I. Introdução
A crise ambiental que vivemos, relacionada com os fenómenos das alterações climáticas, sobretudo resultantes da falta de uma gestão adequada dos ecossistemas e dos recursos naturais, veio mostrar o quanto a condição humana é indissociável de uma relação ecológica sustentada, tanto com o meio rural, como com o ambiente natural.
Esta renovada perceção do ambiente natural tornou-se quase uma necessidade existencial com a crise pandémica da COVID 19, com a qual a hipótese de um regresso ao campo ganhou um crescente número de seguidores, levados à redescoberta do “mundo rural” não só numa perspetiva de visita ocasional, turística, mas de permanência e como modo de vida. “A pandemia pode não ter causado um renascimento rural, mas conseguiu acelerar as tendências culturais já em curso (...) que perseguiam a vida pós-urbana” (Åberg & Tondelli, 2021).
A ideia de um regresso ao mundo rural é concomitante com o próprio processo de urbanização e industrialização novecentista, como veremos mais adiante. A questão volta a ser colocada a partir do último pós-guerra, tanto numa lógica utopista adotada pelo movimento hippie, ecologista e de contracultura dos anos 60, de que é exemplo a “Drop City” (Maniaque, 2014), como numa outra visão, resultante do processo de “counter-urbanization” que, entre os anos 1970 e 2000, consolida o continuum rural/urbano que “circunscreve” a cidade novecentista (Sorokin et al., 1981).
Bernard Kayser defende a hipótese de um “renascimento rural”, fundado na ideia de que “a retoma do crescimento no mundo rural tomado globalmente, como nas aldeias e pequenas cidades, é resultado da difusão no espaço dos efeitos da modernização e do enriquecimento conjunto da sociedade” (Kayser, 1990, p. 81).
Corrado Barberis (2001 apudVeiga, 2006, pp. 335-336) alude o nascimento de uma “nova ruralidade”, em resultado da ação conjunta de seis fatores: a) natalidade, que permitiu saldo demográfico; b) aumento da mobilidade; c) um incipiente êxodo urbano motivado pela carestia dos aluguéis e certas vantagens da vida rural, onde todos - ou quase - têm casa própria, até os operários; d) descentralização de indústrias atraídas pela oferta de terrenos, não somente mais baratos, mas com bons incentivos financeiros; e) um tipo de empreendedorismo local; f) as políticas regionais, com a autonomia conferida a novas entidades voltadas a agricultura, artesanato, turismo e, sobretudo, o urbanismo. Na perspetiva de José da Veiga (2006, p. 335), esta “nova ruralidade” está associada à “ideia de que a dimensão ambiental da globalização age para tornar as áreas rurais cada vez mais valiosas (…) pela ação de uma espécie de trindade: conservação do património natural, aproveitamento económico das decorrentes amenidades, e exploração de novas fontes de energia”.
Caminhamos assim para uma redefinição do conceito de ruralidade, cujos atributos que a definem são destacados por Ricardo Abramovay (2003, p. 13), como
uma certa relação com a natureza (em que a biodiversidade e a paisagem natural aparecem como trunfos e não como obstáculos ao desenvolvimento), uma certa relação entre as cidades (de onde vem parte crescente das rendas das populações rurais), e uma certa relação dos habitantes entre si (que poderia ser definida pela economia da proximidade, por um conjunto de laços sociais que valorizam relações diretas de interconhecimento).
É nesta transição do conhecimento da ruralidade que se enquadra o tema da pesquisa deste artigo, tomando como estudo de caso o modelo de organização do povoamento que caracteriza o município de Mértola, um território raiano, distante e isolado dos grandes centros urbanos, frequentemente denominado por “Alentejo profundo”. Neste contexto geográfico, o termo rural adquire um significado sociocultural próprio e preponderante na relação que se estabelece entre a paisagem e os assentamentos humanos. Digamos que se trata de um “rural profundo”, que justificou na proposta do plano diretor municipal a adoção de uma lógica de planeamento e territorialização específica que atribui ao “espaço rural”- um valor estratégico equivalente ao “espaço urbano”, tendo em vista a coesão social e territorial.
Embora a agricultura continue a ser um motor essencial da economia das regiões rurais, estas diversificaram as suas infraestruturas de pequena escala, concentrando a sua atividade económica no setor secundário da transformação ou no setor terciário, de tal modo que a sua estrutura social, designadamente a oferta de emprego, não difere muito da que ocorre nas regiões urbanas. Em Mértola, em 2019, os trabalhadores por conta de outrem distribuíam-se do seguinte modo pelos setores de atividade: 61,6% no terciário; 17,3% no secundário e 21,1% no primário, setor cuja tendência para a redução vem a ocorrer desde a década de 1980 (Ministério da Economia, 2020).
Contudo, as economias das regiões rurais ou de baixa densidade populacional são diferentes das economias urbanas, por três ordens principais de fatores: i) a distância física dos mercados e os custos que impõe em termos de transporte e conectividade; ii) a importância da competitividade em regiões onde o mercado doméstico é pequeno; iii) a “geografia de primeira natureza”, isto é, as condições geográficas físicas e naturais que caracterizam cada território, que moldam oportunidades económicas locais (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico [OCDE], 2018).
Jaime Valilna (2012, p. 51) assinala que:
(...) a primeira caraterística do conhecimento rural, (…) é que está vinculado ao local. Para mais, é um conhecimento complexo, sistémico, integral e que, ao estar condicionado pelas particularidades e intra-história do lugar, é exclusivo de cada sítio. (…) Da cidade tende-se a ver as comunidades rurais como homogéneas e a subvalorizar os seus problemas. De um modo geral, essas peculiaridades tão destacadas passam-nos despercebidas e acabamos por cometer erros de vulto.
De facto, embora se verifique uma crescente tendência para atender às especificidades dos locais, as políticas públicas de ordenamento do território vêm a aplicar, nos espaços rurais, modelos de desenvolvimento e metodologias de planeamento em quase tudo semelhantes às que seriam próprias do ambiente urbano, insistindo na ideia da urbanização como modo de vida, o que se tem revelado ser funcionalmente inadequado e burocraticamente excessivo (Marques & Cevadinha, 2017).
Gèrard Baudin e Domingos Vaz (2014, p. 45) apelam à:
(...) necessidade de resistir à tendência de tratar os fenómenos de organização do espaço como se fossem todos iguais e culturalmente arregimentados; isto é, ou se fala de espaço urbano e rural sem ter em conta as diferenciações de escala, ou se admite que as figuras e os instrumentos de planeamento territorial podem ser utilizados indiferenciadamente em qualquer país, região e nível de decisão política.
Apesar do dualismo entre áreas rurais e urbanas inscrito no nosso regime jurídico, seria um erro assumir uma abordagem uniforme do processo de planeamento, que resulte de uma leitura geral e abstrata do sistema de gestão territorial vigente e do regime jurídico dos instrumentos de gestão do território (DL n.º 80/2015), sem ter em conta as especificidades e características predominantemente rurais do espaço em Mértola.
