O rasgar retórico
Um percurso estabelece uma ligação com o sujeito que o percorre parecida com a relação do autor: a retórica posiciona o artista em relação ao percorrido, e em relação às opções a percorrer, a possibilidade da arte. O percurso é propositivo, é ele mesmo textual. As possibilidades são escolhas possíveis no seu tempo, definidas no eixo paradigmático, dentro das articulações de pertinência e do alcance do seu tempo e utensilagem material e cognitiva (Assis, 2019). O dispositivo da arte encerra assim sujeito e possibilidade num rasgar retórico em que a escolha se exerce de modo mais ou menos coercivo mais ou menos inovador (Dias & Almozara, 2019). Parte da liberdade condicionada desta retórica é mediada pela utensilagem, ela mesma resultado do seu próprio dispositivo. Aqui há outra negociação em curos, entre o autor e as matérias, sejam suportes ou meios de ação (Pereira, 2019; Pérez-Jofre Santesmases, 2019).
1. A formalidade molecular
As máquinas foram pensadas e sonhadas como uma amplificação corporal, permitindo mais perfeita ação, mais ampla ou rápida, em diferentes escalas e alcances, ou simplesmente mais ações. As máquinas permitem uma mediação com a natureza sujeita a uma formalidade inerente às matérias: chamemos-lhe “formalidade molecular,” pois é a este nível que se encontram as formas simples, amplificadas pelos cristais, pelos sólidos, pelo nível dos líquidos, ou pela esfera da explosão gasosa. Máquina, ou coisa que se apresenta e faz mover, coisa agente e agida (Tedesco, 2019). Máquinas podem ser coisas pequenas e simples, como um lápis que risca em vez de um dedo, ou um pincel que pinta em vez de um sopro de saliva (Weymar, 2019). Ou por outra, dispositivos mais alavancados, como um compasso, uma câmara obscura ou fotográfica, um computador ou impressora. Em todos a mesma formalidade matizada pela maior ou menor discricionariedade.
2. O condicionamento corporal
Nos corpos, a determinação antiga, a resiliência e a herança, a pulsão dramática da vida sobre a morte. Sobre os corpos escreve-se pelas vidas que se sucedem e se repetem, uma escrita interminada, escrita que conta uma história de habilidades e falhanços, de sucessos na adequação, e muitas mais de insucesso, na multiplicação dos seres diferentes na reprodução em cada geração. O corpo sobra assim, o corpo que vive é o corpo que vence, entre muitas outras tentativas de ser corpo. O corpo vence até à próxima falha, que será quase de certeza, a próxima geração. E a excepção é o próximo corpo que sobra, vivo e herdeiro.
3. Para uma economia da linguagem
Um destes corpos descreve-se como sujeito, representa-se e pensa-se, para além de um princípio reativo mais comum. A arbitrariedade simbólica revela-se como utensilagem ligada a uma troca, seja objetual - a economia, - seja semântica - a linguagem. Aqui será outro o utensílio, a habilidade, a capacidade de substituição, de criação de fetiche, a relação com uma organização transcendente que permanece para além da troca substancial. A movimentação das coisas, ou das ideias, não desorganiza, mas concorre para um equilíbrio manifesto na permanência. Este trânsito, permanente estabelece o fundamento da política (Queiroz, 2019; Pontes, 2019), vantajosa do ponto de vista do sucesso na competição pelos recursos entre as espécies.
4. No Estúdio 29, catorze escritas por artistas
Nestas propostas apresentadas pelos catorze artigos reunidos no número vinte e nove da revista Estúdio anotam-se momentos de uma escrita, dentro das escritas.
O artigo “La interacción individuo: sociedad en los proyectos conceptuales de la artista peruana Teresa Burga,” de Judith Huancas Ayala (Peru), apresenta, no contexto dos anos 60 no Peru, e do grupo Arte Nuevo, composto por Jorge E. Eielson, Mario Acha, Rafael Hastings, Emilio Hernández Saavedra, Luis Arias Vera, Gloria Gómez-Sánchez e Yvonne Von Mollendorf, e também Teresa Burga (Iquitos, Peru, 1935), cuja obra é aqui debatida. Aquele grupo explorou a estética Pop, o happening e as instalações. As propostas de 1980-81 de Burga, depois retomadas em 2015, são revisitadas: trata-se de focar o perfil da mulher peruana numa intervenção onde as questões de género são explicitamente advogadas.
