Introdução
Os alicerces diretos do quadro relacional galego-português presente tomaram forma a partir de meados do século XIX e, com diferentes ritmos e agentes, desenvolveram-se até, grosso modo, a Guerra Civil espanhola. Foi neste relativamente longo período que agentes da Galiza, vinculados, no início, a um primeiro galeguismo (Manuel Murguia à frente), começaram a elaborar uma série de ideias acerca do entendimento da própria Galiza como entidade geo-cultural autónoma. Entre outras, uma das ideias fortes que vai tomando forma (e com o passar do tempo acaba por converter-se num dos focos de maior tensão no campo galeguista) promove uma relação umbilical com Portugal (e o que se tem denominado Lusofonia) em várias dimensões; entre elas a língua (cfr. Torres, 1999 e 2010). Por seu turno, em diálogo com o impulso planificador dos galeguistas coetâneos, Teófilo Braga, Leite de Vasconcelos, Oliveira Martins ou Alexandre Herculano, agentes portugueses que ocupam na altura posições no campo cultural centrais ou próximas do centro, promovem um entendimento da Galiza em relação direta com o mundo português, trespassada por vínculos como identidade/afinidade de língua, alma, raça, passado ou paisagem. Formulam-se assim, dito muito sinteticamente, os tais alicerces do quadro relacional a partir da ideia de partilha/afinidade de bens ou até de ferramentas (no sentido de Even-Zohar, 2017, p. 76-84), que se atualiza no que denominamos narrativa das afinidades (cfr. Pazos-Justo, 2016).
É de referir, no entanto, a desigual posição dos agentes em diálogo e interessados no contacto galego-português que vai condicionar ideias e práticas em jogo desde o século XIX e até a atualidade; como indica Elias Torres (2010, p. 163; itálicos no original):
Frente à normalidade portuguesa, a elaboração dum sistema literário [entenda-se aqui cultural] galego é paralela à evidência de uma formulação explícita de autonomia política, nos seus diversos graus até à independência. Não é possível explicar esse processo nem as relações culturais galego-lusas, se esquecermos o funcionamento permanentemente político dessa relação, sobretudo por parte galeguista, e o carácter de locus privilegiado que a expressão literária e cultural tem em casos em que a política está interdita ou é pouco rendível.1
Para o caso da Galiza particularmente, mas também para o caso português, a relação, acreditamos, tem de ser entendida e analisada também em função do contexto ibérico e, em épocas recentes, europeu. O conjunto de ideias ou possibilidades que atuam nestes outros quadros têm limitado, condicionado ou até promovido o contacto galego-português.
Deste ponto de partida, nas páginas seguintes, a partir de pesquisa em fontes documentais, pretendemos propor uma identificação das linhas de força do relacionamento galego-português na atualidade a partir de uma identificação das iniciativas político-culturais no quadro relacional em foco, com o intuito de avaliar o seu grau de relevância sistémica.2 A análise, devedora em parte de trabalhos prévios (Pazos-Justo & Paz-Félix, 2023; Pazos-Justo, 2019), irá centrar-se particularmente nas ações acerca do relacionamento de agentes e grupos da Galiza.
1. Quadro relacional ibérico no século XXI
Durante boa parte do século XX as relações entre os dois Estados ibéricos, o Reino da Espanha e a República Portuguesa, foram escassas ou até marcadas por antagonismos fortes, acentuados significativamente durante os longos períodos autoritários (Lois, Escudero & Gusman, 2019, p. 166; cfr. Sardica, 2013, p. 195 e ss.). As relações estiveram marcadas, não só mas determinantemente, pela distância, os receios ou mesmo o rechaço.
Este estado de coisas vai mudar radicalmente a partir da década dos anos 70 e 80 do século XX aquando o início dos processos democratizadores dos dois Estados peninsulares. A promulgação da Constituição da República Portuguesa (1976) e a Constitución Española (1978) vai significar novas oportunidades para as relações intra-peninsulares. Há, no entanto, notáveis assimetrias: o novo regime espanhol promove, em função do conhecido como “estado de las [17] autonomías”, a institucionalização de espaços políticos(-culturais) internos, com importantes capacidades administrativas e políticas.