Em complemento às regras convencionais baseadas no zonamento do território e expansão periférica das localidades, a revisão do plano diretor municipal procura fazer assentar as suas estratégias nos valores mais profundos da paisagem local “na sua unidade-diversa de ambiente biológico e ambiente histórico-cultural” (Assunto, 2011, p. 126) - explorando as potencialidades que permitam criar novas economias e um desenvolvimento independente do crescimento urbano. Para tanto, colocou-se como possibilidade a implementação do conceito de “redesenvolvimento territorial integrado”, que corresponde a uma abordagem holística do planeamento regional e urbano, capaz de fornecer respostas convergentes com igual nível de eficiência para as questões ambientais, sociais e económicas. Esta abordagem holística assenta a sua estratégia em diversos fatores-chave, dos quais destacamos, neste artigo, o da ativação dos aglomerados rurais e revitalização dos sistemas agro-silvo-pastoris dos espaços envolventes, cujo trabalho de pesquisa e, simultaneamente, estudo propositivo, concebe a aldeia na sua configuração tradicional, como habitat rural e unidade espaço-social estruturante para o ordenamento do território municipal.
II. Enquadramento teórico
1. A superação da dicotomia cidade-campo
Em The Nature of Cities, Ludwig Hilberseimer (1955, p. 190) fala-nos de uma “harmonia que existia entre a cidade e a paisagem. Ambas eram iguais em valor. Juntas, alcançaram a unidade entre o artificial e o natural”. Para Hilberseimer (1955, p. 191), esta harmonia entre cidade e a sua paisagem revela-se com as grandes realizações do período barroco e a penetração da cidade pelo campo. Desde essa altura, refere o autor, “esta visão ir-se-á perdendo à medida que ocorre a concentração e aglomeração desumana das cidades industriais”.
A este facto devemos associar a lógica do processo cíclico de urbanização e desurbanização que vem a ocorrer desde finais do século XIX, mas com maior ritmo desde o último pós-guerra e no qual são identificáveis vários gradientes espaciais, como a contra-urbanização (Kayser, 1990), a peri-urbanização ou a exurbanização (Dezert et al., 1992), que deram origem ao denominado urban sprawl e à formação de territórios híbridos, que podemos identificar no denominado continuum rural/urbano a que antes fizemos referência.
Porém, em concomitância com a industrialização e a urbanização, foram sendo apresentadas as mais diversas propostas socioespaciais que procuravam resolver a dicotomia entre a cidade e o campo, ainda que se tratasse de duas realidades distintas, não se procurando identificar possíveis relações de influência entre as mesmas. Autores como Françoise Choay (1965) destacam que essa divisão, fruto das transformações sociais, levou a duas correntes: uma considerada anti-urbanista e naturalista, na qual a vida rural era idealizada e o seu desaparecimento lamentado, e outra, “pró-urbana”, em que a urbanização era considerada o motor do progresso, inovação e modernização. Interessa-nos aqui abordar as correntes anti-urbanista e naturalista, dadas as possibilidades teórico-concetuais que nelas se colocam em relação à proposta de um redesenvolvimento do espaço rural.
Desde os anos 80, um vasto conjunto de estratégias territoriais internacionais vêm a enquadrar a transição da corrente pró-urbana para uma renovada visão da relação cidade-campo, com especial foco na coesão social e territorial. Nestas estratégias internacionais, as temáticas relacionadas como o espaço rural e natural são consubstanciadas em objetivos e prioridades, bem como a sua transposição para as políticas nacionais e regionais de ordenamento do território e de urbanismo. Na secção seguinte abordaremos algumas das estratégias com mais pertinência para o nosso objeto de estudo.
2. A nova “parceria cidade-campo”
A partir da década de 80 do século passado, as tentativas teóricas e concetuais para reatar as ligações entre os tecidos, os sistemas e as funções que determinam a ligação vital entre os organismos urbanos e o ambiente natural são recuperadas pelos responsáveis políticos, tendo desde então sido publicadas numerosas estratégias territoriais internacionais sobre estas temáticas.
Estas estratégias territoriais exerceram uma influência determinante na orientação das políticas públicas de gestão e ordenamento do território, para responder aos processos transformativos do solo rural e urbano, em curso. Analisaremos a seguir, de modo resumido, alguns dos princípios e objetivos e as interdependências funcionais rural-urbano e culturais cidade-campo de algumas das Cartas, Convenções e Agendas que vêm a ser tratadas pelas áreas disciplinares do planeamento regional e urbano, como questão chave das políticas de coesão social e territorial.
Nos objetivos específicos (Appendix) da European regional/spatial planning charter (Carta de Torremolinos - Council of Europe, 1983), foi atribuído às áreas rurais um papel fundamental a desempenhar no âmbito do planeamento regional e espacial. Para tanto seria:
(…) essencial criar condições de vida aceitáveis no campo, no que diz respeito a todos os aspetos económicos, sociais, culturais e ecológicos, bem como infraestruturas e comodidades, ao mesmo tempo em que distingue entre regiões rurais subdesenvolvidas e periféricas, e aquelas próximas a grandes conurbações. (§1)
A Agenda 21 (United Nations [UN], 1992) assinalava a necessidade de promover, ao nível nacional e internacional, “a sustainable agriculture and rural development” (SARD), colocando como “principal objetivo aumentar a produção de alimentos e a segurança alimentar de forma sustentável” (cap. 14, 14.2.).
O Esquema de Desenvolvimento do Espaço Comunitário (Comissão Europeia [CE], 1999), que constitui um quadro de orientação das políticas setoriais com impacto territorial na UE, assinalava a ideia de uma Parceria cidade-campo (cap. 3.2.4), a qual possui diversas dimensões territoriais:
(…) a regional, a supra-regional, a inter-regional e a transnacional. A perspetiva regional implica uma parceria entre as cidades, independentemente da sua dimensão, e o espaço rural circundante. É justamente neste caso que a cidade e o campo devem realizar uma abordagem integrada dos seus problemas, dado que constituem uma região e partilham, por conseguinte, a responsabilidade pelo seu desenvolvimento (CE, 1999, p. 27).
Preconiza-se, neste caso, ultrapassar a tradicional clivagem cidade/campo, atualmente sem sentido, e estabelecer “uma parceria ativa a longo prazo” entre ambos os territórios, uma vez que não é possível resolver os problemas locais sem uma abordagem integrada da cidade e do campo.
Recentemente, a Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável (UN, 2015) veio estabelecer um conjunto de objetivos e metas bastante ambiciosas, ainda que de difícil concretização até 2030, como é proposto no documento. O objetivo 11. “Tornar as cidades e assentamentos humanos inclusivos, seguros, resilientes e sustentáveis”, é desdobrado em várias submetas, das quais destacamos a 11.ª “Apoiar vínculos económicos, sociais e ambientais positivos entre áreas urbanas, periurbanas e rurais, fortalecendo o planeamento do desenvolvimento nacional e regional”. Esta meta manifesta a necessidade de um modelo de planeamento que “entretece” as diferentes tipologias territoriais e a sua implementação deve ter em conta as circunstâncias e as prioridades específicas de cada território (UN, 2015).
