Introdução
Artista da Geração 80, grupo que despontou na década de 1980 com a exposição intitulada: A pintura como meio, teve sua visibilidade muito tímida frente à potência de seu trabalho, que vem sendo reconhecido ao longo do tempo.
Mesmo que os artistas de sua geração migrassem da pintura para o objeto, o ready made e a instalação, o artista manteve-se fiel ao seu trabalho, fez um movimento inverso, trazendo os objetos do cotidiano para a sua pintura, estabelecendo um jogo entre planaridade e volumetria, entre objetividade e subjetividade, numa rota sem desvios, aprofundando e adensando seu projeto poético, desafiando o ideário que se construiu sobre a morte da pintura e contribuindo assim para a sua manutenção.
Em contraponto ao rigor da observação, de matriz renascentista, seus procedimentos técnicos envolvem muitas vezes, expor a pintura à intempéries e ações imprevisíveis, dessacralizando de muitos modos a pintura, estabelecendo diálogo e vínculo com o debate contemporâneo sobre a arte.
Embora sua obra apresente objetos do cotidiano, onde seu apreço pela forma, privilegiada, protagonista da imagem, se origine de observação minuciosa e disciplinada, gerando imagens muito próximas às aparências do real, remetendo às disposições platônicas das imagens, elas se apresentam de forma enigmática e ambivalente, provocando nossa imaginação, nosso pensamento.
A cadeira, a pedra, o colchão, o extintor de incêndio que flutuam, livros que se incendeiam, que dormem sobre nuvens, conchas, forquilhas e árvores, torres e casas que se fundem, escadas que alcançam nuvens (Figura 1, Figura 2, Figura 3, Figura 4), são imagens que nos convidam ao devaneio.
O cuidado com a fatura, seja das suas pinturas, assim como das gravuras, e as associações que o artista realiza, atribui aos objetos, a princípio ordinários, um caráter extraordinário, se aproximando assim do entendimento aristotélico do conceito de mimese. A aparente solidez e rigor das formas, seu apreço pela harmonia, pela ordem, alinhadas à tradição renascentista, se mostra objetiva, rigorosa, quase científica, diurna (Figura 5), todavia, ao mesmo tempo, muitas vezes, propõe uma atmosfera onírica, em suspensão, noturna, desafiando a gravidade, esfumaçando seu foco, e remetendo à associações de forte teor simbólico (Figura 6). Assim, embora a tradição renascentista se afirme pela objetividade e rigor, o artista também estabelece fundamentos contemporâneos em seu trabalho na medida em que evoca a ação do pensamento.
Podemos dizer que a obra de arte emerge do olhar do artista e se realiza no olhar do expectador, favorecendo diversos olhares, conjuminando e agregando percepções, em uma abstração conjunta. Do mesmo modo, a obra de Sérgio Niculitcheff, pode ser abordada de diversos pontos de vista, o que a torna densa e rica.
Buscamos aqui, abordá-la do ponto de vista da fenomenologia, considerando a sua inevitável condição contemporânea, trazer o conceito de imaginação material para observarmos como em sua ação, em seu embate com a matéria, objetiva, alcança em sua vontade de criar, a imanência do imaginário, convidando o expectador de sua obra aos devaneios da imaginação a partir de objetos banais, sugerindo associações e dormências arquetípicas.
Uma figura sempre oferece o que pensar/imaginar. Para além de suas relações intrínsecas, de seu contexto interno, suas relações entre figura e fundo, com outras figuras que habitem o mesmo campo visual, uma imagem também se insere e se relaciona com seu contexto, como num circuito de fenômenos conectados (Samain, 2012). Na medida em que estas se interconectam com outras imagens, interagem e se contaminam mutuamente.
Diante destas características que envolvem as imagens, Samain (2012) propõe uma questão:
Ouso dizer que a imagem - toda imagem - é uma forma que pensa. A proposição é tanto mais ambígua e complexa que chega a insinuar - até sugerir - que, independentemente de nós, as imagens seriam formas que, entre si, se comunicam e dialogam. Com outras palavras: independentemente de nós - autores ou espectadores - toda imagem, ao combinar nela um conjunto de dados (traços, cores, movimentos, vazios, relevos, e outras tantas pontuações sensíveis e sensoriais), ou associar-se com outra(s) imagem(ns), seria uma "forma que pensa" (Samain, 2012:23).
Tratam-se de fenômenos que nos indagam, se colocam diante de nós como sujeitos que nos arguem e nos convocam a pensar. Repositórios de memórias, sensações, emoções, memórias, e pensamento, tanto de seu autor como de todos os seus expectadores, geram densas camadas de significação.
Mas, assim como são capazes de comunicar, imagens também ocultam, se recusam a revelar extratos mais profundos de sua existência e importância. Para Bateson (2000 apud Samain, 2012), nem as formas, nem as imagens, ou mesmo o cérebro pensa, o que pensa é o cérebro dentro de um homem que é parte de um sistema que inclui o ambiente.
Toda imagem é fenômeno resultante de uma expressão, manifestação que emerge de uma experiência e que vem à luz, revelando-se. Experiência que implica em um contexto, que depende da existência do tempo e do espaço, da luz da sombra, de um suporte, e para ser imagem, de seu expectador, com o qual se relaciona em um movimento de via dupla, de dentro para fora e de fora para dentro. "Sem chegar a ser um sujeito, a imagem é muito mais que um objeto: ela é o lugar de um processo vivo, ela participa de um sistema de pensamento. A imagem é pensante" (Samain, 2012:31). "Diante dela, o espectador sente-se como se estivesse diante de um outro que o interpela." (Tassinari, 2001:145).
