Godrej e Andrew March, que vêm na descentralização a possibilidade para a redefinição de fins e meios da teoria política. Distanciando-se da vertente disruptiva e desconstrutiva, os estudiosos propõem uma teoria política mais abrangente, que olhe além do ocidente, da escola anglo-saxónica e dos cânones, em luz do entendimento que investigar e pensar no político é “about human, not western dilemma” (Euben, 1997, p. 32). A classificação tripartida de Ackerly e Bajpai (2013) define esta tipologia da TCP como transformative and constructive.
Visando alcançar a restruturação da teoria política segundo padrões de inclusão, os objetivos propostos dentro do terceiro tipo de CPT são multíplices. Por um lado, há quem propunha a integração na teoria política de perspetiva, de formas de políticas e de teorias políticas de todas as partes do mundo (Euben, 1997; Kapust & Kinsella, 2017); por outro lado, pede-se que a CPT seja a plataforma onde refletir sobre o significado da vida política na arena global (Dallmayr, 2004) e que forneça quadros teóricos para estudar a democracia além do Estado (Williams & Warren, 2014). Ulteriores contribuições apelam a formas de pensar o ego para construir uma hermenêutica cosmopolita que possibilite familiarizar, estudar e relatar o que nos é alheio (Euben, 1999; Godrej, 2009b). Em fim, esta tipologia importa-se em considerar qual o valor da CPT para a teoria política, o que ela acrescenta, porque merece atenção na academia e quais as motivações a ela subjacentes (Freeden, 2007; Kapust & Kinsella, 2017).
4. Teoria Política Comparada na Literatura em Português: Um Amigo Invisível
A produção científica da CPT vê a predominância de académicos afiliados a universidades do Reino Unido ou dos Estados Unidos. São estes países onde, em primeiro lugar, a disciplina originou e cujas tradições de pensamento são foco de debate e revisitação. Os estudos cross-culturais, assim como as criticas contra a hegemonia epistemológica e eurocentrismo levadas a cabo nos estudos da CPT dirigem-se contra as tradições de pensamento anglo-saxónica (contratualismo, liberalismo e Estado-nação), quem constituem os cânones da teoria política contemporânea. A existência de vozes contrastantes e dissidentes de dentro da mesma teoria, assim como uma insatisfação generalizada com os princípios racionalistas do ego cogito (Dallmayr, 1999b, 2008), representam uma reflexão endógena sobre qual o caminho a seguir pela teoria política e patenteia a insuficiência da tradição ocidental em dar resposta aos interrogativos sobre o político.
Ao dia de hoje, a literatura de teoria política portuguesa não dispõe de material, em formato digital ou impresso, sobre ou relacionado com a CPT. Não há estudos ou pesquisas a ser desenvolvidos na área, nem publicações científicas. A pesquisa em rede torna evidente que só há um artigo (por Sanjay Seth, 2017, “Teoria Política Comparada: uma crítica pós-colonial”) disponível sobre a CPT em língua portuguesa6. A literatura anglófona existente igualmente não se encontra disponível na literatura em língua portuguesa, sendo que não veio a ser traduzida. Além de textos publicados, assinala-se ainda que a CPT não é tida em consideração nos currículos de ensino da ciência política, sendo que ela não parece estar integrada dos planos de estudo do ensino superior. Contudo, o foco do presente artigo não é o de questionar a estrutura do ensino da ciência, e da teoria, política no sistema de educação superior, nem engajar no debate sobre a descolonização da educação, que merece ser aprofundado em outros meios. A menção desta carência ajuda, uma vez mais, a entender como esta área de estudo permaneça, ao dia de hoje, desconhecida aos demais estudantes de países lusófonos, na Europa, assim como na América do Sul, em África e na Ásia.