Para a Nova Agenda Urbana, UN-Habitat III (2016), a plena integração entre as cidades e o meio rural é também um dos objetivos expresso no seu Plano de Implementação. Em “A. Compromissos Transformadores para o Desenvolvimento Urbano Sustentável” no parágrafo 49, é referido o compromisso de “apoiar sistemas territoriais que integrem funções urbanas e rurais (…), para fomentar o desenvolvimento regional equitativo em todo o continuum urbano-rural e preencher as lacunas sociais, económicas e territoriais” ([UN] p. 15). Esta ideia de coesão territorial deve ser reforçada através das interações e conetividade do espaço urbano-rural, a corporizar com o fortalecimento da “mobilidade e do transporte sustentáveis, das infraestruturas e redes de tecnologia e comunicação, ancorados em instrumentos de planeamento com base numa abordagem urbana e territorial integrada” (UN, p. 15).
No âmbito das novas políticas da União Europeia (UE) enfrentar os desafios climáticos e ambientais, as relações urbano-rurais evoluem para outras dimensões do seu codesenvolvimento, nomeadamente através da “Estratégia do Prado ao Prato: conceber um sistema alimentar justo, saudável e amigo do ambiente”, referida no Pacto Ecológico Europeu (CE, 2019, p. 13) e adotada pela Lei Europeia em matéria de Clima (2021). A Estratégia do Prado ao Prato, além de estimular novas formas de produção agrícola para reduzir a pegada ambiental e climática, visa alterar os atuais insustentáveis padrões de consumo alimentar, facilitando a mudança para uma dieta saudável. Tal ajudará as cidades “(…) a desempenharem o seu papel através do abastecimento de alimentos sustentáveis às escolas, hospitais e instituições públicas” (CE, 2019, p. 13). Outro aspeto desta estratégia é o de “reduzir as perdas e o desperdício alimentar” (CE, 2019, p. 14), o que pode ser diretamente relacionado com a gestão de resíduos orgânicos e das energias renováveis em meio urbano. O quadro orientador e regulador destas novas políticas europeias é convergente com o programa INTERREG EUROPE 2021-2027 (Interreg Europe, 2021), onde o objetivo “a greener, climate-neutral and resilient Europe” dá especial atenção ao potencial do espaço rural, enquanto área coberta pela denominada “green infrastructure” (GI), e o papel que tal infraestrutura desempenha enquanto sumidouro de gases com efeito de estufa contribuindo para mitigar o impacte climático das áreas urbanizadas, responsáveis por 70% das emissões de GEE a nível mundial (UN, 2022, p. 16).
III. Contexto e metodologia
O presente estudo de caso resulta de uma investigação empírica que toma o contexto e a realidade dos territórios de baixa densidade populacional para focar o seu objeto de pesquisa num fenómeno contemporâneo, o do desenvolvimento dos espaços rurais. Os dados estatísticos, bem como os elementos cartográficos que informam este estudo são provenientes de análise documental, visitas de campo e observação participativa.
Para lidar com a ampla variedade de dados e evidências recolhidas, propomos centrar a nossa análise na definição do conceito de redesenvolvimento territorial integrado, enquanto objetivo estratégico, e no conceito de aldeia, proposto como unidade espaço-social para o ordenamento do espaço rural, que aqui analisaremos na sua dimensão jurídico-instrumental, na sua configuração tradicional, englobando os aspetos culturais e a sua morfogénese, e, por último, enquanto elemento de organização do povoamento.
1. Redesenvolvimento territorial integrado
Como referido anteriormente, o projeto de revisão do Plano Diretor Municipal de Mértola adotou uma estratégia territorial de base-local assente no conceito de redesenvolvimento territorial integrado, que tem especial aplicação em territórios que enfrentam uma situação de recessão económica e regressão demográfica, como é o caso da Sub-região do Baixo Alentejo (NUT III).
Neste quadro de territorialização, um dos objetivos do redesenvolvimento está associado ao autocentered development, paradigma que tem as suas raízes nos trabalhos do Clube de Roma, designadamente o relatório The Limits to Growth, no qual se defende que “o estado de equilíbrio global poderia ser projetado para que as necessidades materiais básicas de cada pessoa na Terra sejam satisfeitas e cada pessoa tenha a mesma oportunidade de realizar o seu potencial humano individual” (Meadows et al., 1972, p. 24). Para Max Ajl, o autocentered development combina com a produção de conhecimento autóctone e qualquer projeto de desenvolvimento “deve basear-se no repertório completo das capacidades endógenas e ser construído com base nelas. (…) a tecnologia endógena (…), mostra como o conhecimento particular de um lugar é uma das melhores potenciais fontes de riqueza” (Ajl, 2018, p. 1249). Este modelo de desenvolvimento defende a satisfação das necessidades básicas (materiais e imateriais) de toda a população de uma unidade territorial, dispondo, de forma integral e integrada, dos recursos endógenos naturais, humanos e institucionais, colocando o cerne do processo de desenvolvimento no respeito pelo ambiente, no aproveitamento dos recursos locais, na autoconfiança, na autopromoção e na autossuficiência económica.
Uma abordagem deste género leva-nos a entender cada território como valor e recurso a explorar em benefício direto do desenvolvimento local, com base naquilo a que Vegara e Rivas (2004, p. 14) denominam “territórios inteligentes”, isto é, “aqueles com capacidade de se dotar de um perfil próprio apoiado nas suas singularidades e componentes de excelência”.
O conceito de autocentered development encontra raiz para o seu significado básico no termo AUTARQUIA, palavra que deriva do grego AUTARKHEIA e que significa: a política da autossuficiência de uma comunidade (Epicuro), a qual supõe uma forma de auto-gerenciamento da Pólis e a capacidade da comunidade organizada, formada pelos cidadãos, acreditar em si própria.1
Este conceito de redesenvolvimento significa também que se pretende desenvolver (algo) novamente ou de maneira diferente (uma determinada área), em resultado de um ato ou processo de mudança, razão pela qual, e enquanto conceção emergente, o redesenvolvimento territorial integrado procura estabelecer uma relação entre dois outros conceitos: o de vocação territorial e o de tendência territorial - que nos permitem explicar o processo evolutivo dos lugares.
A vocação territorial aparece como um caráter objetivo, evidente, expressão e síntese do potencial de recursos, habilidades e capacidades de um território, ocupado, explorado e gerido pela ação humana (Mastroberardino et al., 2013, p. 106), um território que é um “sistema pré-determinado em relação aos atores”, mas sobretudo um “sistema concreto construído pelos atores” (Mastroberardino et al., 2014, p. 4). A vocação territorial, enquanto meta-recurso autoevidente, pode ser definida como “a personalidade de um território, expressa na sua aptidão natural, social, cultural e económica” (Golinelli, 2002, apudMastroberardino et al., 2013, p. 112).
Por sua vez, a ideia de tendência territorial corresponde a um padrão de mudança gradual dos processos de uso e ocupação de um determinado território, ou uma mudança na maneira como as pessoas alteram os seus comportamentos em função de novos ciclos sociais, económicos, culturais, científicos ou políticos, entre outros fatores (ESPON, 2006). A tendência territorial revela-se nas novas formas de desenvolvimento, novas direções ou estratégias, que devem ser encontradas para garantir a sinergia e a coexistência das atividades e ações humanas que conduzam à evolução das condições de vida, consolidando ou reconfigurando a identidade de um determinado território.
