Durante décadas, a prestação remota de cuidados de saúde emergiu como uma alternativa para mitigar alguns dos desafios observados em cuidados primários. As novas tecnologias foram inicialmente apresentadas como uma estratégia para potenciar o acesso a cuidados de saúde em áreas rurais ou de difícil acesso, de forma a garantir cobertura geográfica e otimizar o acesso universal. (1)-(2 No entanto, a potencial aplicação estendeu-se progressivamente a outros contextos, como uma opção conveniente em grupos selecionados de utilizadores.
Apesar da promessa, as taxas de adoção permaneceram baixas durante as últimas décadas. (3 No entanto, durante a pandemia da COVID-19, esta realidade foi radicalmente transformada. (4)- (5 Em poucas semanas, médicos de família e doentes em todo o mundo transitaram para esta nova modalidade de prestação de cuidados, com planeamento e preparação mínimas, contingências inevitáveis de uma situação de emergência. (6 Na linha de frente da prestação de cuidados, os médicos de família surgem numa posição privilegiada para fornecer evidência sobre o impacto da prestação de cuidados remotos. A experiência adquirida durante a pandemia da COVID-19 é crítica para informar a adoção estável destas soluções, assim como a coprodução de processos e plataformas tecnologicamente robustos e a implementação de um adequado plano estratégico a longo prazo.
Neste contexto, foram recentemente avaliadas as perspetivas de médicos de família em vinte países, no que se refere às suas perceções sobre os benefícios e desafios associados com a prestação de cuidados remotos durante a pandemia. Os benefícios identificados incluíram a redução dos riscos de exposição à transmissão da COVID-19, a garantia de acessibilidade e continuidade de cuidados, a possibilidade de realizar triagem remota e uma maior conveniência e facilidade de comunicação com o doente. Um dos maiores benefícios identificados foi a aceleração da transformação digital, através de um aumento da consciencialização, confiança e adoção destas tecnologias, suportada por mudanças legais e regulatórias.7 No período pré-pandemia, um contacto telefónico para fins de prestação de cuidados não era considerado legal em vários países; noutros casos, estes contactos eram legalmente possíveis, mas não eram considerados um ato médico nem remunerados de acordo.
Foram também destacados desafios significativos: o potencial impacto negativo na comunicação; a falta de equipamento, incluindo de linhas telefónicas; as dificuldades de acesso observadas em alguns grupos de doentes; e a baixa literacia digital. Adicionalmente, o aumento da incerteza clínica - inerente à prática da medicina geral e familiar, mas particularmente potenciada na ausência de realização de exame objetivo - foi mencionado como um desafio importante, com potencial impacto negativo na rapidez e acuidade do diagnóstico e tratamento. Alguns participantes ressalvaram que as consultas remotas são ultimamente inadequadas para determinadas consultas e/ou doentes e que podem contribuir para um uso excessivo e desadequado dos recursos de saúde. Desafios específicos para os médicos de família incluíram a falta de orientação e apoio, a maior carga de trabalho e as questões relacionadas com a (falta de) remuneração destas atividades. Do ponto de vista dos sistemas de saúde, a dificuldade em ultrapassar a cultura organizacional pré-estabelecida, as dificuldades tecnológicas, de implementação e financeiras, e a falta de políticas de apoio e a legislação regulatória foram também mencionadas como importantes limitações.
A implementação de consultas virtuais em contexto de cuidados primários é complexa e requer estratégias individualizadas para enfrentar os desafios identificados, bem como para abraçar plenamente os benefícios postulados. É necessário considerar o contexto de implementação, assegurar a maturidade e adequação da infraestrutura de tecnologia, ouvir e incorporar a experiência dos doentes e dos profissionais, garantir a segurança do doente e gerir os riscos associados. A implementação - e manutenção - das opções de atendimento remoto devem ser responsivas aos processos de melhoria contínua e, idealmente, baseadas em evidência robusta sobre o seu impacto. A avaliação do impacto deve incidir nos efeitos da qualidade dos serviços prestados e segurança dos doentes, incluindo não apenas medidas objetivas de eficácia e efetividade, mas também o feedback do paciente e dos prestadores de cuidados.
Finalmente, é importante ressalvar que o cenário tecnológico e regulatório é dinâmico e sujeito a mudanças constantes - assim como o são as preferências e necessidades dos pacientes e profissionais de saúde. As opções de cuidados remotos devem ser seguras e objeto de processos de regulação estruturados, mas igualmente flexíveis o suficiente para acomodar os requisitos em evolução dos vários elementos envolvidos. (8
À medida que o fim da fase de emergência da pandemia se aproxima existe agora um imperativo ético de perceber de que forma os cuidados remotos podem contribuir para a prestação de cuidados, para que doentes e em que circunstâncias. (9 No âmago de uma experiência que transformou temporariamente a forma como vivemos e como fazemos medicina reside também a inesperada oportunidade de identificar novas oportunidades para as novas tecnologias no futuro dos cuidados primários.