Introdução1
“Uma das razões mais desmotivantes para mim foi o facto de trabalhar há quase 20 anos na mesma instituição […] e este ano ter recebido o relatório do PREVPAP em que esta instituição renega qualquer vínculo comigo. Apesar de esperado, foi realmente um golpe muito duro (Luísa, 41 anos, Investigadora com contrato)”. [Ferreira, 2023a, p. 127]
“Cada vez se exige mais aos jovens investigadores para entrar na carreira, enquanto nada é exigido a quem está no sistema há anos. Muitos recém-doutorados têm melhores CV que muitos Professores Auxiliares e Associados. A maioria dos concursos da carreira docente apesar de serem públicos, já têm um candidato pré-escolhido e só em casos demasiados óbvios não são vencedores. Esta situação só fomenta os ‘apadrinhamentos’ por parte dos docentes em topo de carreira e a endogamia académica, bloqueando qualquer mobilidade de investigadores dentro do país. (Luís, 39 anos, Investigador com contrato)” [Ferreira, 2023a, p. 126]
“A missão das universidades pressupõe uma rotação elevada dos seus investigadores e bolseiros”. [Comunicado do Conselho de Reitores das Universidades Portuguesas, 6 de março de 2018]
“Os estudantes de investigação não são já apenas os jovens de 18 anos que aparecem a cada outono cheios de novos sonhos em busca do desconhecido. Com efeito, outros estudantes procuram agora a universidade para fazer a sua formação pela participação nas equipas de investigação dirigidas pelos seus professores. Estes estudantes de doutoramento ou de pós-doutoramento são o sangue novo que alimenta a vida e garante a produtividade científica das universidades e, num menor grau, dos institutos politécnicos”. [Gomes, 2023, p. 115]
Os discursos acima transcritos traduzem posições extremadas que ilustram, de forma particularmente cristalina, as divergências relativamente comuns ao longo das últimas décadas, entre, por um lado, investigadores precarizados, que transitam desordenadamente entre contratos de trabalho a prazo, contratos de bolsa, vínculos pontuais e períodos sem rendimentos, e, por outro, as instituições de ensino superior e ciência e os seus decisores, na maioria dos casos, integrados nas carreiras docentes do ensino superior.2 À primeira vista, investigadores precarizados e decisores/docentes permanentes, interpretam, sentem e narram, de forma antagónica, ou pelo menos de forma bastante diversa, o papel dos investigadores e da investigação a tempo inteiro nas suas instituições. Sendo estes discursos ilustrativos de perfis de académicos em diferentes posições estruturais no campo, reconhece-se que estes não esgotam os diferentes matizes de sentidos revelados por uma análise cuidada da literatura científica e das intervenções públicas dos diferentes atores deste sector, particularmente num período mais recente3 (Ferreira, 2023a; Rodrigues, 2023). No entanto, essa análise também permite assinalar regularidades que importa situar e discutir, tendo em conta os posicionamentos e os recursos a que têm acesso os diferentes grupos de académicos, os regimes e as práticas de recrutamento para o exercício de diferentes funções na academia, e as raízes estruturais do quadro atual de ampla precarização no sector do ensino superior e da ciência.4
O presente ensaio não realizará uma análise detalhada destes discursos, mobilizando-os apenas como mote para pensar os processos sociais que têm vindo a possibilitar a construção de mecanismos antagónicos de recrutamento no sector do ensino superior e da ciência em Portugal. Neste sentido, e tendo por inspiração a lógica que subjaz ao trabalho “Portugal, sociedade dualista em evolução” de Adérito Sedas Nunes (1964), descrever-se-ão as assimetrias entre as “vastas zonas” de trabalhadores precarizados e as “áreas restritas” de académicos permanentes, as “dinâmicas evolutivas” da situação atual e as suas implicações científicas e sociais. Este percurso reflexivo implica, à partida, uma simplificação da multiplicidade de posicionamentos, e um enfoque nos antagonismos e respetivos processos de (re)construção.