Mértola é um caso paradigmático deste processo evolutivo e de transição ente vocação e tendência territorial. Desde a romanização e durante a época medieval, o seu território funcionou como espaço agrícola e entreposto de trocas comerciais a partir do seu porto fluvial. Durante o século XIX transforma-se numa região em estreita dependência da exploração mineira e das atividades económicas a ela associadas até à transição operada a partir dos anos 70 e 80 do século passado, quando em Mértola se implanta um interesse pela herança histórica, artística e cultural, consubstanciado numa intensa atividade museológica, sobretudo focada na arqueologia e no reforço da identidade local, assente nos atributos da paisagem e do património material e imaterial de Mértola. Em continuidade com este último ciclo de desenvolvimento do concelho, surge agora uma nova tendência territorial dirigida à ativação da economia e das amenidades do Espaço Rural, através da reapropriação dos seus significados tradicionais, compassada com a recriação das aptidões do uso do solo para o aproveitamento agrícola, pecuário, florestal, a conservação, valorização e exploração de recursos naturais.
É no contexto destes processos transformativos que surge a possibilidade de imple mentação de um processo de redesenvolvimento territorial integrado, centrado numa política de autossuficiência da comunidade residente e na capacidade de concertar a relação entre a vocação e a tendência de desenvolvimento territorial em curso. Para alcançar este objetivo são propostas oito prioridades ou fatores-chave, que correspondem a orientações de gestão do plano diretor:
Atração e fixação da população;
Reforço da correlação: capital humano / desenvolvimento local;
Conservação e ativação do património construído e do capital natural;
Turismo alternativo de desenvolvimento endógeno e sustentável;
Estratégia transfronteiriça com base em sistemas interurbano e intraurbano;
Ativação dos aglomerados rurais e sistemas agro-silvo-pastoris dos espaços envolventes;
Medidas e ações de adaptação do território às alterações climáticas;
Processos participativos e governança territorial.
Abordaremos neste artigo apenas um destes fatores-chave, o 6) Ativação dos aglomerados rurais e sistemas agro-silvo-pastoris dos espaços envolventes, apresentando nas secções seguintes o seu enquadramento teórico, conteúdos programáticos e aspetos propositivos.
2. Dimensão jurídico-instrumental do aglomerado rural
Sobre as formas de povoamento rural, Orlando Ribeiro (2000) refere que:
(…) de todos os critérios apontados para distinguir aglomerações urbanas e rurais, o mais seguro, e também mais geográfico, consiste na forma como é utilizado o espaço construído: residência, indústria, comércio, administração (no sentido lato da organização da vida pública - cultura, religião, diversões), circulação, na cidade; quintais e hortejos, currais e palheiros, fragmentos de campo encastrados nas casas, instalações para o gado e a recolha de produções agrícolas, que às vezes cobre o mesmo tecto que abriga os homens, nas aglomerações rurais a que, com propriedade, se aplica o termo de aldeias. (pp. 860-861)
Na perspetiva de outros autores, o desafio para identificar e classificar o rural e o urbano, seja para fins administrativo-burocráticos, seja para fins estatísticos, tem sido baseado na seleção de um conjunto multidisciplinar de técnicas e critérios para operacionalizar e classificar ambos os espaços, sistematizados por Angela Endlich (2010). São elas: a delimitação político-administrativa; o recorte populacional; a densidade demográfica; e a ocupação económica da população. Além destes, destacam-se também a morfologia e o modo de vida (Angulo & Domínguez, 1991, apudBernardelli, 2010).
Analisamos, nesta secção, a evolução diacrónica do quadro jurídico-instrumental em torno dos conceitos de aglomerado rural e urbano, e de solo rural e solo urbano. Esta análise abrange um período temporal de aproximadamente quatro décadas, entre a Lei de Solos, de 1976, e o atual regime jurídico dos instrumentos de gestão territorial, publicado em 2014 e 2015, entretanto revisto e alterado. A análise do enquadramento jurídico destes conceitos é relevante para o nosso estudo, uma vez que devem ser observados nos planos municipais de ordenamento do território, tendo por isso aplicação direta no domínio privado e políticas públicas de solos.
Em 1976, é publicada a nova Lei de Solos (Decreto-Lei n.º 794/1976), que pretendia dotar a administração de instrumentos eficazes para evitar a especulação imobiliária e permitir a rápida solução do problema habitacional, na sequência dos novos dispositivos constitucionais, resultantes da mudança de Regime que ocorre em abril de 1974. Na Lei, o conceito de aglomerado rural não surge definido de modo expresso, podendo, genericamente, ser entendido como uma “zona diferenciada do aglomerado urbano o conjunto de edificações autorizadas e terrenos contíguos marginados por vias públicas urbanas pavimentadas que não disponham de todas as infra-estruturas urbanísticas do aglomerado” (art. 62º). No contexto histórico do momento, o diploma cuidava da expansão, desenvolvimento ou renovação urbanas, ou da criação de novos aglomerados, e não tanto de questões relacionadas como o espaço rural na perspetiva mais ampla e abrangente do território regional ou nacional. A demonstrar este facto, o Capítulo III da nova Lei, institui a “Zona de defesa e «contrôle» urbanos” (n.º ١ do art. 14º).
O Decreto-Lei n.º 69/1990 era omisso quanto aos conceitos de aglomerado urbano ou rural, e o mesmo sucedeu com a Lei n.º 48/1998, que estabeleceu as bases da política de ordenamento do território e de urbanismo, ainda que, de acordo com a “classificação e qualificação do solo”, tenha passado a assentar na distinção fundamental entre solo rural (alínea a), n.º 2 do art. 15º) e solo urbano (alínea b), n.º 2 do art. 15º). Igual entendimento da distinção - entre solo rural e solo urbano - foi dada no art. 72º do Decreto-Lei n.º 380/1999, que veio desenvolver as bases da política de ordenamento do território e de urbanismo da Lei n.º 48/1998, procedendo à definição do regime aplicável aos instrumentos de gestão territorial.
Uma década mais tarde, com o Decreto Regulamentar n.º 11/2009, que estabeleceu os critérios a observar na classificação e qualificação do solo, a definição de solo rural mantém-se, em termos gerais, porém o conceito de solo urbano foi significativamente revisto e simplificado, passando a ter a seguinte descrição “3 - Classifica-se como solo urbano o que se destina a urbanização e a edificação urbana.” (art. 4º). Este diploma deixa cair o termo aglomerado urbano, integrando-o na classificação geral de solo urbano, ou seja, aquele que “compreende os terrenos urbanizados e aqueles cuja urbanização seja possível programar, incluindo os solos afetos à estrutura ecológica necessários ao equilíbrio do espaço urbano” (n.º 2 do art. 6º). Por outro lado, o diploma passou a definir, como uma das categorias de solo rural, o conceito de aglomerado rural.