A ausência da CPT na literatura de teoria política portuguesa é relevante por varias razões. Pesam, acima de tudo, o ligado histórico e as tendências contemporâneas da teoria política. O silêncio da literatura portuguesa resulta peculiar dentro do contexto da teoria política ocidental, onde o pensamento político português há seculos acompanha desenvolvimentos e paradigmas formulados pelas teorias europeias. Contudo, a tradição lusófona distingue-se por existir de forma paralela às tradições europeias em luz da influência do contexto atlântico e transcontinental no desenvolvimento de cultura e pensamento político. Esta marca parece perder-se, ao longo das últimas décadas, na indistinção e generalizada preferência epistemológica pelos cânones da disciplina.
Por outro lado, a ausência da CPT, seja em termos de traduções, seja em termos de produção científica em língua portuguesa, assinala que, em Portugal, a teoria política não está ainda a acompanhar o projeto de renovação da disciplina, moldado segundo padrões de abertura para com multiculturalismo, cross-culturalismo e cosmopolitismo. Trata-se dum caracter generalizado na literatura portuguesa, que assinala, por um lado, tendências e incongruências dentro da teoria política no geral, reportando de distância e incomunicabilidade de sub-tradições de pensamento dentro da própria tradição ocidental.
A renovação proposta pela CPT não constitui, porém, a revindicação do papel de estudos de cunho etnográfico, nem uma posição culturalista ou centrista (europeísta, africanista, orientalista); pelo contrário, a abertura implícita na CPT revindica a paridade e igualdade de tradições de teoria política desenvolvidas em distintos contextos culturais e geográficos. A integração de noções da teoria política africana ao par da ocidental, islâmica, indiana ou chinesa, visa constituir um corpus da teoria política segundo padrões de descentralização e de inclusão das demais tradições de pensamento político. Acresça-se que a expansão na literatura trabalha rumo à compilação duma teoria política inclusiva e abrangente. A inclusão de categorias de pensamento e de análise política permite a compreensão dos demais fenómenos do político, em variados contextos histórico-culturais, para quais teorias e conceitos dos cânones ocidentais não estão preparados ou predispostos (Freeden & Vincent, 2013; Mills, 1997, 2015).
Resumido o que foi exposto nas sessões anteriores, a CPT é uma vertente da teoria política que se interessa em estabelecer um diálogo entre varias tradições de pensamento e teoria política; um diálogo, este, que leva à aprendizagem de ambas as partes e que estimule cada povo, cultura e tradição filosófica a se apropriar do conhecimento próprio, contrastando a hegemonia de ideias e teorias ditas “universais”. Em contraste com a centralização unipolar da disciplina, a CPT propõe uma renovação do corpus da teoria política, integrando autores, ideias, teorias e textos diferentes dos cânones, sejam estes vozes dissidentes e marginais oriundas das próprias tradições ocidentais, assim como vozes provenientes de outras áreas geográficas.
A ausência de CPT na literatura de teoria política portuguesa é um caráter da disciplina que merece consideração e análise aprofundados. Por corroborar as observações aqui avançadas, na ultima sessão do artigo aprecia-se a relação e interligação entre teoria política “em português”, CPT e teoria política em África. A escolha da área subsaariana não reflete uma distinção na literatura existente sobre o tema, mas molda-se no perfil da autora deste texto, pela familiaridade e proximidade com estudos nesta área. A definição da área em análise deve-se à distinção operada e estabelecida pela CPT.
As áreas de interesse da CPT definem-se segundo parâmetros geográficos e por parâmetros culturais, populacionais e religiosos. Assim como o termo “ocidente” não se refere somente a territórios no ocidente - tendo em conta a pressuposta centralidade do continente europeu no mapa - mas sim a uma zona duma certa homogeneidade cultural e filosófica, a CPT define as áreas de interesse em relação a afinidades culturais, geográficas, religiosas e epistemológicas. Distinguem-se a área do Leste da Asia, fortemente marcada pelo pensamento político chinês e pelo indiano; reconhece-se a área da América do Sul e a da Oceânia; a da Europa do Leste, em contraposição a Europa do Oeste. Conta-se também com o pensamento político islâmico, que acomuna vários países do Oriente Médio e do norte da África, não obstante as grandes diferenças que entre estes existam; e com a teoria política de África subsaariana (Von Vacano, 2015).