O texto iniciar-se-á com um retrato global dos docentes e dos investigadores que trabalham permanentemente ou precariamente nas organizações de ensino superior e ciência. Seguir-se-á uma breve articulação da história do sistema científico e tecnológico no Portugal democrático, com a incrustação do processo de neoliberalização na academia. Trata-se de uma abordagem relativamente esquemática que mais não pretende do que enquadrar algumas dualidades dessa história recente, e, muito especificamente, as que tomaram forma no desenvolvimento e na aplicação dos estatutos das carreiras docentes do ensino superior e da carreira de investigação. O texto reter-se-á ainda na tradução destas dualidades nas organizações deste sector, no trabalho desenvolvido pelos trabalhadores académicos e nas formas de agir, pensar e sentir acima ilustradas. Verificar-se-á que, ao longo de todo o período democrático, diferentes mecanismos de fechamento têm em larga medida impossibilitado a integração permanente de investigadores a tempo inteiro, uma tendência que, num período mais recente, é acompanhada por uma precarização crescente do corpo docente. Estas tendências possibilitam excluir um conjunto alargado de atores da generalidade dos processos de gestão, governança e tomada de decisão institucional, incluindo da definição das agendas pedagógicas e científicas. Paralelamente, este quadro possibilita uma centralização do poder num conjunto restrito de atores, genericamente docentes-gestores. Neste contexto, a entrada permanente na academia é, em larga medida, acessível apenas aos que, possuindo as qualificações necessárias ao exercício das funções em causa e pertencendo às redes de sociabilidade adequadas, demonstrem, uma e outra vez, um alinhamento com a cultura organizacional, garantindo não só a preservação da identidade das instituições de pertença, como uma sedimentação de relações de dependência (Horta e Yudkevich, 2016; Tavares et al., 2015). Por diferentes vias, fragiliza-se a democracia e a liberdade académica, colocando em causa um exercício pleno tanto das atividades docentes, como das atividades de investigação.
Finalizar-se-á esta reflexão com o reconhecimento do trabalho de investigação e de ensino enquanto atividades permanentes, ainda que articuláveis, e com o reconhecimento da necessidade de implementação de processos de gestão e de governança democráticos e de uma promoção de um ambiente onde o princípio da liberdade académica não se encontre direta ou indiretamente posto em causa. Estas características são aqui entendidas como essenciais à construção de um sector dinâmico, que reconheça as funções diversas e complementares que o compõem, que contribua consequentemente para uma construção coletiva de conhecimento fundamental e aplicado, que garanta ambientes reflexivos e promotores de um ensino e de uma investigação críticas, essenciais para pensar o mundo e para imaginar como ultrapassar os desafios societais com que nos deparamos hoje e com que nos confrontaremos no futuro.
Vínculos e mecanismos de recrutamento de investigadores e de docentes na atualidade
Ao longo de todo o período democrático em Portugal, a integração permanente de investigadores nas organizações de ensino superior e ciência tem sido extraordinariamente limitada, constituindo, a contratação ao abrigo de diferentes tipologias precárias (i. e., contratos a prazo, contratos de bolsa ou vínculos pontuais), o regime preferencial (Castro e Brandão, 2022; Ferreira, 2023a). Atualmente, este quadro tem tradução numa elevadíssima precarização daqueles que desenvolvem atividades de investigação a tempo inteiro, atingindo mais de 90% de todos os 6719 doutorados contratados para o exercício de atividades de investigação científica, de desenvolvimento tecnológico ou de gestão e comunicação de ciência e tecnologia, após o início de 2017.5 A generalidade destes contratos é acedida através de concursos públicos internacionais altamente competitivos e, em larga medida, baseados em métricas padronizadas de produtividade.6 O facto de estes trabalhadores estarem sucessivamente sujeitos a um regime de avaliação extremo, baseado em indicadores percecionados como (mais) objetivos, ou de terem tido sucesso consecutivo em concursos que excluem cerca de 90% dos candidatos e que são avaliados por júris de académicos que não trabalham em Portugal, diminuindo assim um eventual peso que o capital social dos candidatos pudesse ter, acaba por contribuir para sedimentar um sentimento de excecionalidade nestes investigadores precarizados (Ferreira, 2023b). Paralelamente ao cumprimento de todos os requisitos formais para uma entrada permanente na academia (i. e., graus académicos; produção científica; projetos; aulas; extensão científica, entre outros) e às avaliações “excelentes” que vão acumulando ao longo das suas trajetórias laborais, estes investigadores testemunham a integração de um número muitíssimo reduzido de colegas investigadores que apresentam um “mérito científico”, avaliado segundo as métricas do campo, similar ao seu. A simples concretização destas integrações permite que estes trabalhadores precarizados, que constroem as suas identidades a partir do seu trabalho, consigam imaginar que, a prazo, também a eles será reconhecido institucionalmente o mérito que demonstram continuadamente (Ferreira, 2023a, 2023b).
