Introdução
A pneumatúria consiste na presença de ar no jato urinário, geralmente no final da micção.1-2 A pneumatúria está presente em cerca de 70 a 90% dos doentes com fístula colo-vesical, sendo considerada um sintoma quase pato-gnomónico de fístula colovesical. 1-2 Os poucos diagnósticos diferenciais para pneumatúria incluem a cistite enfisematosa (infeção do trato urinário por um organismo produtor de gás, que afeta principalmente doentes diabéticos), a fístula vesicovaginal e as lesões iatrogénicas (decorrentes de algaliação, procedimentos endoscópicos ou cirúrgicos recentes). 1-3
A fístula colo-vesical é uma comunicação anómala entre o cólon e a bexiga. A causa mais comum é a diverticulite aguda, sendo responsável por cerca de dois terços dos casos (65-79%). A segunda causa mais comum é a neoplasia, em 10 a 20% dos casos, geralmente por adenocarcinoma do cólon. A doença de Crohn é a terceira causa mais comum (5-7% dos casos) e, na sua maioria, resulta de doença prolongada. 1-2 Outras causas menos comuns de fístula colo-vesical são a lesão iatrogénica secundária a cirurgia ou procedimentos, a radiação pélvica, o trauma abdominal e a tuberculose. 1
A incidência de fístula colo-vesical na doença diverticular varia entre 2 e 23%, sendo o cólon sigmoide a porção mais afetada. O mecanismo subjacente é uma extensão direta da inflamação por rotura de divertículo ou abcesso peri-diverticular, causando erosão da bexiga. 1-2,4 A idade média de apresentação das fístulas colo-vesicais é entre os 55 e os 75 anos de idade, atingindo mais o sexo masculino. Os achados clínicos mais frequentes são as infeções do trato urinário recorrentes ou persistentes, a disúria, a polaquiúria e a hematúria. 4 No entanto, estes sintomas são inespecíficos e frequentemente os doentes são acompanhados durante vários meses sem que a condição seja reconhecida, o que torna o diagnóstico de fístula colo-vesical desafiador e, por vezes, tardio. 4-5 A pneumatúria (presente em cerca de 50 a 95% dos casos) e/ou fecalúria (em 40 a 70% dos casos), se presentes, são mais específicos, sendo considerados praticamente patognomónicos de fístula colovesical. 2,4 Menos de 50% dos doentes com fístula colo-vesical apresentam antecedentes de diverticulite aguda. 1
A realização de meios auxiliares de diagnóstico tem por objetivo confirmar o diagnóstico e determinar a etiologia subjacente, de modo a delinear a estratégia terapêutica. 1,4
A tomografia computorizada (TC) abdomino-pélvica é essencial na avaliação diagnóstica de fístula colo-vesical, sendo um exame altamente sensível no diagnóstico de fístula colo-vesical. Adicionalmente, a TC abdomino-pélvica fornece informações relativas às estruturas anatómicas circundantes e permite identificar neoplasias e determinar a etiologia subjacente. 1,4-5 A colonoscopia e a cistoscopia têm uma baixa sensibilidade na deteção do trajeto fistuloso. A colonoscopia é utilizada para avaliar a etiologia da fístula, descartar malignidade, doenças inflamatórias intestinais e uma eventual estenose intestinal distal à fístula. 1,4 A cistoscopia está indicada se suspeita de malignidade da bexiga, massa vesical identificada na TC abdomino-pélvica ou na ausência de patologia do cólon.1-2 A ecografia trans-abdominal e a ressonância magnética também podem ser úteis no diagnóstico de fístula colovesical. 5 O prognóstico e o tratamento das fístulas dependem da etiologia subjacente, do local da lesão intestinal e do estado pré-operatório do doente. 1-2,5 O tratamento não cirúrgico pode ser uma opção; contudo, é geralmente reservado para doentes sem condições para cirurgia ou com neoplasia irressecável. A resseção intestinal com anastomose primária está preconizada na maioria dos casos de fístula colo-vesical, estando indicada nos casos de diverticulite complicada. O prognóstico é geralmente favorável e a recorrência pós-operatória é incomum no caso de fístulas benignas e não induzidas por radiação. 2,5
Descrição do caso
Os autores relatam o caso de um homem de 55 anos, caucasiano, com o 9.o ano de escolaridade, que trabalha na logística interna duma empresa. Integra uma família alargada, cujo agregado familiar é constituído pelo próprio e pela sua mãe, de classe socioeconómica III (média), segundo a escala de Graffar. Apresenta como antecedentes pessoais excesso de peso, hipertensão arterial, diagnosticada em 2018, sem complicações macro e microvasculares, controlada com candesartan 8 mg qd e doença diverticular do cólon, diagnosticada em 2018 em colonoscopia de rastreio, sem episódios conhecidos de diverticulite aguda.