Aglomerados rurais, correspondendo a espaços edificados com funções residenciais e de apoio a actividades localizadas em solo rural, devendo ser delimitados no plano director municipal com um regime de uso do solo que garanta a sua qualificação como espaços de articulação de funções residenciais e de desenvolvimento rural e infra-estruturados com recurso a soluções apropriadas às suas características. (alínea a) do n.º 2 do art. 19º, Decreto Regulamentar nº 11/2009)
Da leitura comparada destes diplomas, cremos existir uma transição concetual que se revela na emergência do espaço rural enquanto instrumento e sujeito ativo do ordenamento do território. Ou seja: se a Lei de solos de 1976 focava a sua atenção no conceito de aglomerado urbano e transmitia uma ideia vaga e indiferenciada de aglomerado rural como “zona diferenciada do aglomerado urbano”, em 2009, o novo regime jurídico inverte o seu posicionamento, deixando de referir o conceito de aglomerado urbano, que constava da Lei de 1976, conferindo-lhe agora, o simples atributo de “solo que se destina a urbanização e a edificação”.
Anuncia-se deste modo, no quadro das políticas de ordenamento do território, uma “aproximação ao rural”, que irá ganhar crescente relevo na Lei n.º 31/2014, na qual assenta a atual base geral da política pública de solos, de ordenamento do território e de urbanismo, que mantém a distinção entre solo urbano e solo rústico, termo que substitui o de solo rural, até então utilizado.
“Solo rústico”, aquele que, pela sua reconhecida aptidão, se destine, nomeadamente, ao aproveitamento agrícola, pecuário, florestal, à conservação, valorização e exploração de recursos naturais, de recursos geológicos ou de recursos energéticos, assim como o que se destina a espaços naturais, culturais, de turismo, recreio e lazer ou à proteção de riscos, ainda que seja ocupado por infraestruturas, e aquele que não seja classificado como urbano. (alínea a) n.º 2 do art. 10º, Lei nº 31/2014)
“Solo urbano”, o que está total ou parcialmente urbanizado ou edificado e, como tal, afeto em plano territorial à urbanização ou à edificação. (alínea b) do n.º 2 do art. 10º, Lei nº 31/2014)
Neste novo regime jurídico, atualmente em vigor, há que salientar a evolução do conceito de aglomerado rural, que ocorreu com a publicação do Decreto Regulamentar n.º 15/2015, que, em conformidade com as orientações dos programas territoriais existentes, vai redefinir este conceito enquanto subcategoria do solo rústico.
Aglomerados rurais correspondendo a áreas edificadas, com utilização predominantemente habitacional e de apoio a atividades localizadas em solo rústico, dispondo de infraestruturas e de serviços de proximidade, mas para os quais não se adeque a classificação de solo urbano, (…), devendo ser delimitados no plano diretor municipal ou intermunicipal e regulamentados com um regime de uso do solo que garanta a sua qualificação como espaços de articulação de funções habitacionais e de desenvolvimento rural e a sua infraestruturação com recurso a soluções apropriadas às suas características. (alínea d) do nº 2 do art. 23º, DL nº 15/2015)
Esta reconceptualização do significado e estrutura normativa da figura do aglomerado rural, tende a identificar-se como a lógica socio-espacial da noção de aldeia, de que falaremos no capítulo seguinte, ainda que, em parte, contrariada pela condição do aglomerado dever ser delimitado (condição já existente no Decreto Regulamentar n.º 11/2009). De facto, a ideia de um limite, pode significar a intensão do legislador de estabelecer “um dentro e um fora” do aglomerado rural, que corresponderia a uma espécie de fronteira administrativa entre o núcleo edificado e os campos envolventes, servindo como forma de contrariar o modelo de organização territorial que associa a expansão do edificado ao desenvolvimento social e económico.
3. A aldeia como habitat rural
Para a arqueologia, a aldeia pode ser considerada como a primeira forma de fixação humana, ligada ao surgimento das técnicas agrícolas e construída artificialmente, com caráter de estabilidade ou de permanência. Contudo, segundo Jean-Marie Pesez (1997, p. 376), a aldeia mediterrânica, tal como a conhecemos hoje,
é um produto original das civilizações rurais do Ocidente medieval (formado) cerca do século XIII, para designar uma realidade, extremamente complexa, que associa a uma construção de base - fixação permanente num determinado território - um território agrícola, o “finage”, e um grupo humano, dotado de uma personalidade moral que se exprime através das diversas instituições, sobretudo a paróquia e a comunidade rural.
De acordo com o glossário Géo confluences, o termo “finage” (do latim: finis - limite, cercadura), refere-se tradicionalmente, em geografia, ao território explorado por uma comunidade aldeã, estendendo-se, ou retraindo-se, à escala dos períodos de crescimento ou de retração populacional do assentamento rural. Durante a Idade Média Central, sob a influência da Igreja, as fronteiras do “finage” tendiam, gradualmente, a coincidir com as da paróquia, a menor circunscrição eclesiástica. A aldeia, em habitat agrupado, ou a aldeia, em habitat disperso, estavam normalmente localizadas no meio do “finage” que se desdobrou ao redor do habitat, a fim de fazer o melhor uso da complementaridade dos territórios que lhe estavam associados (Géoconfluences, 2022).
Interpretação semelhante do conceito de aldeia é dada por Elza Keller (1970), para quem:
(…) as pesquisas sobre o povoamento rural devem reunir, (…) a casa, enquanto elemento central do habitat rural e testemunha concreta da ocupação permanente da terra pelo homem e, simultaneamente, núcleo do conjunto formado pela exploração rural, na qual outros elementos constituem também objetos de interesse, tais como os campos de cultura, as pastagens, os pomares, os jardins e as hortas e, finalmente, as estradas e os caminhos vicinais. (p. 292)
Nilo Bernardes (1963, p. 543) propõe a adoção de uma “noção mais larga de habitat (rural), compreendendo não somente os fatos relativos à habitação em si como também a todo o arranjo de estabelecimento rural”. Para este autor, “a própria noção de estrutura agrária deveria se aproximar da de `organização agrária´ que abarcaria `um complexo de instituições´ tais como a estrutura fundiária, o regime de exploração da propriedade e o modo de utilização da terra”.
Em Mediterrâneo - Ambiente e Tradição, Orlando Ribeiro (1991) sustenta que:
A aglomeração parece estar ligada, nas origens, (…), a um sistema de afolhamento que comporte a alternância do cereal com a exploração pastoril. (…) a localização da aldeia, rodeada da sua cintura de hortas, pomares ou culturas mimosas, no meio dos campos que explora; (…) Comunidade e vizinhança, constituição do rebanho coletivo e disciplina da terra, desenvolvem-se, (…), como factos paralelos a que seria vão e ilusório procurar uma prioridade. (p. 143)
Interessa assinalar a forma como o autor tipifica a aldeia alentejana com a qual, como veremos a seguir, apresentam similitude muitos aglomerados rurais do concelho de Mértola:
Ruas e largos, quintais exíguos, uma sucessão de muros cegos rodeados umas vezes de uma cintura de hortas, árvores de fruto e culturas permanentes (ferragiais), outras afogadas no meio da própria seara (área leste, principalmente próximo da raia, mais afim do tipo espanhol referido). (…) Em torno delas há, e nem sempre, uma exígua cintura de pequena propriedade; o conjunto fica rodeado pelas herdades e, uma ou outra vez, encravado numa única. (Ribeiro, 1991, pp. 362-363)
Porém, a perceção desta forma de territorialização não surge, normalmente, representada na cartografia de base, e nem mesmo os ortofotomapas são reveladores da sua complexidade original, como exemplifica o caso da aldeia de Mesquita no concelho de Mértola (fig. 1). De facto, apesar de na carta e no ortofotomapa ser identificável o seu núcleo de casario, não é fácil a leitura da relação deste com a sua paisagem envolvente, com o estabelecimento rural e a organização agrária anterior.