Neste novo quadro político-institucional, a Galiza vai beneficiar de um governo autónomo a partir de 1981, a Xunta de Galicia, com amplas competências em matéria cultural e outras, permitindo que, por primeira vez na época contemporânea, a Galiza vá contar com capacidade política e institucional efetiva para promover a sua própria planificação cultural (ou educativa, etc.) (cfr. Linheira, 2017). Convém, no entanto, ter presente as dificuldades não menores que, no âmbito do Estado espanhol, enfrenta(ra)m as culturas subestatais quanto ao seu desenvolvimento e inter-relação (cfr. Claesson, 2022) ou quanto aos obstáculos para a planificação de uma diplomacia cultural autónoma e, portanto, descentralizada (Martin & Rius, 2016).
Apesar dos casos de regionalização da Madeira e dos Açores, o novo regime português, por seu turno, não promoveu, em geral, uma política inequívoca de descentralização (cfr. Cadima Ribeiro, 2023); lembre-se ao respeito o elucidativo artigo 51 da Constituição portuguesa: “4. Não podem constituir-se partidos que, pela sua designação ou pelos seus objetivos programáticos, tenham índole ou âmbito regional” (https://www.parlamento.pt/Legislacao/Paginas/ConstituicaoRepublicaPortuguesa.aspx.
Para entender as mudanças basilares no relacionamento intrapeninsular temos de considerar, igualmente, a entrada dos estados na Comunidade Económica Europeia (1986; hoje União Europeia [UE]) como elemento determinante: o novo quadro relacional passa a estar marcado por uma progressiva articulação em várias dimensões que, poderíamos dizer, tem nas Cimeiras Ibéricas (entre 1985 e 2023) a sua mais destacada encenação política e mediática. Neste sentido, cabe referir as intensas relações económicas entre os dois espaços, hoje duas economias fortemente interdependentes (cfr. INE/INE, 2023; Lois, Escudero & Gusman, 2019), ou as crescentes relações culturais derivadas da presença das respetivas organizações de diplomacia cultural Instituto Camões e Instituto Cervantes (cfr. Badillo, 2017); merece nota particular a rápida introdução do espanhol como língua estrangeira no sistema educativo português, até a década de 90 do século passado praticamente inexistente (Santos & Serrano, 2022).
Por outro lado, a análise do quadro relacional ibérico tem de, em nosso entender, considerar a confluência ou articulação, a nível regional, de natureza económica mas também cultural e social derivada dos processos de desfronteirização promovidos pela UE (Lois, Escudero & Gusman, 2019). Surgem, neste contexto, diversas instituições como eurorregiões3 ou eurocidades, entre as quais a Eurorregião Galiza-Norte de Portugal, o que vai implicar o crescente protagonismo de atores locais ou regionais com capacidade para incidir em alguma medida no devir enquanto comunidades e em relação ao Outro ibérico.
2. Iniciativas político-culturais galego-portugueses
O devir do quadro relacional galego-português no século XXI está diretamente condicionado pelo contexto mais acima descrito. Podemos identificar diversas iniciativas de natureza política e/ou cultural a priori significativos, vinculados a âmbitos específicos. Deste modo, como proposta analítica, expomos a seguir os âmbitos conceituais de atuação (inevitavelmente inter-relacionados) que consideramos significativos.
No âmbito institucional, em primeiro lugar, e fruto do processo de desfronteirização antes referido, cabe mencionar a construção da Eurorregião Galiza-Norte de Portugal. A constituição, em certo sentido pioneira no quadro europeu e ibérico, da Comunidade de Trabalho Galiza/Norte de Portugal (CTGNP; 1991), a partir de 2008 Agrupamento Europeu de Cooperação Territorial Galiza - Norte de Portugal (AECT-GNP) foi decisiva. Igualmente, o surgimento do Eixo Atlântico do Noroeste Peninsular (1992), constituído por quase 40 cidades e vilas da Galiza e o Norte de Portugal ou o EURES Transfronteiriço Norte Portugal - Galiza (1998).
