«Espagnols nos bons amis,
(Au moins sil’on vous-veut croire)
Ce que vous auez promis,
Est-il fable? Est il histoire?»
(Ode sur Dom Joseph de Illescas)
«O bom frade contou muita fábula, como todos os colectores de causas primordiais de uma nação, que se vão perder sempre em maravilhas, confusas entre a luz e as trevas do crepúsculo de seus primeiros séculos» (Almeida Garrett)
O designado “pacto sucessório” entre os condes Raimundo e Henrique, não contém data cronológica nem data tópica. Apesar de o documento ter sido analisado por muitos historiadores respeitáveis, ou mesmo consagrados, que o consideraram verdadeiro, verificamos que não se encontra nenhuma solução de consenso relativamente à data e ao contexto em que foi produzido. Do “pacto sucessório”, daqui para a frente designado apenas por pacto, não possuímos hoje nenhum testemunho manuscrito, mas apenas o testemunho impresso por Luc d’Achery1. Dado que a versão conhecida está inclusa em carta endereçada ao abade de Cluny, Rui de Azevedo admite que o documento foi originariamente recolhido no arquivo cluniacense, o que lhe parece confirmado pela referência, contida no «Elenchus Contentorum» do tomo I, na segunda edição do Splicilegium (e que eu verifiquei já estar contida no tomo III da primeira edição), com a indicação de proveniência: «ex ms. Abbatia Cluniacensis». O manuscrito é hoje dado como perdido, pelo facto de o Recueil des Chartes de L’ Abbaye de Cluny não lhe dar cota arquivística, como é norma dessa colecção diplomática2. A falta do manuscrito é um primeiro elemento da suspeição que vai conduzir o nosso trabalho. Como refere a Professora Maria João Branco «Desde que a preocupação de memorizar de forma escrita actos e acontecimentos ganhou algum valor nas preocupações humanas, toda a realidade tem vindo a ser distorcida pela própria natureza da tarefa empreendida» - concluindo que - «talvez devamos contentar-nos antes com a possibilidade de vislumbrar, por breves instantes, os meandros da construção da memória»3. Talvez a nossa ambição em saber o que se passou efectivamente há nove séculos atrás seja desmedida. Para o futuro, talvez fique apenas a história da história; como os historiadores modernos e contemporâneos lidaram com o problema. História como construção de uma memória do passado, onde a mais honesta e imparcial análise é inexoravelmente misturada com a mais empedernida patranha. Ao longo da história sempre houve falsos. Os motivos que podemos encontrar por detrás da falsificação de diplomas, contratos, testamentos, memórias e outros documentos têm por objectivos a reivindicação de pretensões políticas, religiosas ou financeiras, enganando as pessoas no tempo em que foram feitos. Mas os falsificadores são traídos pelo seu próprio tempo. Os seus anacronismos, que reflectem a época em que foram feitos, acabam por vir ao de cima em épocas posteriores. Creio que o “pacto sucessório” é um falso moderno. Ao procurar imitar os modelos medievais, o seu autor transmite uma visão do passado muito ligada aos padrões históricos vigentes na sua época.
Advirto, porém, que comecei este trabalho com a convicção de que o pacto era um documento histórico verdadeiro. Esperava apenas, e tão só, seleccionar uma das muitas hipóteses do menu de interpretações que ao longo do tempo se foram construindo sobre o pacto. Só numa fase avançada do trabalho é que admiti que se podia tratar de um falso, conduzindo a uma mudança de paradigma. Esse corte epistemológico obrigou-me a saltar da história medieval para a história moderna e de fontes ibéricas para fontes francesas. Um caminho penoso para um amador, que o presente trabalho não pode deixar de reflectir. Direi mesmo, com a jovialidade de Garcia de Resende, «moço da escrevaninha» de D. João II, «sem letras & sem saber || me fuy naquisto metter». Tratar um assunto que ainda ninguém conseguiu resolver definitivamente é um caminho com alguns perigos. Para José Ortega y Gasset «O homem que descobre uma nova verdade científica precisou, anteriormente, despedaçar em átomos tudo o que aprendera, e chega à nova verdade com as mãos sujas de sangue do massacre de mil superficialidades». O problema que se coloca é que nós não estamos a lidar com certezas absolutas e corremos o risco de ficar com as mãos sujas de sangue de inocentes. O receio de erro perseguiu-me a partir do momento em que admiti a possibilidade de se tratar de um falso. Procurei apoiar a minha reconstituição na concordância dos vários dados indirectos entre si e com aquilo que se sabe dos contextos históricos subjacentes e responder às várias objecções que se me depararam ao longo do caminho, o que me permite crer que o que vou apresentar é mais que uma simples e sedutora proposta.