Adriana Anselmo de Oliveira (Portugal), no artigo “Maria Emília Araújo: uma artista de cores, memórias e viagens,” revisita a obra da ceramista Maria Emília Araújo (n. Porto, Portugal, 1940), assinando Mariaújo. Insere-se na modernização da azulejaria portuguesa empreendida nos anos 50 em torno da Fábrica Viúva Lamego, renovação iniciada por Jorge Barradas nos anos 30 e prosseguida por autores como Maria Keil, Manuel Cargaleiro, Querubim Lapa, nos anos 50.
O artigo “El objeto del dibujo y su experiencia, para Marco Moreira,” de Anne Heyvaert (Espanha), apresenta a obra do português Marco Moreira (n. Favaios, Portugal, 1978) mas propõem uma referencialidade instrumental maquínica nos seus desenhos que se auto-constroem demonstrativamente, e assim se desconstroem, numa leitura conotada advinda da sua própria extrema denotação: nada a esconder na exibição absoluta e perfeita dos seus elementos significantes e esquemáticos.
Carme Porta Salvia (Espanha), no artigo “El rastro de lo cotidiano en la creación artística de Massimo Cova,” apresenta a produção deste autor nos últimos dez anos. Massimo Cova (n. Itália, 1960) é arquitecto (IUAV, Veneza, 1986) e artista plástico (licenciado e Doutor, Universidade Barcelona) e vem integrando obras colaborativas e autorreferenciais, interrogando as substâncias de suporte e os procedimentos tecnológicos mais ou menos contemporâneos, demonstrando a sua indexicalidade vestigial e viva.
O artigo “Animalis Imaginibvs: (as)simetrias entre arte e ciência na obra de Mauro Espíndola,” de Daniela Remião de Macedo (Brasil), aborda a obra de Mauro Espíndola (n. Rio de Janeiro, Brasil, 1962), que neste artigo se restringe à série Animalis Imaginibvs, do seu heterónimo, o pesquisador Emanoel Leichter, um necroinventariante do bestiário do antigo moinho que habita. As obras exibem a forma de gravuras monotípicas simétricas e experimentais produzidas a partir das minúsculas e frágeis asas de borboletas e mariposas encontradas no moinho, gravuras que Mauro denomina ‘biogravuras.’
Eduardo Vieira da Cunha (Brasil), no artigo “Amélia Brandelli e a absorção e transformação do desenho: um diálogo com a vida das plantas em inverno, quase inverno,” apresenta a série de desenhos de 2019,”Inverno, quase inverno,” de Amélia Brandelli (Rio Grande, Brasil, 1960). São desenhos que revisitam o realismo fotográfico, executados a grafite em grande dimensão, exibindo uma vocação analítica e não perspética, que se desinteressa pela perspetiva em benefício do mapa ou do território micro-analisado, emergindo da sombra, tida como desejada.
No artigo “Manolo Cuervo, pintor de símbolos, diseñador de imágenes,” de Enrique López Marín (Espanha), aborda-se Manolo Cuervo (n. Isla Cristina, 1955), pintor e autor gráfico radicado em Sevilha. No contexto da abertura pós-franquista, a sua obra espelha a expansão dos anos 80 espanhóis através de uma iconografia contrastante e mobilizadora das emoções, que se referem por sua vez a um imaginário pós pop e referencia dos ícones sobrepostos aos indivíduos, numa festiva convocatória permanente de rostos e eventos tanto aplanados como espessos de tintas sempre impuras de desejo.
Isabel Sabino (Portugal), no artigo “Clara Menéres, mulher-terra-viva,” debruça-se sobre a escultora Clara Menéres (Portugal, Braga, 1943-Lisboa, 2018), especificamente sobre as suas obras de 1977, começando na exposição Artistas Portuguesas (SNBA) onde exibe A Concha de Vénus, para a seguir apresentar Mulher-Terra-Viva na Alternativa Zero, que será depois reapresentada na Bienal de S. Paulo, Brasil. Contrapõem-se estas obras com as de Ana Mendietta, ou com a autora Luce Irigaray, para um debate alargado sobre as questões associadas ao género e aos seus corpos significantes.
O artigo “As Tactilidades Conectivas de Inês Norton,” Joana Burd (Brasil), debruça-se sobre a exposição ‘Please [do not] touch’ da artista portuguesa Inês Norton, no MNAC (Museu nacional de Arte Contemporânea do Chiado) em Lisboa, explorando a estética háptica interativa com dispositivos instalativos e electrónicos.