Já no século XXI, surgem as denominadas eurocidades: Eurocidade Chaves-Verim (2007), Eurocidade Tui-Valença (2012), Eurocidade Monção-Salvaterra (2015) e Eurocidade Cerveira-Tominho (2018)4. Este percurso vai favorecer uma notória inter-relação económica promovida, por exemplo, por uma significativa melhoria das comunicações por estrada (Cadima Ribeiro, 2021)5; e, mais marcante, tem como consequência o desenvolvimento de um importante capital institucional e relacional (Lange, 2017) propício para o surgimento de iniciativas de diferente signo entre a Galiza e (o Norte de) Portugal.
Note-se que, no espaço ibérico, o caso galego-português é frequentemente referido como o de maior sucesso no que diz respeito ao relacionamento transfronteiriço (cfr. Jurado-Almonte, Pazos-García & Castanho, 2020; Lange, 2017; ou Lois, Escudero & Gusmão, 2019).
Neste contexto foram várias as iniciativas que, como maior ou menor repercussão, encenaram as crescentes relações na sua dimensão cultural. Cabe mencionar aqui o Prémio Literário Nortear Jovens Escritores /Mocidade Escritora - Norte de Portugal - Galiza promovido (a partir de 2015) pela portuguesa Direção Regional de Cultura do Norte e a galega Consellería de Cultura, Educación e Ordenación Universitaria da Xunta de Galicia e o Agrupamento Europeu de Cooperação Territorial Galiza - Norte de Portugal. Igualmente Arri[t]mar. Prémios Música e Poesia Galego-Portuguesa (a partir de 2016), inicialmente uma iniciativa da Escola Oficial de Idiomas de Santiago de Compostela hoje com importante apoio da Xunta de Galicia (cfr. https://aritmar.gal/pt/proxecto/).
Paralelamente, a Radio Televisión de Galicia (RTVG) e a Rádio e Televisão de Portugal (RTP) têm desenvolvido projetos televisivos conjuntos como a co-produção Vidago Palace (2015), Auga Seca (2019) ou Sen Fronteiras (2021).
O processo de institucionalização contribuiu para a dinamização de um outro âmbito conceitual de relação: o educativo/conhecimento. Com foco no mundo universitário, surgiram várias iniciativas que, em linha com o processo de construção da eurorregião política, promovem a inter-relação entre instituições universitárias da Galiza e do Norte de Portugal; destaca-se a Fundação CEER - Centro de Estudos Euro-Regionais Galiza-Norte de Portugal (a partir de 2004), integrada por universidades da Galiza e do Norte de Portugal. Com a participação desta Fundação e financiamento dos fundos FEDER, a partir de 2019, começa a funcionar o projeto Universidade sem Fronteiras (UNISF) que tem por objetivo, entre outros, “eliminar as barreiras administrativas e burocráticas à criação de graus conjuntos” (https://www.universidadesemfronteiras.eu/pt/projeto-educativo).
No âmbito educativo/conhecimento, o programa IACOBUS, promovido pela AECT-GNP e com apoio da Fundação CEER, é o projeto de inter-relação mais ambicioso e com continuidade no tempo; na sua primeira edição, em 2014, financiou 118 candidaturas de membros das comunidades universitárias em foco (Pose et al., 2015).
Não temos conhecimento, por outro lado, de iniciativas similares para os níveis educativos pré-universitários. É de destacar, contudo, o trabalho desenvolvido, no âmbito associativo, da “associação cultural e pedagógica” Ponte… Nas Ondas! (a partir de 1995) que tem dinamizado projetos focados no património imaterial galego-português e foi objeto de vários reconhecimentos (cfr .http://pontenasondas.org/reconhecimentos/?lang=pt-pt).