Deste modo, na primeira parte do trabalho, apenas faremos uma breve revisão da literatura que foi dedicada ao pacto, quase toda partindo do pressuposto (não provado) que o documento é um histórico verdadeiro. A ênfase vai ser colocada na análise detalhada do texto. A datação, que para mim se encontra implícita no texto do pacto, obriga-nos a aprofundar o estudo da chegada dos condes à península e a comparar a informação assim obtida com aquela que estaria acessível no século XVII. Prosseguiremos o nosso trabalho com a análise do contexto em que o pacto é pela primeira vez publicado. Finalmente, procedemos à identificação dos motivos que nos levam a considerar tratar-se de obra de um falsário moderno.
Breve revisão da literatura
No quadro I, apresento uma «collatio» dos principais autores que atribuíram uma data ao pacto e que expressa bem a controvérsia que existe no que se refere à sua datação.
A grande amplitude de datas propostas resulta de diferentes tentativas para o associar a determinados eventos que se conhecem relativamente aos reinos de Leão e Castela, no tempo de Afonso VI. As razões apontadas vão desde um acordo amigável até uma possível reconciliação dos condes por supostas desavenças, em respeito pela vontade de Afonso VI ou relativamente a este um acto secreto de traição, associado à morte da Rainha Constança, ou até como reacção à ameaça do filho ilegítimo do rei, Sancho, que punha em risco o futuro dos duques de Borgonha, seja logo pelo seu nascimento ou, mais tarde, pela sua designação efectiva como herdeiro. Como se não bastasse, ainda está em aberta a identificação de Dalmácio, o enviado de Cluny que escreveu o pacto. O único consenso parece ser mesmo na confiança no documento, desde que João Pedro Ribeiro rebateu as objecções que anteriormente se lançaram contra a autenticidade do pacto4. Constata-se assim uma aparente facilidade do pacto se moldar a distintos cenários, nalguns casos mesmo antagónicos, que os autores apontaram na busca do «quid» para a sua realização. Não admira, pois, que Rui de Azevedo lhe tenha apontado uma data crítica muito ampla, delimitando a baliza entre o ano em que aparecem os primeiros indícios da chegada do conde D. Henrique à península e o ano da morte do conde D. Raimundo.
O facto de Rui de Azevedo não ter encontrado a primeira edição de d’Achery foi motivo suficiente para iniciarmos por aí a nossa investigação (videfig. 1)5. No essencial, a primeira edição do Spicilegium apenas permite confirmar que o pacto já continha a referência «ex ms. Abbatia Cluniacensis», fazendo parte de uma Mischellanea de proveniências diversas, sem qualquer cota, e resolver a dúvida quanto ao ano atribuído por d’Achery ao pacto; «circa Ann. Chr. 1093»6. Rui de Azevedo considera a pertinência de factos que na sua opinião tornam inverosímil a aceitação do pacto nos anos 1093-1094. Tais factos são: «o tempo da vinda do conde Henrique para a Península, a data aproximada do seu casamento com D. Teresa e a do início do seu governo da Terra Portugalense» que, segundo ele, «só a partir de 1095 aparecem testemunhos fidedignos para eles»7. O mesmo autor afirma que não colhe o argumento do historiador jesuíta Gonzaga de Azevedo, de que o pacto é anterior a ser D. Henrique nomeado conde de Portugal, por tal título não constar do texto do mesmo, dado a irregularidade do emprego desse título no governo do condado. Sendo um diplomatista muito cuidadoso e competente, Rui de Azevedo conclui que é dentro do período 1095-1107 que o historiador tem de procurar as determinantes do acordo entre os dois condes. Para este autor, o simples nascimento do Infante Sancho poderia ter originado modificações nos primitivos projectos de sucessão, não só na mente de Afonso VI, mas também na dos magnatas e potentados locais, grande número dos quais, muito naturalmente, se mostraria adverso à sujeição a condes estrangeiros. E tal rebate de espírito, assim como as intrigas cortesãs, que o sucesso deveria ter despertado e os documentos hoje nos calam, bastariam, a seu ver, para induzirem Cluny e os condes Raimundo e Henrique a cautelosamente tomarem disposições secretas para uma futura actuação em defesa da política religiosa do primeiro e dos direitos dos segundos.