A situação relativa aos trabalhadores docentes é bastante diversa. Por um lado, o mecanismo preferencial de contratação foi, ao longo de várias décadas, a integração nas carreiras docentes do ensino superior. Atualmente, estas integrações realizam-se através de concursos públicos cujos editais valorizam não só as anteriores experiências letivas e tarefas de gestão institucional, mas também as métricas padronizadas de produtividade científica. Apesar destas características, vários trabalhos científicos têm revelado uma elevada presença de mecanismos endogâmicos na contratação de docentes em Portugal (Horta e Yudkevich, 2016; Tavares et al., 2015), favorecendo-se um mecanismo que promove uma limitação da integração permanente aos “herdeiros” das cátedras. Este tipo de mecanismo reproduz as hierarquias institucionais e promove uma construção de relações de interdependência informais entre quem recruta e quem é recrutado, ou potencialmente recrutável. A justificação para a permanência de mecanismos de recrutamento endogâmico surge geralmente associada às fases iniciais de desenvolvimento dos sistemas científicos e tecnológicos, já que estes processos possibilitariam a consolidação de equipas e a preservação das normas e dos valores organizacionais. No entanto, a persistência neste tipo de recrutamento profissional coloca em causa a qualidade académica, aferida tanto pelos indicadores comummente utilizados para avaliar a produtividade científica, como de aqueles relativos ao estabelecimento de redes de investigação, como ainda por outros que avaliam a capacidade de produção de conhecimento disruptivo e o envolvimento em práticas que ultrapassem as fronteiras disciplinares (Horta, Meoli e Santos, 2022; Horta e Yudkevich, 2016; Tavares et al., 2022). Os mecanismos endogâmicos colocam, pois, em causa, o cumprimento das funções das organizações de ensino superior e ciência e do sistema científico e tecnológico como um todo.
Em termos globais, confrontamo-nos com dois regimes de recrutamento díspares, com lógicas de validação que competem entre si e que criam um ambiente de oposição permanente, e muitas vezes frontal, como ilustrado nos discursos acima transcritos. Dois regimes que estabelecem uma oposição entre os que permanecem à porta da academia, através do sucesso em mecanismos competitivos assentes numa “metrificação do conhecimento”, e aqueles que, apresentando as qualificações adequadas, traduziram o seu capital simbólico, social e cultural numa integração permanente. Reconhecendo a elevada presença de mecanismos endogâmicos, mas reconhecendo também que nem todas as integrações obedecem a esta lógica, serão os trabalhadores docentes que, desenvolvendo atividades de investigação a tempo parcial e, consequentemente, tendo menores oportunidades de produção científica que cumpram as expectativas do campo académico, serão os principais responsáveis pelas atividades de ensino e de gestão das suas instituições. Uma pequena franja destes docentes permanentes contribuirá para a definição não só das agendas pedagógicas, mas também das agendas científicas, relegando para segundo plano a grande maioria dos que desenvolvem ciência a tempo inteiro. Esta situação estabelece uma hierarquia relativa entre docentes e investigadores a tempo inteiro, fomenta sucessivos desentendimentos entre grupos profissionais que desenvolvem atividades complementares e articuláveis e, nos dois casos, essenciais ao funcionamento das organizações de ensino superior e ciência que têm por missão, lembre-se, não só a qualificação da população, mas também a produção de conhecimento científico e a sua difusão.7
Finalmente, é possível reconhecer um mecanismo adicional de recrutamento precário, muitas vezes utilizado na contratação de docentes convidados e de investigadores em projetos de investigação. Ao nível do recrutamento docente, esta situação decorre das limitações impostas ao recrutamento para as carreiras e que, nos últimos anos, se traduziu numa impossibilidade de o corpo docente permanente cumprir todas as necessidades letivas das suas instituições. Assim, mesmo que a entrada na carreira docente, por oposição à entrada na carreira de investigação, tenha genericamente persistido ao longo de todo o período democrático,8 hoje também encontramos, entre os que desenvolvem funções docentes, uma maior prevalência de