Recorreu à consulta programada com o seu médico de família, em agosto/2021, onde referiu que tinha “sensação de que elimino ar, no fim de urinar” (sic); estas queixas tinham evoluído de forma intermitente, ao longo do último mês, sem disúria, polaquiúria ou fecalúria associadas. Referiu três episódios prévios de disúria e polaquiúria nos últimos seis meses. Os dois primeiros episódios resolveram-se espontaneamente, sem necessidade de observação médica nem medicação. No terceiro episódio, em maio/2021, foi observado em consulta aberta, tendo sido pedida urocultura que confirmou uma infeção do trato urinário por E. coli, medicada com ciprofloxacina oral, numa dose de 500 mg, duas vezes por dia, durante oito dias, de acordo com o perfil de sensibilidade do antibiograma.
Ao exame objetivo encontrava-se apirético, normotenso, com pulso amplo e rítmico, abdómen mole e depressível, indolor à palpação, sem massas ou organomegalias palpáveis, sem sinais de irritação peritoneal e Murphy renal negativo bilateralmente.
Perante o sintoma de pneumatúria e tendo em conta os antecedentes de doença diverticular do cólon e os episódios prévios de infeção do trato urinário levantou--se a suspeita de fístula colo-vesical, pelo que lhe foram solicitados estudo analítico, incluindo análise sumária de urina e urocultura, TC abdomino-pélvica e colonoscopia. Analiticamente sem anemia, leucocitose nem neutrofilia, função renal normal, com taxa de filtração glomerular estimada pela equação de CKD-EPI de 94,5 mL/min/1,73 m2. A análise sumária da urina não apresentou alterações e a urocultura foi polimicrobiana não valorizável. A TC abdomino-pélvica revelou: “diverticulose cólica, particularmente expressiva no cólon descendente e no sigmoide. Ligeiro espessamento parietal do cólon sigmoide, com discreta densificação da gordura envolvente. Cólon sigmoide relacionado intimamente e sem plano de clivagem com área focal da cúpula vesical, na sua vertente lateral esquerda, suspeito de fístula colo-vesical, possivelmente sequelar a processo de diverticulite prévio. Não se observou gás no lúmen da bexiga. Não se identificaram coleções ou líquido livre”. A colonoscopia confirmou a presença de “doença diverticular do cólon sigmoide complicada com fístula aos 15 cm”. Perante os achados compatíveis com fístula colo-vesical como complicação de doença diverticular do sigmoide, o doente foi referenciado à consulta de cirurgia geral.
Em novembro/2021 foi submetido, eletivamente, a resseção anterior do reto, por via laparoscópica, que decorreu sem complicações e com boa recuperação, tendo tido alta ao sexto dia pós-operatório. O exame histológico dos tecidos ressecados revelou “lesões de divertículo com fibrose, sem inflamação aguda”; não foram identificadas características de doença inflamatória intestinal nem malignidade. Desde então, sem queixas de pneumatúria ou novos episódios de infeção urinária.
Comentário
Os autores descrevem um caso de fístula colo-vesical como complicação de doença diverticular, diagnosticada em colonoscopia de rastreio, três anos antes do aparecimento da pneumatúria e dois episódios de infeção do trato urinário. A doença diverticular permanece assintomática em cerca de 80% dos casos e é geralmente diagnosticada incidentalmente em exames como a colonoscopia, a TC ou a radiografia com bário. 6 Os sintomas surgem quando ocorrem complicações, como diverticulite aguda, fístula, perfuração, abscesso, hemorragia ou obstrução. 6-7 Cerca de 75% dos doentes com doença diverticular complicada não relataram sintomas cólicos prévios. 6 A doença diverticular não complicada não necessita de qualquer tratamento específico. O médico de família deve reforçar a otimização dos estilos de vida, nomeadamente uma dieta equilibrada, hidratação adequada, exercício físico, perda de peso e cessação tabágica. 7
Com este caso, os autores pretendem evidenciar um sintoma pouco frequente na prática diária do médico de família e pouco relatado na literatura - a pneumatúria -, mas altamente sensível e específico para o diagnóstico de fístula colovesical. 1-2 A fístula colo-vesical é uma patologia incomum, mas que pode causar morbilidade significativa e afetar a qualidade de vida do doente. 5 A pneumatúria é, por vezes, o primeiro sintoma de fístula colo-vesical e, quando presente, deve sempre levantar a suspeita desta complicação rara de doença diverticular, principalmente em indivíduos não diabéticos, com antecedentes de doença diverticular e infeções urinárias de repetição. Contudo, embora a doença diverticular complicada seja a etiologia mais comum da fístula colo-vesical é de suma importância excluir malignidade e doença inflamatória intestinal.