Vamos encontrar esta situação em grande número de aldeias do município de Mértola - como as representadas nas figuras 2, 3 e 4 - que apresentam, nas suas múltiplas configurações, correspondência com a descrição anterior a que Orlando Ribeiro (1991) recorre para tipificar a aldeia alentejana. Se procuramos as suas origens históricas, podemos identificar e circunstanciar na sua morfogénese, o conceito de “finage” de Jean-Marie Pesez (1997) e a noção de habitat rural, apresentada por Elza Keller (1970) e Nilo Bernardes (1963).
Sabemos que esta construção de base, que durante séculos suportou a fixação no território e o modo de vida agro-silvo-pastoril de um grupo humano, já não corresponde, hoje em dia, à ocupação da grande maioria de população que vive neste tipo de meio rural; neste sentido, os dados estatísticos apontam para um aumento da ocupação dominante da população ativa no setor terciário (comércio/serviços), ou seja, uma ocupação algo caraterística das populações urbanas. Porém, o resgate desta conceção original da aldeia coloca-se como possibilidade real para suportar o propósito de recorrer a esta unidade espaço-social como um dos fatores-chave do modelo de redesenvolvimento territorial integrado do município de Mértola, se entendido na conjunção de uma política de base local focada no conceito de autocentered development e de autossuficiência da sua comunidade residente.
A recuperação da função tradicional da aldeia, enquanto habitat rural, e elemento estruturante do solo rústico, ganha significativa expressão se considerarmos o elevado grau de dispersão destes aglomerados rurais à escala de todo o concelho, como teremos oportunidade de mostrar mais adiante.
4. A aldeia como elemento de organização do povoamento
Em Mértola, o modelo de organização do povoamento é distinto do que genericamente se observa na região do Baixo Alentejo. Esta realidade pode ser explicada pela acidentada orografia do terreno, a pobreza dos solos para o desenvolvimento de atividades agropecuárias, tendo por contraponto períodos de riqueza que ocasionalmente se revela na exploração mineira. Daí a natureza da relação que se estabeleceu entre a capacidade de aproveitamento das condições geográficas e a autonomia destes assentamentos humanos, que procuram implantar-se na proximidade de terrenos férteis, fontes de abastecimento de água e locais de potencial riqueza de minérios. Esta dispersão dos aglomerados populacionais não é recente. Em As Comendas de Mértola e Alcaria Ruiva - As Visitações e os Tombos da Ordem de Santiago 1482-1607 (Barros et al., 1996, p. 507), são assinaladas várias igrejas e ermidas, em torno das quais se deu a formação de muitos destes assentamentos humanos, como também nos informam sobre o número significativo de localidades e a sua dispersão no território, claramente identificadas a partir do século XV (fig. 5).
A polarização exercida pela vila de Mértola e os principais aglomerados urbanos municipais não tem sido suficiente para absorver a dispersão populacional, cuja permanência nos pequenos aglomerados rurais se vai mantendo, acompanhada por uma utilização sazonal das habitações por parte de famílias emigradas para os grandes centros urbanos das regiões de Lisboa e do Algarve.
Por todos estes factos, uma das principais caraterísticas da organização do povoamento de Mértola é o da dispersão territorial das localidades, de modo mais ou menos homogéneo, por todo o território do município, como podemos observar na forma como se distribuem os lugares censitários (Instituto Nacional de Estatística [INE], 2011), independentemente da sua escala, hierarquia ou função organizacional (fig. 6).
A questão do povoamento disperso ganha especial relevância quando conjugada com outros indicadores, como seja: a regressão demográfica e a baixa densidade populacional que, em 2011, era de 5,5hab./km2 tendo-se reduzido em 2021 para apenas 4,8hab./km2 (INE, 2021).
Estes dois indicadores - dispersão e densidade populacional - podem também ser observados no quadro I, onde dos 98 lugares censitários, só cinco tinham mais de 200 habitantes, 34 possuíam entre 51 e 200 habitantes, ao passo que os restantes 59 tinham no máximo 50 habitantes. Se considerarmos que nas cinco maiores localidades, em 2011, residiam 2 700 habitantes de um total de 7274 habitantes a residir no concelho (INE, 2011), isso significa que a grande maioria da população (60,52%) se encontra dispersa pelos restantes 93 aglomerados existentes em meio rural. Desses residentes, só um reduzido número mantém ligação às atividades agro-silvo-pastoris. Em 2018, o setor primário contava com apenas 20,2% dos trabalhadores por conta de outrem, o setor secundário 15,1% e os restantes 64,8%, encontraram emprego no setor terciário (INE, 2021).
Total | x < ٥٠ | 50 ≤ x ≤ 200 | 200 < x | |
---|---|---|---|---|
Lugares censitários | 98 | 59 | 34 | 5 |
Indíviduos residentes | 6839 | 2700 | 2898 | 1241 |
Fonte: INE-BGRI, Censos 2011
Estes dados revelam a existência de uma disfuncionalidade, entre a permanência da estrutura de povoamento disperso, que há vários séculos demonstra a sua resiliência, e a evolução dos padrões sociais, económicos e culturais dos seus habitantes, hoje maioritariamente ligados às atividades de serviços, e por consequência a um modo de vida mais urbano que rural agrário. Os dados evidenciam ainda que os habitats rurais, enquanto estruturas produtivas, deixaram de ser explorados e geridos na sua forma original de territorialização, o que pode explicar, pelo menos em parte, a atual debilidade dos vários níveis de atividade económica ligados à tradição agro-silvo-pastoril do concelho, que durante séculos foi sendo mantida de forma sustentada.
IV. Ativação dos aglomerados rurais e revitalização dos sistemas agro-silvo-pastoris das áreas envolventes
Tomando por base o anteriormente descrito, coloca-se como hipótese de redesenvolvimento territorial integrado do município, a ativação destes habitats rurais enquanto unidades produtivas, com potencialidades para incentivar a atração de uma população ativa capaz de dinamizar os setores económicos locais.