Por sua vez, Almeida Fernandes, considerando que apesar de o ano de 1096 ser a primeira data documentada digna de fé total, não lhe parece muito a rigor estabelecer ao pacto o termo a quo naquele ano, na medida em que na sua origem poderia estar o simples receio de que Afonso VI viesse a ter um sucessor varão legítimo, concluindo assim que o pacto devia ter-se feito mais cedo8. No mesmo sentido, mais recentemente, Bernard Reilly apontou a data de 1095. Andrés Gambra, não descartando totalmente esta data, deixa contudo uma questão no ar que considero também fundamental: «no se entiende qué ayuda podía esperar Raimundo de un primo suyo, extranjero en León y que, según el proprio Bishko (sic, leia-se Reilly), cuando se efectuó el pacto no era yerno del rey ni éste le había concedido autoridad sobre territorio alguno»9.
No conjunto da bibliografia produzida sobre o tema, destaca-se também o erudito e perspicaz estudo de Charles Julian Bishko10. Muitos investigadores aceitaram provisoriamente o essencial da sua interpretação, bem como a cronologia que sugere para a realização do acordo, que situa em 110511. A argumentação está, contudo, longe de ser considerada definitiva. Sendo verosímil que os casamentos de Raimundo e Henrique possam ter sido sugeridos pelo abade Hugo a Afonso VI, parece-me improvável que o abade Hugo de Cluny fosse conivente num acto de traição relativamente a Afonso VI, com todos os riscos inerentes. Tanto mais por se reconhecer que Afonso VI manteve durante toda a sua vida uma profunda amizade com o abade de Cluny. Aliás, já tinha sido este o entendimento de Gonzaga de Azevedo quando considerou que o pacto teve como propósito de estabelecer um entendimento prévio entre Raimundo e Henrique, logo que este último veio para a península, e com pleno acatamento da vontade de Afonso VI quanto à sucessão de Raimundo na coroa de Leão e Castela. Não reconhece, por isso, ao acto, o carácter de conjura dos dois condes dirigida por Cluny contra os planos do imperador sobre a sucessão a favor do infante Sancho12. Neste contexto, merece a pena referir também que Rui de Azevedo não crê que o abade de Cluny viesse por sua iniciativa intrometer-se nos melindrosos assuntos da sucessão de Estados de Afonso VI, arriscando-se a um desaire e descrédito da sua acção religiosa na Península, quando se achava já definido com nitidez e em via de concretização o novo rumo da política imperial a favor do filho da moura Zaida, através de factos que cita de Pierre David: «a inclusão de Sancho com o título de infante em diplomas régios a partir de 1103; a sua investidura no Senhorio de Toledo; a determinação régia contida na subscrição do infante no diploma de 1107, do Tombo C2 de Santiago, aduzido pelo Prof. Damião Peres: “Sancius puer regis filium regnum electus patri factum”»13.
O recente biógrafo de D. Urraca, Ermelindo Portela, retoma a tese de que o pacto se tenha realizado numa data mais próxima da nomeação de Henrique como conde de Portugal, considerando que nos anos de 1096 ou 1097 se encontra um contexto favorável à sua realização14.
Como se vê, parece impossível a conciliação das diferentes posições. O problema mantém-se em aberto e parece irresolúvel. Se não me parece admissível que o pacto se tenha realizado antes de Henrique ser conde de Portugal, a verdade é que o texto do pacto sugere que Henrique ainda não o era. A inexistência do manuscrito precioso e a dificuldade em o datar convidam-nos a revisitar o documento para testar a hipótese de ser um falso.
O texto
Vou transcrever o texto latino tal como se encontra na 1ª edição do Spicilegium (videfig. 2) acompanhado da respectiva tradução para o português, que sou devedor do meu professor de latim, o Prof. Manuel Ramos15. Para maior facilidade de exposição, o texto vai aparecer dividido em 6 partes, assinaladas por letras, de A a F. Em cada uma das partes produzimos uma análise crítica e chamamos à colação alguns autores que produziram comentários que considero pertinentes, assim como outros que manifestaram uma opinião diferente da minha mas que considero relevante poder confrontar. Não pretendo contudo trazer todas as interpretações que se fizeram sobre o assunto. Perante as opiniões tão desencontradas que foram emitidas no passado, o desafio mesmo, que se nos coloca, é o da leitura do documento, tanto quanto possível, sem ideias preconcebidas, mantendo-nos o mais próximo possível do texto.
