INTRODUÇÃO
O conhecimento das relações entre as práticas culturais e as propriedades do solo pode contribuir para melhor compreender a variabilidade espacial e temporal na produtividade e dos impactos ambientais resultantes dessas práticas (Jagadamma et al., 2008). A complexidade dos processos envolvidos na relação solo-ecossistema dá origem a conjuntos vastos de observações cuja análise implica o uso de ferramentas estatísticas capazes de analisar simultaneamente as variáveis envolvidas. O uso de Análise de Componentes Principais (PCA), Análise Fatorial (FA), Regressão Linear Múltipla (MLR) e/ou Análise Discriminante (DA) tem sido aplicado em variados campos de investigação agrícola (Yeater & Villamil, 2018). Neste trabalho, analisou-se a variabilidade temporal e espacial de parâmetros agronómicos do solo, em três parcelas com culturas anuais regadas, em duas camadas, durante três anos, recorrendo à estatística multivariada (FA e DA), nomeadamente: (i) FA para agrupar os parâmetros observados num menor número de variáveis latentes tradutoras de atributos do solo; (ii) DA para classificar e identificar os atributos dominantes para a discriminação no tempo e no espaço. Esta abordagem integrada e multidimensional pode ser aplicada no desenvolvimento de indicadores de qualidade do solo ou para avaliar padrões de mudança ambiental causada por práticas de gestão agronómica ou outras influências antropogénicas.
MATERIAL E MÉTODOS
Área de estudo
O estudo foi desenvolvido entre 2018 e 2020, em três parcelas regadas por center-pivot (Pivot 3 (P3), com 13.1 ha, Pivot 4 (P4), com 15.0 ha, e Pivot 5 (P5), com 10.3 ha, localizadas no aproveitamento hidroagrícola Brinches-Enxoé (Alentejo). Em P3 e P5 predominam Cambissolos calcários e Vertissolos crómicos; em P4 os solos são predominantemente Vertissolos pélicos e calcários. Os fertilizantes utilizados foram principalmente formulações contendo azoto (N), fósforo (P2O5) e potássio (K2O) aplicados em fundo, à sementeira (Quadro 1).
Ano | P3 | P4 | P5 | |||||
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2018 | Girassol | Girassol | Milho | S DTR (mm) N (kg/ha) P2O5 (kg/ha) K2O (kg/ha) C Y (kg/ha) | 18/04 252 127 34 27/08 3470 | 27/04 461 109 40 12 18/09 4156 | 18/07 480 202 144 216 17/01 5500 | |
2019 | Milho | Trevo | Girassol | S DTR (mm) N (kg/ha) P2O5 (kg/ha) K2O (kg/ha) C Y (kg/ha) | 13/06 750 253 - - 17/11 11000 | 20/05 151 - 88 - 18/09 1703 kg/ha | 16/05 357 57 72 100 15/09 3257 | |
2020 | Girassol | Cebola | Milho | S DTR (mm) N (kg/ha) P2O5 (kg/ha) K2O (kg/ha) C Y (kg/ha) | 09/03 542 sem dados de fertilizantes 13/08 8660 | 11/01 321 113 - - 21/08 26848 | 15/06 516 82 59 121 15/10 9182 |
Amostragem e parâmetros analisados
As amostragens de solos realizaram-se em 5 datas: T1 e T2, em 2018; T3 e T4, em 2019; T5 em 2020. T1 e T3, realizaram-se no início da campanha de rega; T2, T4 e T5, realizaram-se no final da campanha de rega. Efetuou-se a colheita de amostras compostas, por cada 5 ha, a partir da mistura de subamostras recolhidas em pontos marcados aleatoriamente, em ziguezague (Varennes, 2003). Após colheita, as amostras foram secas ao ar e crivadas com malha de 2mm, para análise dos seguintes parâmetros: textura (areia grossa, areia fina, limo e argila; g/kg) (ISO 11277:2020); capacidade de troca catiónica (CTC), cálcio, magnésio , potássio, sódio e alumínio de troca (cmol (+)/kg) (ISO 11260:2018); pH (H2O 1:2.5 (p/v)), condutividade elétrica (CE; dS/m) (H2O 1:2 (p/v)); matéria orgânica (MO; %) (Walkley-Black); azoto Kjeldahl (N; %) ; fósforo (mg P2O5/kg) e potássio (mg K2O/kg) extraíveis (Egner-Rhiem). As frações granulométricas da terra fina, os catiões de troca e a CTC foram obtidos apenas na primeira amostragem para caracterização inicial das parcelas.