Jon Macareno Ramos (Espanha), no artigo “Lo que queda, el resto, como agente articulador en la obra de Rui Pedro Jorge,” apresenta a obra deste pintor (n. Lisboa, Portugal, 1987) que toma paisagens vestigiais e excêntricas, recantos insignificantes, de sabor ultramarino, para as suas grandes telas referenciais.
O artigo “Francisco Lourenço e a pintura animada,” de Margarida Penetra Prieto (Portugal), aborda a obra do animador e artista Francisco Lourenço (n. 1986, Lisboa, Portugal), criador de booktrailers infantis (desde 2015), curtos vídeos onde explora e emprega, partindo de ilustrações de terceiros, estratégias para recomposição em cada frame e para a produção de movimento e para a indução de uma temporalidade, e utilizando, nas projeções, o canto da sala como eixo vertical para separar duas projecções idênticas, por exemplo.
Mihaela Radulescu de Barrio de Mendoza & Judith Huancas Ayala (Peru), no artigo “Lo real, lo imaginario y lo simbólico en la obra del artista peruano Sergio Zevallos,” apresenta a intervenção estética de Sergio Zevallos (n. Lima, Peru, 1962) que se tornou publico na exposição “Perú, un sueño…” do Grupo Chaclacayo (1982-1994), integrado por Helmut Psotta (Alemanha), Raúl Avellaneda y Sergio Zevallos (Peru), no Museo de Arte de Lima (MALI), uma exposição censurada e polémica, ao implicar temas como a religião, identidade, género, sexualidade.
O artigo “Patricia Gómez y María Jesús González: la memoria en la pared,” de Paula Santiago Martín de Madrid (Espanha), debruça-se sobre o grupo composto por Patricia Gómez (n. Valencia, 1978) y María Jesús González (n. Valencia, 1978), desde 2002. Interroga-se o vazio dos espaços de exposição expostos nas suas camadas de aderência negativa: o avesso das paredes, a contrafigura dos edifícios, que expõem a possibilidade de um território desocupado, impondo um sentido mnésico tanto superficial como profundo, revelador de vivências a descamar.
Ronaldo Alexandre de Oliveira (Brasil), no artigo “O gabinete real de leitura de Claudio Garcia ou como um artista sedimenta o tempo,” aborda a obra do arquitecto e artista gravador, ativo em Londrina, Paraná, Brasil. São os seus numerosos livros de artista, “livros de horas” pintados e artesanais, que se articulam com o seu espaço de trabalho, pleno de conexões artísticas e de intimidade expansiva, e íntima, em simultâneo.
5. O equilíbrio discursivo que organiza a economia simbólica
Estas escritas por artistas sobre outros artistas foram oportunidade para a reflexão sobre o “rasgar retórico” do artista, pela proposta feita entre as possibilidades discursivas, dentro de condicionantes. São elas as que constituem o dispositivo que conforma as formulações. Ao mesmo tempo a relação com as matérias, com a utensilagem, foi pensada, enquanto mediação com a natureza, sujeita a uma “formalidade molecular” que as máquinas amplificam. O seu autor usa o corpo que lhe cabe na geração dos vivos, herdeiro de sucessos e modelado por insucessos: é um corpo que sobra. Corpo que consegue proceder a uma economia, seja objetual, seja simbólica, dentro do equilíbrio discursivo que se manifesta, a política (Ramos, 2019; Radulescu de Barrio de Mendoza, 2019).
6. Epitáfio para uma obra no deserto
As formas pensadas pelos corpos que se sucedem nas gerações, podem permanecer pelas substâncias, pelos suportes, pelas matérias. São vestígios de pensamentos. Partilham com os restos dos vivos, as suas carcaças, o seu suporte material, mas desta feita, intencional, deliberativo, pleno de singularidade discursiva e identitária, por vezes partilhada, por vezes deixada na solidão dos sedimentos (Silva, 2019; Barachini, 2019). Assim ficam as obras, testemunhos subjetivos frágeis e quase insignificantes, sem comensurabilidade ou comparabilidade com o plano dos organismos (Charréu, 2019). Porém certos corpos vivos, para além dos seus restos, deixam pequenas peças interrogadoras de uma perplexidade nova, coincidente com um olhar piscante, húmido, pronto a rir, pronto a chorar, que nos contempla em permanência do fundo de um quadro.