A. Título
RAIMVNDI Gallæciæ, & HENRICI Portugalliæ Comitum, HVGNI Abbati Cluniacensi.
Dos condes Raimundo da Galiza e Henrique de Portugal, a Hugo abade de Cluny.
Estas linhas iniciais são a rubrica com que o documento foi lançado, não lhe pertencendo, como nos esclareceu Rui de Azevedo. A informação de que os condes são o da Galiza e de Portugal, teria sido possivelmente deduzida pelo próprio Luc d’Achery, o que é confirmado pelo latim mais culto, em que estão escritos o títulos e as notas (ver abaixo, em F), diverso do resto do texto. Só a informação relativa à condição de abade, por Hugo, se encontra na carta que se segue. Este dado é relevante, pois Gonzaga de Azevedo já tinha considerado que o (hipotético) copista responsável pelo lançamento do documento no (pressuposto) cartulário de Cluny cometeu um anacronismo ao considerar Henrique conde de Portugal16. No mesmo sentido, Bernard Reilly, considera que o pacto não pode ser posterior a 1095, pois também lhe parece que o pacto foi efectuado antes de Henrique ser conde de Portugal17. Na sua opinião, Portugal não seria mencionado no texto porque não era mais que uma parte da Galiza e, portanto, das possessões de Raimundo. Menciona ainda que o contexto é o do papel que Henrique pode ter no controlo de Leão e Castela e não o seu afastamento para um território periférico, como Portugal. Por outro lado, embora no texto que se segue não refira explicitamente que Raimundo é o conde da Galiza, o contexto, como veremos à frente, mostra que já o era. Por sua vez, Paulo Merêa considera que dificilmente se concebe o pacto antes do casamento de Henrique com Teresa18. Na minha opinião, não é possível dirimir este argumento sem questionar a veracidade do próprio documento.
B. Carta
Domino atque Reuerētissimo Cluniacēsi Abbati HVGONI, omníque Beati Petri Congregationi, RAIMVNDVS Comes eiúsque filius, & HENRICVS Comes eius familiaris, cum dilectione salutem in Christo. Sciatis, Carissime Pater, quòd postquàm vestrum vidimus legatum pro Dei omnipotentis atque Beati Petri Apostoli timore vestræque dignitatis reuerentia quod nobis mandastis in manu Domni Dalmatij Geret fecimus.
Ao senhor e reverendíssimo abade de Cluny, Hugo, e a toda a congregação de S. Pedro, o conde Raimundo, o seu filho e o conde Henrique, seu vassalo, desejam saúde e amor em Cristo. Ficai a saber, caríssimo Padre, que, depois de vermos o vosso legado, pelo temor de Deus omnipotente e do bem-aventurado apóstolo Pedro e pela reverência da vossa dignidade, o que nos mandastes fazer nós o fizemos na mão do senhor Dalmácio Geret.
Esta «providencial» carta cumpre um papel importante na compreensão do pacto propriamente dito, que se lhe segue. Ela contém a inscrição do destinatário a quem se dirigem os condes, o abade Hugo de Cluny, com cujo concurso ou conselho parece ter sido feito e ajustado o tratado. Declaram o acatamento, com que receberam Dalmácio, o legado que o abade lhes mandara, e como lhe tinham obedecido e chegado a acordo.