Análises estatísticas
As FA foram conduzidas separadamente para cada camada do solo. Os fatores foram retidos quando apresentaram eigenvalues >1, proporção de variância > 10% e contribuição de pelo menos duas variáveis com cargas fatoriais > │0.50│. Os scores dos fatores foram usados para a DA, determinando o(s) fator(es) que mais contribui(em) para a diferenciação espacial e temporal. Realizou-se uma Análise Canónica (CCA) e selecionaram-se os coeficientes normalizados da primeira função discriminante para verificar o peso de cada fator na discriminação (Shukla et al., 2006). Todas as análises estatísticas foram realizadas com Statistica 7.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
Em P3, os solos apresentaram em qualquer das camadas classe textural franco-argilosa; em P4, franco-argilosa e argilo-limosa; em P5, verificou-se maior variabilidade, quer horizontal quer vertical, ocorrendo as classes texturais franca, franco-argilo-limosa, franco-argilosa e argilo-limosa. A CTC estimada foi muito alta em todas as parcelas (> 50 cmol (+)/kg), em concordância com a natureza argilosa destes solos Vertissolos (Varennes, 2003). Os valores médios dos parâmetros químicos avaliados mostraram que os solos das parcelas são não salinos e apresentaram reação pouco alcalina, baixos teores de MO e reduzidos valores de N total (Quadros 2 e 3). Os valores de P2O5 na camada 0-20 cm foram, em média, altos em P3 e P4 a muito altos em P5. Na camada sub-superficial, ocorreram valores um pouco menores e a classe de fertilidade para o P2O5 em P4 foi média, mantendo-se nas restantes parcelas. No que respeita ao K2O, os valores foram, em geral, elevados, correspondendo a classes de fertilidade alta a muito alta. A FA realizada para a camada 0-20cm permitiu extrair quatro fatores (Quadro 4), responsáveis por 75.04% da variância total. O fator 1 apresentou cargas fatoriais com valores absolutos > 0.50 nos teores de areia grossa, areia fina e limo, desta forma associado ao atributo textura.
pH | CE (dS/m) | MO (%) | N total (%) | P2O5 (mg/kg) | K2O (mg/kg) | |
P3 | 8.23 | 0.33 | 1.27 | 0.092 | 169.5 | 113.4 |
P4 | 8.05 | 0.30 | 1.24 | 0.076 | 146.8 | 190.6 |
P5 | 8.18 | 0.24 | 1.55 | 0.088 | 328.3 | 276.6 |
pH | CE (dS/m) | MO (%) | N total (%) | P2O5 (mg/kg) | K2O (mg/kg) | |
P3 | 8.29 | 0.27 | 1.23 | 0.084 | 130.2 | 94.6 |
P4 | 7.99 | 0.29 | 1.19 | 0.069 | 96.5 | 147.7 |
P5 | 8.19 | 0.27 | 1.33 | 0.073 | 216.6 | 176.3 |
O fator 2 correlacionou-se com o teor de argila e CTC, tratando-se de um fator de capacidade de retenção de água e nutrientes. O fator 3 mostrou-se altamente correlacionado com pH, CE e N, associado essencialmente à composição química. O fator 4, representativo da fertilidade, apresentou-se altamente correlacionado com a MO, P2O5 e K2O.