contratos precários do que de contratos permanentes (52% versus 46%, no ano letivo de 2020/20219). Os mecanismos de contração para estas posições de docente convidado (figura criada para a contratação de especialistas de reconhecido valor, mas hoje utilizada de forma mais abrangente), revelam um certo grau de convergência com o recrutamento de investigadores precarizados para desenvolver tarefas específicas em diversas tipologias de projetos de investigação. Cumprindo os candidatos os requisitos de admissão ao concurso e apresentando as características específicas para o desenvolvimento das funções em causa, a diferenciação basear-se-á nas redes de sociabilidade e num alinhamento dos potenciais candidatos com a cultura organizacional10 (Mauri, 2019; May, Peetz e Strachan, 2013). Em suma, estas diferentes formas de recrutamento, possibilitaram construir organizações de ensino superior e ciência onde convivem docentes em posições estáveis e um número muito restrito de investigadores permanentes, nos dois casos, com acesso a recursos laborais mais vantajosos, com um grande número de investigadores doutorados precarizados e números crescentes de docentes precarizados, muitas vezes excluídos dos processos de participação democrática. Recapitulando um conceito marxista anteriormente mobilizado para descrever esta situação noutras geografias, as instituições de ensino superior e ciência caracterizam-se hoje pela presença de um imenso exército de reserva de trabalhadores académicos precarizados (Marx, 1979 [1890]; Vatansever, 2020).
A mobilização deste conceito remete, neste caso, para o conjunto de trabalhadores académicos sem emprego ou em posições laborais frágeis e disponíveis para colmatar necessidades variáveis do capital. Um posicionamento laboral extremamente vulnerável e que cumpre uma dupla função. Por um lado, pressiona estas pessoas a sujeitarem-se a trabalhar em condições adversas na esperança de uma potencial entrada definitiva no sistema. Por outro, pressiona todos os que conseguiram um lugar permanente a produzir, no caso dos docentes permanentes, nos tempos não letivos, os mesmos indicadores que os colegas em condições precárias produzem. Essa produção possibilitaria garantir a manutenção de um estatuto académico aparentemente colocado em causa por aqueles que, estando à porta da academia, mas dedicando-se a investigar a tempo inteiro, apresentarão em média curricula científicos mais desenvolvidos (Diogo, Carvalho e Queirós, 2022; Kwiek, 2016).
Temos assim uma disjunção entre posições objetivas mais favoráveis na academia e associadas em larga medida ao académico, professor, integrado permanentemente numa carreira docente e investigador a tempo parcial, e identidades subjetivamente construídas, que apresentam o académico não apenas como aquele que ensina, mas como aquele que produz conhecimento (Carvalho, 2017). No que à produção de conhecimento diz respeito, os investigadores a tempo inteiro, mesmo que com todos os pesos associados à precariedade, estarão numa posição favorável. Esta disjunção cria necessariamente tensões entre trabalhadores precarizados e permanentes, dificultando que, uns e outros, presos em corridas imparáveis, mas inerentes à construção de um perfil de indicadores distintivo e excecionalizado, e, por isso mesmo, dificilmente alcançável, consigam imaginar a posição do outro e compreender as raízes estruturais da atual conjuntura numa academia neoliberalizada que, com diferentes níveis e sob diferentes formas, explora ambos.
A próxima secção deste ensaio abordará como é que se criou um consenso social que sucessivamente legitima esta condição de excecionalidade, pese embora os reconhecidos problemas científicos e sociais decorrentes da situação laboral precária de longa duração. Tais problemas traduzem-se numa reprodução de desigualdades sociais mais abrangentes (ex., classe, género, étnico-raciais) (Arday, 2022; Campos, 2011; Ivancheva, Lynch e Keating, 2019); numa produção científica que ainda que muito relevante de acordo com as métricas do campo é percecionada pelos próprios como apresentando menor qualidade do que potencialmente poderia ter se desenvolvida em condições objetivas estáveis; em impactos nas vidas e na saúde física e mental dos trabalhadores precarizados; e em processos de abandono do sector académico ou de emigração (Ferreira, 2023a).