Os estudos desenvolvidos na CPT têm tendências a dar prioridade a duas das áreas acima referidas. São estas o Oriente, em luz do vasto interesse e estudos sobre o pensamento político chinês e as teorias políticas desenvolvidas na península indiana, e o pensamento político islâmico, inclusive de diferenciadas tradições e vertentes religiosas hoje existentes, de povos árabes e persas. Esta ênfase deriva do modelo dialógico e cross-cultural, sendo que as unidades preferenciais a serem postas em diálogo cross-cultural são duas unidades similarmente constituídas mesmo que desiguais (Dallmayr, 1999a; Von Vacano, 2015). Portanto, a comparação dialógica tende a dar preferência a dois sistemas de pensamento constituídos, não a textos e autores em unidades isoladas. Esta enfase tem o efeito, não desejado, de negligenciar outras áreas geográficas e culturais, nomeadamente a América do Sul, a Oceânia e a África. Não tendo estes, geralmente, um pensamento político constituído como sistemas de pensamento homogéneo, não são tidas em consideração da mesma forma que o pensamento político chinês, indiano ou islâmico nos estudos da CPT.
5. Descentralização e Africanização
De forma geral, o pensamento africano é negligenciado pelos académicos ocidentais (Von Vacano, 2015). O continente africano (leia-se aqui africano como subsaariano) continua a ser objeto de estudos de cunho etnocêntrico e não é considerado em primis como um centro de produção de saber; isso é, África é objeto e não sujeito do conhecimento. Como Valentin-Yves Mudimbe lembra, a história de África é criada pelos ocidentais e o facto de África, por si própria não ter história, justifica estudos etnográficos que da mesma forma não foram levados a cabo em outras regiões (Mudimbe, 1988).
O conhecimento produzido por autores de África, junto com tradições de pensamento africano são negligenciados não só pelos académicos contemporâneos, tão como foram obscurecidos durante séculos. Ao lado de teoria imperialistas e ideologias colonialistas, académicos e pensadores do ocidente apoiaram a objetificação do Homem subsaariano, considerado um ser não capaz de razão. Vejam-se, entre outros, as considerações de Levy-Bruhl sobre a mentalidade primitiva, ou pré-humana, dos homens africanos (Levy-Bruhl, 1910, 1922), e as afirmações Hegelianas acerca dos filhos de Cam esquecidos pelo Espirito da História.
Mesmo que hoje já fundamentalmente revisitado e desconstruído, a retórica produzida pelo ocidente fez com que o pensamento africano, assim como disciplinas sociais e humanas interligadas com teoria e razão produzida no continente africano e/ou por autores africano, enfrentaram inúmeras dificuldades em se afirmar na academia global. Entre outras, a filosofia em África representa uma das disciplina que lutou no longo prazo não só para se afirmar, mas até para que fosse reconhecida a sua própria existência e possibilidade de ser, enquanto legitima representação de capacidade de raciocínio e análise lógica engajada pelo Homem de África (veja-se Gyekye, 1997b, 1997a; Hountondji, 1983; Masolo, 1994; Mbiti, [1969] 1990; Mudimbe, 1988; Tempels, 1959; Wiredu, 1980, 1996). Além disso, a academia africana viu aparecer teorias africanistas focadas na centralidade de África e do Homem africano, elevando a particularismo e especificidades no plano heurístico e no existencial7.