No âmbito associativo podemos mencionar também a Rede da Galilusofonia (fundada em 2018), “rede de entidades galegas e portuguesas” cujo objetivo principal é “fomentar a nossa língua e cultura comuns no seu espaço natural, a Lusofonia, com grande potencial noutros campos como o económico e o institucional” (http://galilusofonia.nos.gl/). Ainda no âmbito associativo, podemos considerar a bracarense associação cultural Canto D’Aqui que, com apoios vários oriundos dos dois lados do rio Minho, promove desde 2015 o Festival Cultural Convergências Portugal-Galiza.
À parte, por serem iniciativas singulares e que, na sua génese, dizem respeito fundamentalmente à Galiza ou a Portugal, podemos ainda considerar a Lei Valentín Paz Andrade (LEI 1/2014, do 24 de marzo, para o aproveitamento da lingua portuguesa e vínculos coa lusofonía) (Lourido 2019) e o Observatorio da Lusofonía Valentín Paz Andrade. Do lado português, o crescente desenvolvimento dos itinerários jacobeus é um espaço que entendemos significativo e que, convém notar, está de alguma forma institucionalizado após a publicação a publicação em Diário da República do Decreto-Lei nº 51/2019, de 17 de abril (que “Regula a valorização e promoção do Caminho de Santiago, através da certificação dos seus itinerários”).
3. Para uma análise das iniciativas no relacionamento galego-português
Apesar de a identificação das iniciativas no relacionamento galego-português não pretender ser exaustiva, mas representativa6, parece notório que a listagem (vid. Quadro 1) é relativamente numerosa e, até certo ponto, diversa. Inclui iniciativas que remontam à década de 90 do século passado e vão até 2023, ano em que é publicado o decreto de criação do Observatorio da Lusofonía Valentín Paz Andrade.
Iniciativa | Âmbito conceitual | Espaço/Território |
---|---|---|
Eurorregião Galiza-Norte de Portugal | Institucional | Galiza e Norte de Portugal |
Eixo Atlântico | Institucional | Galiza e Norte de Portugal |
EURES Transfronteiriço Norte Portugal - Galiza | Institucional | Galiza e Norte de Portugal |
Eurocidade Chaves-Verim | Institucional | Transfronteiriço |
Eurocidade Tui-Valença | Institucional | Transfronteiriço |
Eurocidade Monção-Salvaterra | Institucional | Transfronteiriço |
Eurocidade Cerveira-Tominho | Institucional | Transfronteiriço |
Prémio Literário Nortear … | Institucional | Galiza e Norte de Portugal |
Arri[t]mar. Prémios Música e Poesia Galego-Portuguesa | Institucional | Galiza e Portugal |
Co-produções da RTVG e da RTP | Institucional | Galiza e Portugal |
Fundação CEER | Conhecimento/Educativo | Galiza e Norte de Portugal |
Universidade sem Fronteiras (UNISF) | Conhecimento/Educativo | Galiza e Norte de Portugal |
Programa IACOBUS | Conhecimento/Educativo | Galiza e Norte de Portugal |
Ponte… Nas Ondas! | Associativo | (tendencialmente) Transfronteiriço |
Rede da Galilusofonia | Associativo | Galiza e Portugal? |
Festival Cultural Convergências Portugal Galiza | Associativo | (tendencialmente) Galiza e Norte de Portugal |
Lei Valentín Paz Andrade | Institucional (Galiza) | Galiza (e Lusofonia?) |
Observatorio da Lusofonía Valentín Paz Andrade | Institucional (Galiza) | Galiza e Lusofonia |
Caminhos portugueses de Santiago | Institucional (e associativo) (Portugal) | Portugal |
Fonte: elaboração própria.
Numa primeira análise, tendo em consideração os âmbitos conceituais de ação (Institucional, Conhecimento/educativo e Associativo), destacamos o facto de 13 das iniciativas identificadas (de um total de 19) estarem vinculadas principalmente ao âmbito Institucional; i. e., são promovidas fundamentalmente por instituições da Galiza e/ou Portugal com fins vários. A natureza das instituições é, por outra parte, bem diversa: intervêm no quadro relacional galego-português instituições como o governo galego, a Xunta de Galicia, mas também instituições locais como podem ser as câmaras municipais que, na Galiza e em Portugal, constituíram as eurocidades.