Este quadro atual não é indiferente à história simultaneamente próxima e diversa da institucionalização das carreiras docentes do ensino superior e da carreira de investigação científica em Portugal e do seu cruzamento, nas décadas mais recentes, com a incrustação da neoliberalização neste sector. Se a primeira linha orientadora poderá apontar para as raízes das reportadas dualidades, a segunda aproximará o desenvolvimento de atividades docentes e de investigação a tempo inteiro, não numa expectável complementaridade das referidas funções, mas num esbatimento das assimetrias entre as condições laborais precárias dos trabalhadores responsáveis pelo seu desenvolvimento.
Ensino superior e ciência no quadro da democracia em Portugal: legitimação sucessiva de regimes excecionais de contratualização
Nos quase 50 anos que medeiam entre o momento presente e a revolução democrática de 1974, o sector do ensino superior e da ciência sofreu alterações profundas que se traduzem, de um ponto de vista global, em tendências de crescimento e de diversificação.11 Estas transformações decorreram a ritmos diversos e conduziram, por exemplo, a uma diversificação dos tipos organizacionais e à sua implantação em todo o território nacional; a um crescimento do investimento público e privado; a uma expansão do número de diplomados e a um alargamento da internacionalização e da produção científica ( Rodrigues e Heitor, 2015). Se estas tendências globais de crescimento se encontram amplamente retratadas na literatura científica e celebradas nos meios de comunicação social, acabam por obscurecer um conjunto de questões centrais para a consolidação do sistema científico e tecnológico. Entre estas, destacar-se-á, ao longo dos próximos parágrafos, a história de precarização contínua dos investigadores a tempo inteiro e a mais recente expansão deste processo aos académicos que desempenham funções docentes.
As décadas que se seguem à revolução democrática são profundamente marcadas pela consolidação do Estado social e pela universalização tendencial do acesso a serviços públicos, incluindo ao ensino superior. Ao longo destas décadas é produzido e aplicado um conjunto de legislação que, ambicionando acréscimos da eficiência e da eficácia organizacional, atribuiu maior autonomia às instituições deste sector e introduziu a colegialidade nos processos de tomada de decisão.12
A estabilização do corpo docente do ensino superior, responsável, à época, pelo ensino e pela investigação, é legitimada, em 1979, através da publicação do Estatuto da Carreira Docente Universitária, seguida, já no início da década de 1980, pela publicação do Estatuto da Carreira do Pessoal Docente do Ensino Superior Politécnico.13 Estes estatutos, que foram várias vezes modificados ao longo das décadas que se seguiram, consagraram as várias categorias das carreiras e os seus regimes contratuais, possibilitando, a par de contratações permanentes, contratações a prazo e a título excecional de especialistas, geralmente com outro emprego à margem da vida académica. No seu conjunto, os estatutos das carreiras docentes do ensino superior, ao definirem as atividades a desenvolver por estes profissionais, a saber, o ensino e a investigação, possibilitaram o desenvolvimento de unidades de investigação no seio das universidades.