Durante as últimas décadas do século XX, os maiores esforços da filosofia africana foram em prol de afirmação e justificação da sua existência. O próprio problema de ter de justificar a existência da filosofia africana é indicativo de dois fatores. Por um lado, destaca as dificuldades que a disciplina teve de enfrentar a nível global frente aos padrões e as tradições de pensamento, embutidas em línguas veiculares e línguas de ensino, da tradição filosófica ocidental. Por outro lado, a necessidade de afirmar e explicar a sua existência confere prova da sua própria existência sem por isso precisar de justificativa (Chimakonam, 2015; Makwinja, 2018). Parafraseando as palavras as Wole Soyinka, uma tigre não precisa de afirmar a sua tigridade para ser tigre8, ou seja, um sujeito não precisa de se afirmar como tal para ser sujeito.
Além de questões ontológicas sobre os saberes africanos, os dilemas doravante de questões epistemológicas e gnosiológicas merece consideração. A inclusão da gnosis de cunho subsaariano na esfera global suscita diferentes críticas e abordagens entre filósofos e cientistas. Por um lado, há quem frise a inconformidade dos saberes africanos com as predefinidas categorias disciplinares e epistemológicas, baseadas na ordem conceptual de cariz ocidental (Mudimbe, 1988), em luz da peculiaridade do ser africano (Senghor, 1965). Por outro lado, defende-se a inclusão da produção cientifica subsaariana nestas categorias, mas com atenção perante questões de categorias de pensamento e de expressão filosófico-linguísticas (Wiredu, 1996; Hountondji, 1983).
Desde os anos Noventa, as teorizações do Ubuntu e do Afro-comunitarianismo (ou comunitarianismo africano) impelem para interligar a filosofia africana enquanto meio de proclamação da dignidade e igualdade do sujeito e da gnosis africana, à filosofia moral, política e sociopolítica. Entre os autores mais relevantes lembramos os estudos pioneiros de Kwame Gyekye, de Kwasi Wiredu, de Ifeaniy Menkiti, de Thaddeus Metz. A investigação africana na filosofia e teoria política visa identificar quais as configurações sociopolíticas endógenas do continente, a relação entre individuo e comunidade e como lidar com os problemas do político em África contemporânea. Ao lado dos estudos no âmbito académico, os avanços da teoria política em África devem muito aos sistemas de governos e experimentações implementadas por lideres como Julius Nyerere, Jomo Kenyatta, Kwame Nkrumah. Estas experimentações políticas marcam um momento importante na história política, e na teoria política africana: a reivindicação de autonomia e capacidade de autogovernação interna, segundo regras e princípios endógenos. Estas resultam claras e expostas em pormenores pelos escritos deixados por Nyerere e Nkrumah, por exemplo, que destacam como estes sistemas políticos fossem concebidos a partir do caracter comuno-cêntrico das demais sociedades africanas, valorizando valores ditos “tradicionais” ou endógenos.
Contudo, importa referir que estas teorizações advêm e pertencem à filosofia política mais que à teoria política. Mesmo que as duas disciplinas sejam contingentes e em mútua intercomunicação, são duas áreas separadas e distintas do conhecimentos. A excessiva enfase em ontologias e metodologias da filosofia para investigar nas questões do político, concorre à promoção do risco de ressaltar demasiado a importância da quintessência africana sobre teorizações da teoria políticas (Kasanda, 2018). A integração sem discriminação da problemática do ser africano em investigações e teorizações corre o risco de enviesar a própria pesquisa, junto com consequentes modelos e resultados, a serem desenvolvidos no continente pela teoria política. Além disso a preponderância da filosofia sobre a teoria política no contexto subsaariano faz com que os estudos de CPT em África se distanciem, em vez de se aproximar, da ciência políticas e das ciências sociais, de forma oposta e contraria às tendências da CPT no contexto global.