A subscrição ou intitulação do conde Raimundo merece uma atenção especial: «RAIMVNDVS Comes eiúsque filius». O Padre José Barbosa leu «o Conde D. Raymundo, e seu filho», concluindo pela falsidade do pacto, naturalmente por na data atribuída por d’Achery à carta ainda não ter nascido o seu filho Afonso Raimundes19. Também o Padre Henrique Florez duvidou da legitimidade deste pacto, pela mesma razão. Considerando que «vemos allí à Don Ramon mencionando à su hijo», declarou não entender de que filho se tratava, pois que Afonso Raimundes só nasceu em 110520. Pelo contrário, João Pedro Ribeiro considerou que a expressão «filius» era relativa a «Hugoni, omnique beati Petri Congregationi», dando como exemplo a carta de Afonso VI a S. Hugo21. Nela encontramos o rei referindo-se ao abade de Cluny como «gloriosissime pater», «sanctissime pater» e «egregie pater». Se a referência a Hugo como «pater» aparece noutros diplomas o mesmo não nos parece aplicar-se a «filius». Percorremos as Chartes de Cluny e, para além do normal tratamento familiar, apenas encontramos «filius» em situações muito particulares. É o caso da carta do Papa Inocêncio a Guillelmo de Moreto «Verum cum dilectus filius, abbas cluniacensiis…» ou da carta do Papa Clemente IV ao bispo Aniciensi «sua nobis dilectus filius, …»22. Encontramos ainda o seu uso relativamente a uma instituição «Hadericis clericus, Sanctae Aurelianensis aecclesiae filius»23. Charles Bishko, que aceitou a interpretação de João Pedro Ribeiro, considera como mera retórica, a apresentação de Raimundo como «filius» de Cluny24. A ausência de outras situações semelhantes, faz-me duvidar que tenha sido essa a intenção. Parece-me claro que «RAIMVNDVS Comes eiúsque filius» é o mesmo que «RAIMVNDVS Comes et eius filius»; «o conde Raimundo e seu filho». A um falsário moderno interessaria demonstrar a vassalagem de Henrique, quer a Raimundo, quer ao seu filho, legítimo sucessor, sem cuidar que estaria a incorrer num anacronismo relativamente a outras informações constantes no pacto. A reter, portanto, uma pretensão de se sobrevalorizar o papel de Raimundo.
Uma situação semelhante parece encontrar-se em «HENRICVS Comes eius familiaris». A relação «familiaris» diz respeito a Raimundo ou a Hugo? Não me parece ser uma referência à qualidade de Henrique benfeitor de Cluny, como entendeu João Pedro Ribeiro. Seria também uma forma deficiente de expressar uma relação de parentesco, seja com o cunhado Raimundo, seja com o seu tio-avó Hugo, pelo facto de a sua avó Hélia ser irmã do abade de Cluny. Existe contudo uma terceira possibilidade a considerar; de «familiaris» significar servidor, criado, vassalo feudal25.
Uma outra dificuldade que a carta apresenta diz respeito à identificação do enviado de Cluny. Dalmácio é nome de personagem estranha à península. Sabe-se que, em 1093, andou na Espanha, visitando mosteiros dependentes de Cluny, um monge chamado Dalmácio, feito logo depois, em 1094, por influência de Raimundo, bispo de Iria e Santiago de Compostela. Este é o legado de Hugo e, se o pacto foi celebrado por ele, seria antes de ser feito bispo na segunda metade de 1094, pois nele figura como simples Dalmácio26. Mas não temos qualquer confirmação que o bispo, que teria morrido em 1095, seja o Dalmácio referido no pacto27. De facto, houve um segundo Dalmácio. O Prof. José Saraiva forneceu a Rui de Azevedo documentação de um Dalmácio Juret, abrangendo um período entre 1100 até 1112. Entre 1113 e 1120, período em que Dalmácio não figura nas Chartes de Cluny, ele esteve em Espanha várias vezes em serviço da ordem, como nos é atestado por documento de 112128. O problema parecia ter uma nova solução. Dalmácio Juret seria o Dalmácio Geret referido no pacto. Julgando ter identificado o enviado de Cluny, Pierre David considera que a única razão para d’Achery, Aguirre, López Ferrreiro e Gonzaga de Azevedo o terem colocado em 1093, baseado-se na identificação do outro Dalmácio, antes de ser bispo de Compostela, ficava totalmente caduca.
Na minha opinião, mesmo provada a existência de dois Dalmácios, ainda restam dúvidas qual o legado de Cluny referido no pacto. Apesar da informação relativa ao que foi bispo de Compostela ser cronologicamente anterior à do Dalmácio Juret, não podemos inferir, com certeza, qual dos dois foi o delegado de Cluny para a elaboração do pacto29. Diga-se ainda que o pretenso apelido Geret se afasta significativamente de Juret30. O nome, pretensamente escrito pela mão do próprio, não coincide com nenhuma das pequenas variações que encontramos nos documentos de Cluny citados por Rui de Azevedo.