Em 1980, é publicado o Estatuto da Carreira de Investigação Científica a aplicar em organismos dependentes do Ministério da Educação e Ciência.14 O preâmbulo deste estatuto é particularmente elucidativo, já que nele se justifica a necessidade da aplicação da carreira de investigação científica nas universidades, tendo por base o elevado desenvolvimento de algumas áreas de conhecimento e as características distintas, e nem sempre compagináveis, necessárias ao exercício de atividades docentes e de atividades de investigação. Nos anos seguintes, desenvolver-se-ão regimes similares aplicáveis a organizações dependentes de outros ministérios, procedendo-se, em 1988, à uniformização destes estatutos e a uma reaproximação das carreiras docentes e de investigação.15
No entanto, apesar da legitimação legal da carreira de investigação científica e da sua justificação pelo legislador, esta carreira terá aplicação extremamente reduzida ao nível das instituições de ensino superior, sendo favorecida a aplicação do Estatuto do Bolseiro de Investigação, aprovado em 1989.16 Em oposição à aplicação residual do anterior Estatuto da Carreira de Investigação Científica nas instituições de ensino superior, o Estatuto do Bolseiro será profusamente aplicado, já que possibilitava o desenvolvimento de atividades de investigação a tempo inteiro, inscritas na missão destas instituições, sem o seu investimento direto, sem o reconhecimento de uma relação laboral e, simultaneamente, estabelecendo uma relação hierárquica de dependência entre os responsáveis pela “formação de cientistas e tecnólogos” e os ditos “cientistas e tecnólogos” (Castro e Brandão, 2022). Este apontamento permite compreender que, quando se abre a possibilidade de desenvolvimento de atividades de investigação a tempo inteiro nas organizações de ensino superior, a aplicação privilegiada do Estatuto do Bolseiro relega essas mesmas atividades para posições precarizadas e subalternas, desresponsabilizando as instituições daqueles que, na prática, serão os grandes responsáveis pelo cumprimento de uma das suas missões. Se a origem da aplicação deste estatuto remete para a história particular do sector do ensino superior e da ciência em Portugal, já a expansão da sua aplicação, e, com ela, a expansão da precarização dos investigadores a tempo inteiro, revelar-se-á alinhada com um contexto global de liberalização financeira, destruição de emprego e flexibilização das relações laborais.
Entre o final do século XX e o início do século XXI, os princípios do neoliberalismo começam a enraizar-se na academia em Portugal. Estes princípios ver-se-ão legitimados de forma mais abrangente através da aplicação do Regime Jurídico das Instituições de Ensino Superior (RJIES), em 2007. Será este regime que proporcionará a concentração de poder nestas organizações, a diversificação dos atores que financiam e influem nas suas agendas, a instrumentalização das práticas de ensino e de investigação, a externalização de serviços e o estabelecimento de mecanismos de prestação de contas, características distintivas da neoliberalização da academia (Ball, 2003, 2015).
Após anos de crescimento e diversificação deste sector, a aprovação do RJIES decorre num contexto global conturbado marcado pela crise financeira, a que se seguirá a crise das dívidas soberanas na Europa, em 2010, e a intervenção da troika 17 em Portugal, entre 2011 e 2014. Neste quadro, o regime excecional de precarização da investigação a tempo inteiro, lembre-se, regime continuamente aplicado em Portugal nas instituições de ensino superior e ciência, está em tudo alinhado com os princípios que subjazem ao crescimento da liberalização e flexibilização do mercado de trabalho. Num ambiente de expansão de vulnerabilidades sociais a franjas alargadas da população, os vínculos precários dos investigadores permanecem inquestionáveis. As dificuldades associadas a um contexto global conturbado são acompanhadas pelas dificuldades particulares deste sector (por exemplo, as decorrentes da implementação de um modelo de decisão colegial num sector massificado; da diminuição do número de estudantes e do crescimento da competição inter-organizacional) favorecendo-se, assim, uma aceitação dos princípios do neoliberalismo.
Esta situação começa a alterar-se em 2015, com um governo minoritário do Partido Socialista que, fruto dessa conjuntura possibilitou uma maior influência do Bloco de Esquerda, do Partido Comunista Português e do Partido Ecologista “Os Verdes”. Foi esse governo que aprovou dois pacotes legislativos que influíram diretamente no regime de contratação de trabalhadores académicos. Um primeiro, o Programa de Regularização dos Vínculos Precários na Administração Pública (PREVPAP),18 possibilitava que trabalhadores precarizados acedessem a lugares de carreira. Presumivelmente, esta seria uma oportunidade crítica para a resolução do problema da precariedade, de um modo geral, e das situações precárias no sector académico. No entanto, e em linha com o posicionamento anterior das instituições de ensino superior e ciência, dos seus decisores e dos sucessivos governos; em linha, também, com a argumentação de que a investigação, estando plasmada na missão das universidades, não seria uma necessidade permanente das instituições de ensino superior, a aplicação deste quadro legal apenas possibilitou a integração de cerca de três centenas de trabalhadores distribuídos entre funções docentes e de investigação. Tendo em conta a enorme prevalência de vínculos precários na academia, trata-se de um número absolutamente residual no sector e no quadro de toda a administração pública, que só não causou estranheza e admiração social, já que ao longo de todo o período democrático foi sucessivamente construída e reconstruída uma imagem do trabalho científico e dos trabalhadores científicos a tempo inteiro, não enquanto trabalhadores, mas enquanto “jovens bolseiros”, “estudantes de doutoramento” e, mais recentemente, “estudantes de pós-doutoramento”, que desenvolvendo atividades científicas “por amor” teriam o privilégio de prolongar as suas atividades de investigação sob a alçada dos seus “professores”.