No contexto da África lusófona, registra-se uma geral carência de representação de teorias políticas baseadas em culturas e filosofias africanas; esta é compensada pela divulgação de textos, discursos e teorias elaboradas na filosofia (vejam-se, por exemplo, os estudos de Severinho Ngoenha e de Elísio Macamo) e na política. Entre estes últimos, conta-se sobretudo com a produção científica (além da cultural e ideológica) de líderes dos movimentos de libertação nacional, como Amílcar Cabral, Eduardo Mondlane e Agostinho Neto. Textos e discursos destes autores são amiúde relacionados com as reivindicações anticoloniais apresentadas pelos povos africanos e/ou em relação aos planos de restruturação de Estado e sistema de governo após a independência. Considere-se, contudo, que os peso destes autores em textos de teoria política é frequentemente ofuscado em prol de outros autores originários da região subsaariana, mais famosos no contexto internacional, como Nkwame Nkrumah, Jono Kenyatta, Julius Nyerere, Nelson Mandela.
A preferência para este atores “dominantes” nos textos de teoria política de África gera uma insularidade perante autores dos países lusófonos, cujas obras são desviadas para outras áreas do conhecimento, como os estudos africanos, filosofia ou antropologia política. Mesmo constituindo conceitos próprio da teoria política, o escasso interesse para com a CPT e com a teoria política dos países de língua oficial portuguesa (PALOPs) subordina teorias políticas endógenas a estes sistemas filosófico-culturais, obrigando a passar por disciplinas transversais ao fim da divulgação deste conhecimento. Este trajeto obrigatório não desvaloriza outras áreas de estudo, bem pelo contrário; todavia, frisa a marginalização de pensamento e teoria política de África lusófona, e patenteia uma discriminação perante estas na teoria política.
Além da escassa representação de textos e autores dos PALOPs, na literatura portuguesa de teoria política registra-se a míngua existência de artigos, livros e pesquisas sobre estas questões disciplinares e epistemológicas nos PALOPs. Esta carência em termos de representação assim como de divulgação faz com que pensadores, ideias, conceitos e textos provenientes de países lusófonos de África não sejam conhecidos fora deste contexto e, alias, nem dentro do próprio contexto académico dos PALOPs. Em outras palavras, a escassa consideração de teorias, ideias e conceitos endógenos impede a apropriação do conhecimento sobre a qual nos informa Achille Mbembe (2015). A inibição em se apropriar da própria gnosis deriva, em parte, pela reprodução de modelos epistemológicos exógenos no sistema educativo e académico (Mbembe, 2015; [2013] 2018; Ramose, 2016). Além disso, muito pouco conhecimento é dado ao publico académico sobre tradições de pensamento da África lusófona.
Em outras palavras, o pensamento político destas tradições é pouco investigado por autores nativos destes países ou por autores dum país terceiro, ou seja, autores proveniente dum diferente contexto cultural e filosófico que passaram por aquele processo de deslocação e tentam familiar com o estranho (Euben, 1999; Godrej, 2009b). A ausência da representação de teoria políticas africanas “em português” parece ser devida, em parte, ao escasso interesse que o pensamento africano estimula entre teoristas políticos dentro da academia do mundo lusófono. Este desinteresse está conforme a tendências generalizadas dentro da teoria política no plano global, que desconsidera, de forma geral, pensamento e teorias africanos (Von Vacano, 2015); por outro lado, a escassez na literatura deve-se à marginalização do assunto para disciplinas próximas da teoria política.
Face ao isolamento ou desconsideração da teoria política africana, a CPT representa um instrumento excelente para, por um lado, colocar a teoria política portuguesa a par de outras escolas, nomeadamente a anglo-saxónica, e para, por outro lado, constituir um equilíbrio abrangente de representação das teorias políticas, que incluía categorias e conceitos de diferente origem geográfica e cultural. Em outras palavras, a CPT representa uma inovação de relevância na teoria política contemporânea e merece a atenção de teoristas político do contexto africano, assim como de académicos de quaisquer contexto ao fim de confrontar e integrar os cânones estabelecidos da teoria política, para engajar num diálogos de trocas e intercâmbios com outras culturas.