Por outro lado, duas iniciativas analisam-se aqui como sendo exclusivas no espaço galego (Lei Valentín Paz Andrade e Observatorio da Lusofonía Valentín Paz Andrade) e uma (o desenvolvimento dos caminhos de Santiago em Portugal) como estando vinculada, em primeira instância, ao espaço português.
Identificamos três iniciativas associadas ao âmbito Conhecimento/educativo. As 3 desenvolvidas no mundo universitário e, como já anotámos, não temos notícia de nenhuma proposta no ensino pré-universitário. Por seu turno, foram três as vinculadas ao âmbito Associativo, se bem que a natureza das organizações em causa é muito desigual, sendo provavelmente Ponte… Nas Ondas! a mais consolidada (e reconhecida).
É particularmente relevante a análise do Espaço/Território de atuação que atribuímos (não sem algumas dúvidas) a cada uma das iniciativas. Galiza e Norte de Portugal é o Espaço/Território que se destaca, com oito das iniciativas elencadas. A seguir, o Espaço/Território Transfronteiriço, com cinco, diz respeito a iniciativas que se desenvolvem principalmente em zonas raianas. Já com menor expressão: Galiza e Portugal com três e Galiza e Lusofonia com duas (ou uma).
Doutro ponto de vista, caberia ainda questionar os discursos que atualizam as iniciativas em foco. Assim, a modo de proposta analítica, entendemos haver, em regra, uma constante transversal ao conjunto das ações: a invocação da narrativa das afinidades mais acima mencionada; narrativa que, a miúde, assume outras dimensões que dizem respeito a objetivos, em regra, de tipo económico.
A constitución dun espazo eurorrexional é unha resposta firme a unha determinada realidade territorial e que está argumentada na funcionalidade dese espazo ou na optimización da súa eficacia. Non obstante, esta figura non só está motivada pola competitividade ou a rendibilidade, senón que en moitos casos existe tamén un legado histórico, cultural e social que enriquece e facilita ese proxecto. Moitas son as Relacións socioeconómicas transfronteirizas sucedidas na raia galaico-lusa (Carballo, 2014, p. 2413).
A citação é, entendemos, exemplar no sentido que espelha os elementos recorrentes nos argumentários à volta das iniciativas objeto de estudo: “competividade” “eficacia”, “relacións socioeconómicas” num “espazo eurorrexional” marcado por um “legado histórico, cultural e social que enriquece e facilita”. Este discurso, que privilegia o Espaço/Território Galiza e Norte de Portugal, adota uma orientação claramente económica em iniciativas como a representada pelo Agrupamento Europeu de Cooperação Territorial Galiza - Norte de Portugal (AECT-GNP):
Localizada no Noroeste da Península Ibérica, a Eurorregião formada pela Galiza e o Norte de Portugal configura-se actualmente como um espaço de forte interrelación social, económica e cultural, pleno de oportunidades e com um grande potencial de desenvolvimento futuro. O território constituído pelas duas regiões ocupa uma superfície total de 51 mil Km2 (Galiza 29.575 e Norte de Portugal 21.284) e concentra uma povoação de 6,4 milhões de habitantes (Galiza 2.796.089 e Norte de Portugal 3.745.439), o que se traduz numa densidade de povoação de 125,8 hab/Km2 […] Em soma, este breve palco caracterizador dos dois espaços que constituem a Eurorregião Galiza-Norte de Portugal assume um carácter de forte complementaridade mas, simultáneamente, converte este espaço numa plataforma territorial fortemente competitiva num contexto de crescente globalização e internacionalização da economia (AECT-GNP).
O acento nas possibilidades de desenvolvimento económico ou de partilha de serviços públicos seria principal nos discursos nas iniciativas do Espaço/Território que designamos transfronteiriço.