De facto, apesar de no concelho de Mértola o crescimento natural da população ter vindo a ser negativo a partir da década de 60 do século XX e o número de residentes se tenha reduzido para 6.208 indivíduos no último censo (INE, 2021), desde 2019 o saldo migratório tem sido positivo (PORDATA, 2022)3, o que poderá compensar a falta de contribuição do saldo natural para o crescimento da população. Este movimento migratório corresponde a casos de novos residentes, alguns deles novos rurais, o que permite sustentar a hipótese da ativação de um outro desenvolvimento da ruralidade nestes territórios. A fixação desta nova população no concelho pode ser facilitada se tivermos em conta os dados sobre os alojamentos familiares clássicos por forma de ocupação onde o maior valor é o da residência secundária (45,14%), existindo uma significativa percentagem de alojamentos vagos (21,58%) e só 1/3 dos alojamentos corresponde a residência habitual (33,27%), o que revela o potencial de oferta no mercado imobiliário local (INE, 2021) nomeadamente oferta para o arrendamento de habitação.
A par das questões habitacionais, a ativação dos aglomerados rurais e revitalização dos sistemas agro-silvo-pastoris das áreas envolventes depende duma política pública que promova uma atuação concertada entre o governo autárquico, como facilitador, e os diversos agentes e atores locais - os proprietários ou detentores dos prédios construídos ou solos rústicos, estruturas familiares, associações ou comunidades - ação essa dirigida à recriação das aptidões do uso do solo para o aproveitamento agrícola, pecuário, florestal e a conservação, valorização dos recursos naturais locais. Como forma de sistematizar a concertação entre os diversos atores locais e obter os melhores resultados possíveis, foram elaborados dois modelos de atuação que a seguir se descrevem.
1. Modelos de territorialização e de gestão
A territorialização e gestão desta proposta assenta a sua configuração em dois modelos de atuação: o modelo de articulação territorial municipal e o modelo de gestão socio-organizacional, nos quais se procura estruturar as formas de operacionalização, interrelacionadas, nas dimensões económica, social e ambiental.
O modelo de articulação territorial municipal tem por objeto a tomada de decisão em matéria de política de planeamento do espaço físico e do espaço social, relevando os aspetos do lugar e dos elementos da sua geografia, que possam servir para estruturar a paisagem rural, edificada e não edificada, vinculada à transformação da atividade humana de modo a favorecer a coesão territorial. Esta articulação territorial, proposta para se desenvolver a partir dos domínios de atuação descritos no quadro II, pode ser entendida na “lógica da construção de um «território-rede» formado por «territórios funcionalizados» que podem aprender uns com os outros, abrir possibilidade de um projeto comum baseado numa ação coletiva inovadora, na associação virtuosa entre parceiros e numa rede de cooperação multiterritorial de valor acrescentado” (Covas & Covas, 2013, p. 46).
O modelo de gestão socio-organizacional tem por objetivo agregar, no tempo e no espaço, um conjunto de ações, incentivos e investimentos dirigidos para este território do interior, atenuando os efeitos da ausência de dinâmicas socioeconómicas que muitas vezes se verifica, e procurar que sejam ajustados às prioridades e oportunidades dos negócios locais e regionais, oferecendo aos investidores uma carteira de vantagens ao investir no território concelhio (quadro III). O modelo está centrado na identificação de mecanismos específicos para a implementação de políticas e práticas rurais onde a emergência de formatos associativos e de coordenação podem desempenhar, de forma rentável, funções produtivas a nível de fornecimento de produtos agroalimentares e serviços ao ecossistema.
Para alcançar os objetivos descritos no quadro III, é proposta a criação de um Grupo de Intermediação destinado a servir como interlocutor, facilitador e dinamizador das tarefas e funções assinaladas no quadro IV, numa perspetiva programática de curto e médio prazo. O seu sucesso dependerá da adoção de uma lógica de governança territorial capaz de agregar vontades e estimular dinâmicas que fomentem um espírito empresarial, assente numa “motivação para o êxito” (McClelland, 1976, p. 36), que cative investidores locais e externos para o desejado redesenvolvimento sustentado.
2. Resultados esperados
Considerando que a implementação de ambos os modelos de territorialização assenta, sobretudo, na ativação de fatores endógenos e das potencialidades do empreendedorismo local e regional, são esperados resultados que podem contribuir para uma significativa melhoria das condições de vida das populações, bem como para a mitigação dos efeitos negativos resultantes das alterações climáticas.
Este factor-chave pode gerar oportunidades de desenvolvimento de pequenas indústrias de transformação agroalimentar de produtos endógenos com denominação de origem controlada (DOC) e potencial de valorização nos mercados regional e nacional.
A revitalização dos sistemas agro-silvo-pastoris, ao mesmo tempo que permite a ativação da produção de alimentos, pode contribuir para evitar a erosão dos solos e para a redução dos efeitos da desertificação da paisagem. Outro aspeto relevante desta proposta é o da revitalização da cintura verde à volta dos aglomerados rurais o que viria potenciar múltiplos aspetos do sistema ecológico local, como seja:
a captação, utilização e gestão eficiente da água, o aumento da capacidade de infiltração e retenção de água no solo;
a conservação e regeneração da capacidade produtiva dos solos, o controle do processo erosivo;
o reforço do conforto bioclimático através da criação de manchas verdes, geradoras de correntes atmosféricas, maior humidade e potencial diminuição da temperatura ambiente nos períodos estivais;
a salvaguarda da biodiversidade e favorecimento das condições de subsistência de culturas e espécies e preservação do património genético, entre outras vantagens ambientais e paisagísticas;
a produção de alimentos próximo dos locais de consumo e o desenvolvimento de tecnologias mais adaptadas à exploração de recursos naturais;
a criação de um campo ativo de experimentação de novas tecnologias, desenvolvimento de novas culturas e variedades, e centros de demonstração de boas práticas agrícolas e de monitorização de impactes climáticos.
O redesenvolvimento dos habitats rurais pode contribuir para a fixação de população jovem e criação de novos empregos, revitalizando a dinâmica sociodemográfica do concelho, através da criação de oportunidades de emprego direto e indireto, projetando uma imagem dinâmica em questões ambientais e de qualidade de vida.
Por outro lado, é de admitir que estes aspetos transformativos de caráter cultural, social e económico, quando associados à ativação da aldeia, na forma de habitat rural, pode beneficiar uma estratégia que cative para o projeto os que mantêm uma “ligação à terra” por laços familiares ou de parentesco, ou porque são proprietários ou herdeiros das casas existentes nos núcleos edificados e/ou dos terrenos de cultivo envolventes.
Considera-se que a ativação dos sistemas agro-silvo-pastoris pode beneficiar e, simultaneamente, contribuir de forma decisiva para a recuperação e aproveitamento do “stock” edificado existente nos aglomerados rurais, designadamente para satisfação das necessidades de habitação, infraestruturas de fabricação/transformação, armazenagem, e o turismo no espaço rural, considerando o elevado número de edifícios vagos ou temporariamente ocupados.
A ativação dos habitats rurais deverá permitir que a economia local volte a estar focada na atividade agro-silvo-pastoril de uma população residente e seja menos dirigida e dependente do denominado consumption countryside (ESPON ATLAS, 2014, p. 16), onde os visitantes e residentes ocasionais vêm sobretudo para fins de lazer ou recreativos.