Contudo, esta imagem socialmente (re)construída do “jovem cientista” não corresponde ao perfil dos investigadores precarizados em Portugal, com idades compreendidas entre os 21 e os 68 anos e atravessando todas as categorias profissionais - desde um momento inicial de investigação, anterior ao doutoramento e necessariamente sujeito a um acompanhamento próximo, até categorias plenamente independentes, como as correspondentes às posições de investigador principal (correspondente a professor associado) e de investigador coordenador (correspondente a professor catedrático) (Ferreira, 2023a).
Um segundo programa, o Programa de Estímulo ao Emprego Científico,19 tem uma história diversa da anterior. Este quadro legal permitiu substituir o regime preferencial de contratação dos investigadores doutorados, que até então assentava em bolsas pós-doutorais, por um regime de contratos a prazo. Este programa, tendo excluído todos os não doutorados, possibilitou reconhecer os investigadores com doutoramento como trabalhadores e atribuiu-lhes os direitos associados a um contrato de trabalho. Não desmerecendo a importância destas transformações, este regime não só não acabou com a precariedade e com os seus efeitos, como criou uma nova categoria de contratação - o “investigador júnior” - que desequipara, pela primeira vez, as categorias de contratação de investigadores, das categorias da carreira docente do ensino superior universitário. Estabelece-se, assim, uma nova hierarquia que favorece, uma vez mais, a carreira docente e, não menos importante, sedimenta, novamente, a infantilização dos investigadores, tanto no campo científico, como fora dele. Os investigadores doutorados deixam de ser os “jovens bolseiros”, mas independentemente da sua experiência pós-doutoral,20 continuam a ser os “juniores” das suas instituições.
Se ao longo de todo o período democrático de promoveu uma exclusão sucessiva de trabalhadores com funções permanentes de investigação, legitimando-se, paralelamente, regimes excecionais de contratualização e sucessivamente infantilizando-se aqueles que desenvolvem estas atividades, num período mais recente, estes regimes precários cresceram na contratação de docentes, promovendo-se novos mecanismos de fechamento do acesso a uma carreira permanente, criando-se novas hierarquias, alargando-se o exército de reserva de trabalhadores académicos e alimentando-se uma competitividade atroz, tanto entre os que se encontram numa posição precária, como entre trabalhadores precarizados e permanentes. Este contexto pressiona todos para uma maior produtividade, colocando todos numa corrida sem fim, diminui os tempos de produção, esquarteja o conhecimento, na ânsia de produzir mais indicadores e assim alcançar um melhor posicionamento nos rankings, coloca em causa a qualidade do trabalho desenvolvido e, através de um processo de repartição sucessiva de um trabalho cada vez mais circunscrito e, na sua essência, desarticulado da sua inscrição mais ampla, aliena os trabalhadores do produto do seu trabalho.