C. O texto do pacto propriamente dito
In nomine Patris & Filij & Spiritus-Sancti. Pignus integræ dilectionis, quo coniuncti sunt in amore RAYMUNDVS Comes, Comésque HENRICVS, & hoc iuramento.
Ego quidem HENRICVS absque vlla diuortij falsitate tibi Comiti RAYMUNDO membrorum tuorum sanitatem, tuæque vitæ integram dilectionem, tuíque carceris inuitam mihi occursionem iuro: Iuro etiam quòd post obitum Regis ILDEPHONSI tibi omni modo contra omnem hominem atque mulierem hanc totam terram Regis ILDEPHONSI defendere fideliter vt Domino singulari atque adquirere præparatus occurram. Iuro etiam si thesaurum Toleti priùs te habuero, duas partes tibi dabo, & tertiam mihi retinebo. Amen.
Et ego Comes RAYMUNDVS tibi Comiti HENRICO tuorum membrorum sanitatem, tuæque vitæ integram dilectionem, tuíque carceris inuitam mihi occursionem iuro. Iuro etiam quôd post mortem Regis ILDEPHONSI me tibi daturum Toletum terrámque totam subiacentem ei, totámque terram, quam obtines modò à me concessam, habeas tali pacto; vt sis inde meus homo, & de me eam habeas Domino; & postquam illas tibi dedero, dimittas mihi omnes terras de Leon, & de Castella; & si aliquis mihi vel tibi obsistere voluerit, & iniuriam nobis fecerit, guerram simul in eum vel vnusquisque per se ineamus, vsquequo terram illam mihi vel tibi pacificè dimittat, & posteà tibi eam præbeam. Iuro etiam si thesaurum Toleti priùs te habuero, tertiam partem tibi dabo, & duas remanentes mihi seruabo.
Em Nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo. É este o juramento de amizade, garantia de inteira confiança, que foi celebrado entre o conde Raimundo e o conde Henrique.
Eu, Henrique, longe de qualquer falsa pretensão de ruptura, a ti, conde Raimundo, juro pela saúde dos membros do teu corpo, pela elevada estima da tua vida e juro que a ocorrência da tua prisão será contra a minha vontade. Juro também que, após o falecimento do rei Afonso, estarei preparado para, de todo o modo e com fidelidade, como único senhor, a ti defender toda esta terra do rei Afonso contra qualquer homem e mulher e a aumentá-la. Juro também que, se vier a possuir o tesouro de Toledo antes de ti, dar-te-ei duas partes e conservarei para mim a terceira. Ámen.
E eu, conde Raimundo, a ti, conde Henrique, juro pela saúde dos membros do teu corpo, pela elevada estima da tua vida e juro que a ocorrência da tua prisão será contra a minha vontade. Juro também que, após a morte do rei Afonso, te hei-de dar Toledo e toda a terra que lhe subjaz; e toda a terra que agora possuis, por mim concedida, tê-la-ás com a condição de seres a partir de agora meu homem e tê-la-ás de mim, o teu senhor; e depois de a ti as ter dado, tu deixar-me-ás todas as terras de Leão e de Castela. E se alguém a mim ou a ti quiser resistir e nos provocar injúria, nós empreenderemos guerra contra ele em conjunto ou individualmente, até que ele pacificamente devolva aquela terra a mim ou a ti e depois eu oferecer-ta-ei. Juro também que, se eu tiver o tesouro de Toledo antes de ti, dar-te-ei a terça parte e guardarei para mim as duas partes remanescentes.
Podemos considerar que a estrutura típica de um pacto ou concórdia medieval era constituída por quatro partes: (1) um protocolo inicial que começava por uma invocação do tipo «In nomine….», (2) o compromisso de um dos outorgantes «Ego…», (3) seguido do outro outorgante «Et ego…» e, finalmente, (4) um escatocolo identificando quando e onde foi feito o acordo e as confirmações, testemunhas e notário, muitas vezes iniciado com um «Facta carta…»31. Esta última parte está totalmente ausente do nosso pacto e, se temos a informação de quem a escreveu, deve-se à carta que o antecede. Com um protocolo inicial reduzido a uma invocação verbal e à intitulação dos condes, seguem-se cláusulas de obrigação mútua, mas não existem cláusulas penais (a sanctio), o que parece excluir a existência prévia de conflito. O Cardeal Saraiva considerou o pacto como «uma aliança recíproca contra futuros acontecimentos que lhes pudessem ser adversos»32. Também para Damião Peres, nenhuma das expressões do pacto abona a tese de tratar-se de um acto conciliatório entre Henrique e Raimundo, mas antes um aliança contra eventual inimigo de Raimundo33.