Factor 1 | Factor 2 | Factor 3 | Factor 4 | |
pH | 0.215 | 0.043 | -0.719 | -0.186 |
CE | 0.093 | 0.111 | 0.893 | 0.070 |
MO | -0.061 | -0.195 | 0.100 | -0.542 |
N total | 0.198 | 0.035 | 0.753 | -0.251 |
P2O5 | 0.015 | 0.068 | -0.257 | -0.799 |
K2O | -0.323 | -0.092 | 0.073 | -0.741 |
Areia grossa | 0.897 | -0.259 | 0.004 | 0.152 |
Areia fina | 0.943 | -0.256 | 0.053 | 0.100 |
Limo | -0.793 | -0.527 | -0.042 | -0.169 |
Argila | -0.413 | 0.861 | 0.001 | 0.008 |
CTC | 0.008 | 0.830 | 0.088 | 0.183 |
Eigenv. | 2.988 | 2.224 | 1.837 | 1.206 |
% Var. | 27.16 | 20.22 | 16.70 | 10.97 |
% Var. Acum | 27.16 | 47.38 | 64.08 | 75.04 |
Na camada 20-40 cm, a FA reteve 4 fatores responsáveis por 75.72% da variância total (Quadro 5). A estrutura do modelo fatorial foi a seguinte: fator 1 altamente correlacionado com % de areia grossa, areia fina, limo e argila, logo, representativo da propriedade textura do solo; fator 2 apresentou correlação com CE e N total, relacionando-se com a composição química; fator 3 altamente correlacionado com CTC e K2O, logo, essencialmente representativo da disponibilidade de nutrientes; fator 4, apresentou elevada correlação com pH, MO e P2O5, ou seja, transpondo o atributo fertilidade. A DA realizada com os scores fatoriais dos casos para a camada 0-20 cm, indicou o fator 3 (composição química) como predominante na variabilidade temporal, com uma Wilks’ Lambda parcial de 0.597, e o fator 1 (textura) como o fator dominante para a variabilidade espacial, apresentando um Wilks’ Lambda parcial de 0.648. No caso da camada 20-40 cm, a DA revelou preponderância dos fatores 2 (composição química) e 3 (disponibilidade de nutrientes) na discriminação temporal (Wilks’ Lambda parcial de 0.358) e espacial (Wilks’ Lambda parcial de 0.532), respetivamente.
Factor 1 | Factor 2 | Factor 3 | Factor 4 | |
pH | 0.195 | -0.288 | 0.241 | 0.752 |
CE | 0.038 | 0.863 | -0.148 | -0.200 |
MO | 0.063 | 0.363 | -0.092 | 0.562 |
N total | 0.032 | 0.894 | 0.124 | 0.066 |
P2O5 | -0.141 | -0.211 | -0.443 | 0.594 |
K2O | -0.464 | 0.233 | -0.695 | 0.228 |
Areia grossa | 0.929 | 0.024 | -0.275 | 0.005 |
Areia fina | 0.925 | 0.041 | 0.237 | 0.085 |
Limo | -0.869 | -0.007 | -0.099 | -0.050 |
Argila | -0.869 | -0.052 | 0.127 | -0.034 |
CTC | -0.302 | 0.043 | 0.758 | 0.094 |
Eigenv. | 3.614 | 1.953 | 1.611 | 1.152 |
% Var. Total | 32.85 | 17.75 | 14.65 | 10.47 |
% Var. Acum | 32.85 | 50.60 | 65.25 | 75.72 |
As primeiras funções discriminantes (Y) no tempo obtidas com CAA para as duas camadas, responsáveis por 71.03% e 79.39% da variância total, foram as seguintes: (i) 0-20 cm: Y = -0.252 (Factor 1) - 0.175 (Factor 2) + 0.973 (Factor 3) - 0.170 (Factor 4); (ii) 20-40 cm: Y = -0.284 (Factor 1) - 1.012 (Factor 2) - 0.319 (Factor 3) + 0.081 (Factor 4).
Confirmando-se, através dos coeficientes de cada fator, que é o atributo composição química aquele que mais influência tem na diferenciação temporal, denotando a influência das práticas culturais, provavelmente, da fertilização, e indiretamente, da disponibilidade de MO, através da variável N total. No caso da variabilidade espacial, obtiveram-se as seguintes primeiras funções discriminantes, responsáveis por 85.52% e 97.92% da variância total: (i) 0-20 cm: Y = - 1.941 (Factor 1) - 0.563 (Factor 2) + 0.062 (Factor 3) - 0.054 (Factor 4); (ii) 20-40 cm: Y = + 0.719 (Factor 1) + 0.284 (Factor 2) + 0.964 (Factor 3) + 0.554 (Factor 4).
O atributo textura (fator 1) é preponderante na diferenciação entre parcelas, no caso da camada superficial. Já na camada sub-superficial, esta diferenciação é maioritariamente influenciada pela disponibilidade de nutrientes (fator 3). Estes resultados indicam a importância da mineralogia do solo, da presença de argila e da sua estreita relação com a capacidade de troca catiónica na variabilidade espacial encontrada.
CONCLUSÕES
O uso de ferramentas de análise estatística multivariada pode ajudar a compreender melhor a dinâmica temporal e espacial e as relações entre as variáveis e as funções do solo. A FA realizada com dados recolhidos permitiu obter dois modelos similares de quatro fatores relacionados com a textura, capacidade de retenção de água e nutrientes, composição química, disponibilidade de nutrientes e fertilidade do solo. Os fatores mais influentes na discriminação temporal e espacial foram a composição química, a textura e a disponibilidade de nutrientes.