Assim, a obra de arte se constrói por meio de intersubjetividades, em uma relação simétrica entre sujeitos. Já que é necessário que cada um seja capaz de inferir o mundo do outro dentro de si, retendo um núcleo intersubjetivo, na direção da construção de uma rede de socialização e história constitutiva da cultura, propõe um jogo entre olhares, no sentido de construir uma trama intersubjetiva, que não emerge somente da obra, exige do espectador um esforço. (Tassinari, 2001)
O que quer dizer esta imagem (Figura 4) que nos mostra uma casa que repousa sobre uma forma que remete à forma da nuvem, etérea, mas ao mesmo tempo sólida, que recebe luz e projeta sombras tal qual as paredes da casa? Certamente é uma imagem aberta, que possibilita inúmeras interpretações. Buscamos assim na antropologia visual e na imaginação material proposta por Bachelard um caminho possível de contribuição para o enriquecimento do entendimento da obra deste artista evitando assim uma leitura superficial e redutiva de sua obra.
A imaginação material proposta por Bachelard (Pessôa, 2008), propõe ao espectador, em contraposição das disposições da ciência formal, um exercício da capacidade de abstração, tal qual o artista o faz, em sua postura ativa diante da matéria, resistente, com a qual sua mão, em embate, a manipula, a elabora em uma constante vontade de criar. Sugere que sejamos capazes, assim como criamos teoremas, sejamos capazes de operar devaneios, criar poemas, dando asas à nossa imaginação.
Por oito anos tivemos a alegria de conviver e observar este obrar meticuloso e disciplinado de Sérgio Niculitcheff sobre suas gravuras, no atelier que mantemos, eu e meu companheiro Artur Cole. Muitas das vezes pudemos observar, de modo direto ou indireto, a presença recorrente dos elementos fundamentais da vida, como o fogo, a água, a terra e o ar. Para Bachelard (Apud Pessôa, 2008:3), tratam-se de:
Imagens primitivas que substanciam o que há de material e dinâmico no mundo. Imagens que traduzem temperamentos artísticos, poéticos e filosóficos. Para o pensador há uma carência de estudos que tratam da materialidade na arte. Há que serem notados os devaneios materiais que que antecedem à contemplação estética. Os quatro elementos da natureza são vistos na sua obra como sentimentos humanos primitivos, realidades orgânicas primordiais e temperamentos oníricos fundamentais
A maior parte, senão todas, as figuras evocadas na obra de Niculitcheff se originaram no tempo, num tempo de tenra infância e adolescência, em um plano individual, porém também em um tempo imemorial, longínquo, formadas lentamente pela cultura em um plano coletivo. A forma do livro, da casa, da escada, da nuvem, da concha, entre outras, habitam nossa memória, convocam nossas sensações, emoções, pensamentos, proporcionando ao artista a possibilidade de amalgamar toda a carga simbólica elaborada, construída e atualizada ao longo do tempo.
Assim como as imagens têm capacidade de se comunicar com seu contexto espaço-temporal também viajam no tempo. Sabemos que a dimensão simbólica é um componente do conhecimento integrante da cultura constituída ao longo do tempo. "O conhecimento consiste na captura e na observação do princípio vital que trabalha todo fenômeno. A memória humana preserva a lembrança daquilo que foi, assegura a perenidade do passado sob a constante mudança" (Lescourret, 2012:81).
Tanto a ideia, o conceito quanto a forma do livro, pode se referir em um primeiro momento à ciência, à constituição da memória, do conhecimento, da imaginação criadora. Em um livro podemos encontrar um mundo inteiro, desde as mais ínfimas partículas de suas estruturas, até a vastidão do cosmos. O próprio universo pode ser visto como um grande livro a explorar, desvendar e descrever. (Chevalier & Gheerbrant, 1999). Quando aberto, revela, comunica, se expande, quando fechado oculta, assim como nosso ser. Suas páginas podem ser preenchidas com imagens, textos ou brancas aguardando inscrições.
Já o fogo nos remete a humores extremos, elemento primordial do universo vive no cosmos assim como no coração da Terra, pode ser entendido tanto em sua ascepção positiva, ascensional, como fonte de calor e de luz, de conforto, de iluminação divina, assim como em seu aspecto negativo, capaz de nos causar dor e destruição.
Ao tomarmos como exemplo a pintura apresentada na Figura 6, veremos livros amontoados, alguns abertos, outros fechados. O livro associado ao fogo, pode nos lembrar a tradição iluminista ou os terrores de tempos obscuros. O artista assim, propõe uma obra ambivalente, aberta e silenciosa.
A nuvem não tem forma definida, nem corpo, é etérea, mutante, instigante, abriga formas e cores ilimitadas, objeto visual da pintura e da fotografia, ela pode ser vista como espelhos que devolvem cores, ou, aos olhos de um cientista, como arautos de fenômenos meteorológicos. Trata-se de um elemento celeste, símbolo da transcendência, faz parte do espaço ilimitado. Suportando um livro fechado, quantas interpretações poderia gerar esta associação?
Mas, sabemos também que o conhecimento, assim como a cultura, é móvel, se transforma ao longo do tempo, impactando nosso entendimento dos fenômenos, e por mais que busquemos interpretar a obra de Sérgio Niculitcheff do ponto de vista da sua dimensão simbólica, ela continuará nos desafiando em sua ambiguidade, em suas múltiplas proposições, em seu mistério (Figura 7).
Neste sentido, a disposição da obra de arte de expressar uma vivência, e de impactar nossos sentidos e pensamentos, expõe o quanto ela, obra de arte, participa e colabora para a constituição da cultura e, portanto, do conhecimento, portador de uma natureza tanto objetiva quanto subjetiva (Figura 8).
Por todas estas razões e contrapontos, em sua aparente objetividade e silêncio, sua obra vibra.