V. Considerações finais
A questão do rural e da ruralidade vem a ganhar crescente importância para as políticas públicas de ordenamento do território, sendo compreendida como essencial para o equilíbrio ecológico da paisagem e a condição existencial da sociedade humana. Numa nota da OCDE, intitulada Rural 3.0.: a framework for rural development, é sublinhado o facto de que “as regiões rurais desempenharão um papel central no cumprimento das principais oportu-nidades e desafios do século 21” (OCDE, 2018, p. 4). Esta realidade constitui uma oportuni dade e simultaneamente um desafio no domínio da arte e da ciência do ordenamento do território para identificar novas metodologias de projeto e estratégias de ação que conduzam um desenvolvimento mais harmonioso entre o espaço urbano e o espaço rural.
No presente estudo de caso, coloca-se como hipótese o resgate do conceito tradicional da aldeia, como elemento estruturador do “solo rústico”. Pretende-se que a sua presença seja pensada, enquanto habitat rural além da dimensão jurídico-instrumental atribuída à noção de aglomerado rural, subordinada à disciplina do zonamento funcional e da capacidade edificatória, a qual pode ser redutora da sua dimensão histórica, cultural e espaço-social.
Nesta abordagem teórico-concetual, a proposta do plano diretor municipal procura não estabelecer uma hierarquia que “subordina” ordenamento do espaço rural ao do espaço urbano e que a ruralidade deixe de ser associada unicamente à atividade agrícola, como há muito tempo vem a ser tratado e defendido por diversos autores e investigadores das ciências do território.
De facto, a diversificação da estrutura socioeconómica do meio rural alterou a perspetiva do rural associado à agricultura, que vingou durante toda a metade do século XX, recompondo-se, progressivamente, a tradicional multifuncionalidade das formas de ruralidade, proporcionando com isso novas possibilidades de desenvolvimento económico e permitindo a formação de novos modelos de empreendedorismo no mundo rural.
Ambos os modelos, de articulação territorial municipal e de gestão socio-organizacional, apresentam orientações para a formulação de políticas públicas de base local, em que o ordenamento do território é entendido como um processo, e não como um fim em si mesmo, circunscrito à ideia de Plano, tendo por objetivo final o sucesso do rededesenvolvimento e a possibilidade da sua contribuição para um progresso auto-sustentado.
Partindo da ideia de que as formas espaciais “contêm” processos sociais, na mesma medida que os processos sociais são espaciais, a proposta de redesenvolvimento integrado aqui apresentada procura tratar ambos os processos, não como realidades distintas, mas expressões conjuntivas e elementos de suporte do processo de territorialização.
Documentos legais
República Portuguesa. (1976). Decreto-Lei n.º 794/76, de 05/11/1976. Aprova a política de solos [Decree-Law No. 794/76, of November 05/11/1976. Approves land policy]. https://dre.pt/dre/detalhe/decreto-lei/794-1976-40929
República Portuguesa. (1990). Decreto-Lei n.º 69/90, de 02/03/1990. Disciplina o regime jurídico dos planos municipais de ordenamento do território [Decree-Law No. 69/90, of 02/03/1990. It regulates the legal regime of municipal spatial planning plans]. https://dre.tretas.org/dre/7450/decreto-lei-69-90-de-2-de-marco
República Portuguesa. (1998). Lei n.º 48/98, de 11/08/1998. Estabelece as bases da política de ordenamento do território e de urbanismo [Law No. 48/98, of 11/08/1998. It lays the foundations for land-use planning and urban planning policy]. https://dre.pt/dre/legislacao-consolidada/lei/1998-34497575
República Portuguesa. (1999). Decreto-Lei n.º 380/99, de 22/09/1999. Estabelece o regime jurídico dos instrumentos de gestão territorial [Decree-Law No. 380/99, of 22/09/1999. Establishes the legal regime of territorial management instruments]. https://dre.pt/dre/detalhe/decreto-lei/380-1999-559019
República Portuguesa. (2009). Decreto Regulamentar n.º 11/09, de 29/05/2009. Estabelece os critérios uniformes de classificação e reclassificação do solo, de definição de utilização dominante, bem como das categorias relativas ao solo rural e urbano, aplicáveis a todo o território nacional [Regulatory Decree No. 11/09, of 29/05/2009. It lays down the uniform criteria for classification and reclassification of soil, definition of dominant use, as well as categories relating to rural and urban land, applicable to the entire national territory]. https://dre.pt/dre/detalhe/decreto-regulamentar/11-2009-494181
República Portuguesa. (2014). Lei n.º 31/14, de 30/05/2014. Lei de bases gerais da política pública de solos, de ordenamento do território e de urbanismo [Law No. 31/14, of 30/05/2014. Law of general bases of public policy of land, spatial planning and urbanism]. https://dre.pt/dre/detalhe/lei/31-2014-25345938
República Portuguesa. (2015). Decreto Regulamentar n.º 15/15, de 19/08/2015. Estabelece os critérios de classificação e reclassificação do solo, bem como os critérios de qualificação e as categorias do solo rústico e do solo urbano em função do uso dominante, aplicáveis a todo o território nacional [Regulatory Decree No. 15/15, of 19/08/2015. It lays down the criteria for classification and reclassification of soil, as well as the qualification criteria and categories of rustic soil and urban land according to the dominant use, applicable to the entire national territory]. https://dre.pt/dre/detalhe/decreto-regulamentar/15-2015-70055492
República Portuguesa (2015). Decreto-Lei n.º 80/15, de 14/05/2015. Aprova a revisão do Regime Jurídico dos Instrumentos de Gestão Territorial, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 380/99, de 22/09/1999 [Decree-Law No. 80/15, of April 14/05/2015. Approves the revision of the Legal Regime of Territorial Management Instruments, approved by the Decree-Law No. 380/99, 22/09/1999]. https://dre.pt/dre/detalhe/decreto-lei/80-2015-67212743
República Portuguesa. (2018). Resolução do Conselho de Ministros n.º 116/18, de 06/12/2018. Aprova o Programa de Valorização do Interior [Rand solution of the Conselho de Ministros No. 116/18, of 06/12/2018. Approves the Interior Appreciation Program]. https://dre.pt/dre/detalhe/resolucao-conselho-ministros/116-2018-116341225
República Portuguesa. (2018). Decreto-Lei n.º 111/18, de 11/12/2018. Cria e regulamenta o Programa de Captação de Investimento para o Interior (PC2II) [Decree-Law No. 111/18, of 11/12/2018. Creates and regulates the Investment Capture Program for the Interior (PC2II)]. https://dre.pt/dre/detalhe/decreto-lei/111-2018-117343896
União Europeia. (2021). Regulamento (UE) 2021/1119 do Parlamento Europeu e do Conselho de 30 de junho de 2021. Cria o regime para alcançar a neutralidade climática e que altera os Regulamentos (CE) n.º 401/2009 e (UE) 2018/1999 («Lei europeia em matéria de clima») [Regulation (EU) 2021/1119 of the European Parliament and the Council of 30 June 2021. Theregime for achieving climate neutrality and amending Regulations (EC) No 401/2009 and (EU) 2018/1999 (‘European Climate Law’)]. https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/?uri=celex:32021R1119