A Lei Valentín Paz Andrade (LEI 1/2014, do 24 de marzo, para o aproveitamento da lingua portuguesa e vínculos coa lusofonía), promovida por, dito sinteticamente, grupos interessados no contacto português na sua maioria filiados ao reintegracionismo linguístico(-cultural) galego, surge como uma Iniciativa Legislativa Popular (Evans, 2019, pp. 45 e ss.; cfr. Lourido, 2019) e implica, em certo sentido, uma mudança nas políticas públicas das instituições centrais da Galiza em relação a Portugal e à Lusofonia.
Apesar de que “tivo que introduzir o português pola janela do estrangeiro ao ser vedada a entrada pola porta do próprio, expulso há anos do nosso universo do ensino formal” (Torres, 2019, p. 145), a Lei Valentín Paz Andrade pode contribuir a colocar novamente na agenda pública galega as relações com o mundo em português em destaque e estabelece as condições para o surgimento de outras iniciativas e promove o lento, mas progressivo, incremento do número de alunos de português no ensino pré-universitário7.
Aqui convém notar o papel que a língua se constitui discursivamente como o mais importante elemento a justificar o contacto com a Lusofonia, o que, em função do processo de substituição (ou dialetização) linguística em curso na Galiza, problematiza notoriamente os objetivos definidos e o próprio contacto.8
O projeto Arri[t]mar. Prémios Música e Poesia Galego-Portuguesa9 e o Observatorio da Lusofonía Valentín Paz Andrade10 são duas iniciativas que surgem no espaço de possibilidades criado pela Lei Valentín Paz Andrade. A segunda iniciativa, em fase de implementação, configura-se aparentemente como um instrumento relevante nas relações a vir entre a Galiza e Portugal/Lusofonia:
O galego é un valor cultural que nos identifica como pobo e que nos conecta cunha comunidade maior de máis de 270 millóns de persoas que falan portugués, xa que a intercomprensión entre ambas as linguas é posible sen necesidade de mediación. Deste xeito, empresas, institucións e, en xeral, toda a sociedade poden aproveitar esta vantaxe lingüística, o que nos outorga importantes beneficios nas vertentes cultural e económica e nos concede unha gran proxección internacional. A lusofonía compóñena o conxunto de países que teñen como lingua oficial o portugués, así como aquelas comunidades que comparten lazos históricos e culturais con eles. En 1996 constituíuse a Comunidade de Países de Lingua Portuguesa co compromiso de reforzar os lazos de solidariedade e de cooperación que os unen, conxugando iniciativas para a promoción do desenvolvemento económico e social dos seus pobos. Tradicionalmente Galicia mantén uns fortes lazos co mundo da lusofonía e, en particular coa Rexión Norte de Portugal, a través da Comunidade de Traballo Galicia-Norte de Portugal, constituída en 1991, e da Agrupación Europea de Cooperación Territorial Galicia- Norte de Portugal. Por outra banda, desde a entrada de España como observadora asociada da Comunidade de Países de Lingua Portuguesa (CPLP) en xullo de 2021, grazas ao decisivo impulso dado pola nosa Comunidade Autónoma, Galicia vai estar estreitamente vinculada a este novo labor para desenvolver todo o potencial de tan importante asociación (Decreto 134/2023).
No excerto do preâmbulo do Decreto da Xunta de Galicia, para além das referências ao espaço eurorregional ou às tomadas de posição do Governo espanhol no âmbito da Comunidade de Países de Língua Portuguesa (CPLP)11, destaca o papel central outorgado à língua e o entendimento da Lusofonia, em nosso parecer, como um espaço de possibilidades para o “desenvolvemento económico”.
Por último, parece-nos pertinente mencionar rapidamente o processo em curso de desenvolvimento dos caminhos de Santiago em Portugal como uma das vias que pode(ria)m atuar no quadro relacional galego-português. Neste sentido, convém assinalar que o Decreto-Lei nº 51/2019, de 17 de abril (que “regula a valorização e promoção do Caminho de Santiago, através da certificação dos seus itinerários”), em nenhum momento faz qualquer referência à Galiza (sim, em várias ocasiões, à Europa). Por outro lado, será preciso apontar que, no processo de desenvolvimento dos itinerários jacobeus em solo português, parecem despontar fundamentalmente objetivos de ordem turístico-económica (cfr. Pazos-Justo et al., 2023); i. e., as iniciativas, particularmente locais, de “invenção” de caminhos de Santiago perseguem, aparentemente, promover as economias locais, deixando a um lado as potencialidades socioculturais, em geral, e as de relação com a Galiza, em particular, não recorrendo de forma generalizada, portanto, à narrativa das afinidades.