Uma academia de todos e para todos
Este ensaio partiu da transversalidade do regime de contratação precário para refletir sobre as suas dinâmicas evolutivas, acompanhando as suas origens, os processos sucessivos de legitimação destes regimes excecionais de contratação e os posicionamentos de diversos atores neste sector. A respeito das “dinâmicas evolutivas” não é possível deixar de referir que nos encontramos num momento de particular importância já que foi muito recentemente publicado o “Aviso para apresentação de candidaturas” da primeira edição do concurso FCT-Tenure. Trata-se de um concurso que, nos atuais moldes, é orientado exclusivamente para a integração de investigadores doutorados e precarizados na carreira de investigação ou nas carreiras docentes com co-financiamento e co-responsabilização da Fundação para a Ciência e a Tecnologia e das instituições que potencialmente acolherão estes profissionais incluindo, entre outros, unidades de investigação, laboratórios associados e entidades não académicas.21 Segundo o referido aviso, esta edição promove a abertura de até 1000 posições permanentes, o que, sendo um número relevante, não deixa de ser muito inferior aos mais de 3000 contratos que terminarão nos próximos anos.22 Às limitações quantitativas, acrescem a complexidade e a morosidade deste concurso, características que promovendo um ambiente de incerteza, poderão colocar em causa a exequibilidade deste programa.
Não menos importante será refletir sobre a posição apresentada pelo Conselho de Reitores das Universidades Portuguesas (CRUP) e pelo Conselho de Laboratórios Associados (CLA) que, mostrando-se favoráveis à integração de investigadores precarizados, solicitam um conjunto de garantias, tanto ao nível do financiamento, como ao nível da aplicação de mecanismos de recrutamento, distintas das inscritas no FCT-Tenure. No contexto do presente ensaio, cabe apenas assinalar que a aplicação da proposta do CRUP/CLA conduziria, num primeiro nível, ao alargamento do mecanismo de recrutamento atualmente prevalecente nas carreiras docentes universitárias, às contratações permanentes de um número considerável de investigadores. Num segundo nível, a aplicação desta proposta protelaria e circunscreveria a aplicação de mecanismos competitivos de recrutamento. No seu conjunto, promover-se-iam processos que, lembre-se, têm revelado favorecer o fechamento do acesso às carreiras académicas e que, sendo associados a uma preservação da cultura e da identidade organizacional, também têm sido associados a uma menor qualidade do trabalho de investigação (Horta, Meoli e Santos, 2022; Horta e Yudkevich, 2016; Tavares et al., 2015; Tavares et al., 2022).
Pese embora a importância de cada uma das potenciais posições permanentes que poderão resultar da concretização deste novo concurso, os atuais moldes quantitativos e qualitativos deste programa não permitirão ultrapassar o quadro dual de que partiu este ensaio: um quadro marcado por “vastas zonas de trabalhadores académicos precarizados” e “áreas restritas de trabalhadores académicos permanentes”. As múltiplas dualidades que se constroem a partir das assimetrias entre os que estão objetivamente integrados nas instituições de ensino superior e de ciência e aqueles que, percecionando-se como “verdadeiros académicos”, i. e., produtores de conhecimento validado pelos seus pares, ocupam posições objetivas precarizadas, reproduzem as estruturas da academia neoliberalizada, concentram o poder num conjunto muito restrito de atores e contribuem para a consolidação de um ambiente promotor de uma alienação de todos. Este contexto promove o abandono da academia e/ou processos de emigração, e coloca em causa o cumprimento das missões deste sector e obstaculiza a construção de uma academia que pensa e que se pensa.
Este ensaio, tendo apresentado uma descrição e uma discussão de regimes de contratualização presentes nas instituições de ensino superior e de ciência, das múltiplas consequências da precarização do trabalho académico e dos antagonismos construídos a partir desta, possibilita refletir criticamente sobre a situação atual e equacionar uma outra academia e os caminhos possíveis para a sua construção. Um caminho que, reconhecendo vantagens de uma articulação entre atividades de ensino e de investigação, reconhece as características distintivas das duas funções e a relevância científica e social de ambas. Reconhece ainda que as atuais estruturas competitivas do campo científico global são dificilmente compagináveis com trabalhos desenvolvidos a tempo parcial e com processos de recrutamento assentes em lógicas amplamente associadas a uma menor qualidade da ciência produzida e desfavoráveis a uma consolidação do sistema científico e tecnológico. Mas um caminho que também reconhece o imperativo de uma democratização das suas instituições, de uma potenciação da liberdade académica e do fim de uma precarização transversal que promove desigualdades sociais mais abrangentes e corrói as suas organizações, o trabalho nelas desenvolvido e a vida dos académicos e das académicas.