Tal como formulado nas suas origens, o projeto da CPT trabalha rumo a: i) alcançar relações dialógicas e imparativas entre diferentes sistemas de pensamento político, ii) a destruturação da hegemonia epistemológica dos cânones e da descentralização da disciplina, iii) o alargamento do corpus e do conhecimento em teoria política. As condições do sistema global da modernidade, como a globalização, que desencadeiam esta abertura, são só em parte responsáveis para o processo de renovação da teoria política e a consequente origem da CPT. Como exposto pelos estudos cross-culturais, a CPT nasce da natural índole dialógica da teoria política, assim como da sua inerente permeabilidade à outras tradições de pensamento (Black, 2011).
Neste sentido, não há teoria política que desenvolva em isolamento de outras tradições de pensamento. O pensamento e as teorias existentes nos PALOPs influenciaram e interagem na produção da teoria política portuguesa, de forma mais ou menos evidente ou direta. A CPT representa um instrumento ad hoc para dar voz e espaço a teorias, conceitos emergentes e necessários, no cenário global e no local, para as demais tradições de pensamento político ser igualmente representadas na teoria política. A CPT possibilita ampliar a engenharia epistemológica e teórica para o estudo do político - fenómenos, pensadores, pensamentos, textos e teoria - assim como desconstrói pretensas etnocêntricas, pela relativização do “familiar” e do “estranho”.
6. Notas Conclusivas
O artigo começa por apresentar de forma sucinta o que é a CPT. Reaproximando a teoria política às ciência política e as ciências sociais, as fundamentações do projeto da CPT distinguem-se entre três vertentes: a abertura para a aprendizagem entre pares, entre diferentes sistemas e tradições de pensamento político (abertura dialógica e imperativa); a crítica e rebelião desconstrutiva contra a hegemonia epistemológica dos cânones; o alargamento de saber e conhecimento na teoria política, para que problemas e questões da humanidade tornem-se um inquérito de engajamento global. O caracter comparativo da disciplina é dado pela possibilidade de individuar e estudar unidades de análises paralelas a diferentes sistemas de pensamento; numa perspetiva que abandona o significado ortodoxo do termo, a comparar que distingue a disciplina refere-se à abertura desta perante teorias e tradições políticas outras da ocidental e dos cânones.
Em luz desta premissa sobre a CPT, o artigo evidencia a ausência de estudos na disciplina na literatura da teoria política portuguesa. Considerou-se sobretudo a míngua existência de teorias políticas originadas em ou sobre os países africanos de língua oficial portuguesa. Ao escasso interesse pelos académicos ocidentais para pensamento africano acresce-se a insularidade de estudos sobre o político em África para áreas de estudo (estudos africano, antropologia, filosofia) externas à teoria política. Face a esta situação, a CPT representa um instrumento metodológico e epistemológico apto para estimular a descentralização e renovação da teoria política, incluindo conceitos, teorias e autores da África lusófona em pesquisa e literatura.
A relevância da CPT ergue de reivindicações da erudição sobre a ampliação do corpus teórico para criar um teoria política polissémica, plural e global, ao mesmo tempo que nasce dentro do próprio ocidente o dos tempos em que vivemos. As palavras de Diego Von Vacano auxiliam em esclarecer a relevância da CPT em quanto “[in the] late modernity new problems and issues are arising, and it is not clear if the resources of western tradition, on their own, are adequate to address them” (Von Vacano, 2015, p. 18.13). A abertura da disciplina da teoria política “em português” a vozes discordantes dentro da tradição ocidental, tão como a vozes do contexto global, reveste-se assim de dúplice importância. Primeiramente, possibilita a teoria política adquirir e alargar o conhecimento sobre as variadas conceções do político elaborada por teorias, sistemas de pensamento e pensadores ao longo da história em diferentes contextos geográficos e culturais do planeta. Secundariamente, estas conceções representam fontes inovadoras face a dilemas, questões e problemas que o próprio ocidente poderá vir a enfrentar na interconexão do mundo contemporâneo.