Considerações finais
Em função do exposto, consideramos viável entender que o quadro relacional galego-português experimentou alterações notáveis a partir da década de 90, derivadas fundamentalmente do novo contexto que a entrada dos dois Estados peninsulares na União Europeia. Entendemos, portanto, que as relações galego-portuguesas têm obrigatoriamente de ser analisadas também no seu contexto ibérico e europeu. O surgimento de iniciativas como a Eurorregião Galiza-Norte de Portugal ou o Eixo Atlântico só podem ser explicadas em função das políticas europeias de, por exemplo, desfronterização, em articulação com o interesse dos dois estados por fortalecer as suas relações económicas.
Como hipótese de trabalho, entendemos que as várias iniciativas aqui elencadas estão de alguma forma ancoradas discursivamente na mencionada narrativa das afinidades. Isto mostra a longevidade e vitalidade de um conjunto de ideias, como vimos, elaboradas a partir do século XIX; bem mas também ferramenta útil para o lançamento de iniciativas de signo diverso e em função de interesses e objetivos de grupos igualmente diversos.
É notória, no entanto, a mutação da própria narrativa: se na sua formulação inicial delimitava o espaço Galiza/Portugal/Lusofonia, com acento na dimensão sociocultural, hoje parecem ganhar força outras dimensões. Assim, fruto essencialmente das políticas da União Europeia, uma das linhas de força passa por uma regionalização do relacionamento em foco - Galiza e Norte de Portugal/Transfronteiriço -, com destaque para atores regionais e locais, maioritariamente do âmbito institucional; o que poderíamos entender como um processo em curso, com ampla relevância sistémica, de eurorregionalização do contacto galego-português.
Os vários exemplos aqui citados dão conta igualmente da ressemantização da narrativa das afinidades ao se estabelecerem tendencialmente relações de correspondência entre as afinidades socioculturais e as oportunidades de, digamos sinteticamente, “desenvolvimento económico”. Esta alteração em curso, consideramos, mostra os interesses e ideias dos atores e grupos que atuam no quadro relacional em estudo.
O exposto também nos permite debuxar um processo em construção em que a língua é invocada, sobretudo a partir de organizações da Galiza, como o elemento maiúsculo que justificaria e promoveria a relação. Como foi referido, se temos em conta o singular mapa sociolinguístico da Galiza, marcado por uma acusada decadência quantitativa e qualitativa do galego, o real alcance das iniciativas poderá ter os seus resultados, nomeadamente na dimensão sociocultural, seriamente comprometidos.
Se a língua é um elemento entendido como (com matizes dependendo dos grupos) comum, mas amplamente problemático ou deficitário no território galego, os caminhos de Santiago não parecem configurar-se como uma outra alavanca relevante no relacionamento galego-português uma vez que, dito com toda a cautela, não estaria a contribuir significativamente para estabelecer novas vias de contacto na dimensão sóciocultural. Dito por outras palavras: o “¡Buen camino!” (espécie de saudação habitual entre as pessoas peregrinas popularizado por produtos como o filme The Way) deve de continuar a dominar frente a “Bom caminho!” ou mesmo “Bo camiño!”.
Por fim, se deixar de ter presente a natureza exploratória deste trabalho, entendemos que a análise do quadro relacional galego-português no século XXI deve considerar, em termos de relevância sistémica, os processos em curso de ressemantização da narrativa de afinidades no sentido da elevação a primeiro plano da dimensão económica (versus a sociocultural) e, naturalmente, na própria delimitação dos espaços geo-culturais em jogo (Galiza-Norte de Portugal versus Galiza-Portugal[-Lusofonia]) que poderíamos denominar de eurorregionalização.