Analisemos o contexto das cláusulas dispositivas do convénio e vejamos as ilações que delas poderemos tirar. O texto evidencia uma posição contratual superior de Raimundo no plano político. Estamos inteiramente de acordo com Pierre David, quando afirma: «La condition de Raymond et d’Henri n’est pás égale; le premier se considère comme ayant droit à la succession d’Alphonse VI, que ce dernier lui avait promise par serment»34. De facto, no texto, o conde D. Henrique atribui ao conde Raimundo o direito exclusivo de suceder na coroa («Domino singulari»). O Padre José Barbosa considerou o documento falso precisamente com base nesta situação que lhe pareceu absurda: «dizerse que hum príncipe, como D. Henrique, que era taõ illustre como seu cunhado D. Raymundo, e se achava casado com outra filha do mesmo Rey, que era seu criado»35. Na verdade, o seu fundo não é outro senão o reconhecimento do direito de Raimundo, marido da filha legítima de Afonso VI, como sucessor ao trono, com o compromisso de esforço comum para realizar esse direito e, uma vez alcançado, o compromisso de paga da fidelidade de Henrique. Sob a protecção do influente abade, o amor mútuo, a «dilectio», a fidelidade, o juramento, são categorias mentais, de inequívoca ressonância feudal, que enforma o pacto36. Reconhece-se, sem dificuldade, pelo texto, que Raimundo se situa como herdeiro da coroa de Afonso VI e sujeitando Henrique a um papel subalterno, de vir a ser seu vassalo («ut sis inde meus homo, et me eam habeas Domino»). Henrique promete apoiar Raimundo a obter, depois da morte de Afonso VI, «hanc totam terram regis Aldephonsi». Ajudando-o «contra omnem hominem atque mulierem». É outra fórmula de ressonância medieval, como sublinha Ermelindo Portela37. Admitir que se tratam de referências indirectas, como faz Barrilaro Ruas, ao infante Sancho, ou à própria Urraca, parece-me um tanto forçado38. Em contrapartida Raimundo promete-lhe conceder «Toletum terramque totam subjacentem ei», libertando Henrique «omnes terras de Leon et de Castella». Mas, antes disso, Toledo teria de ser conquistada e, independentemente de qual deles o fizesse, do seu tesouro, «duas partes» seriam para Raimundo e a «tertiam» para Henrique.
Interessa-nos, neste momento, fazer uma leitura cuidada desta porção do texto, deixando para mais tarde a análise da veracidade ou verosimilhança da descrição. Um autor húngaro, Georgius Fejér, bibliotecário régio da primeira metade do século XIX, fez, a meu ver, a única leitura possível do contexto relativo à informação da repartição do tesouro contida no pacto, situando-o cronologicamente durante o cerco de Toledo39. A mesma tese foi retomada mais recentemente por Constance Brittain Bouchard40. Na verdade, o documento parece fazer referência a dois momentos distintos, um imediato, com disposições relativas à tomada e saque de Toledo e outro mais distante, relativo à sucessão de Raimundo. A ocasião da celebração do pacto seria o cerco de Toledo, que começou em 1078 e terminou em 1085. O texto dá-nos a informação da presença de duas forças, uma comandada por Henrique e a outra por Raimundo. No momento da celebração do protocolo não se sabe qual deles entrará primeiro em Toledo. O tesouro de Toledo, a repartir de forma desigual pelos dois condes seria o produto do saque.
A não admissibilidade histórica deste contexto, como veremos à frente, levou Pierre David a interpretar que as disposições relativas a Toledo revelavam que o infante Sancho já tinha recebido o governo dessa província, implicando que o documento não podia ser anterior a 1103 e se devia fixar à volta de 110641. A Rui de Azevedo pareceu que as vagas e indiscriminadas disposições de defesa contra todo homem ou mulher, indiciavam precisamente o contrário: «se o infante Sancho fosse já senhor de Toledo à data do acordo, porque não haveria de ser expressamente mencionado nesse documento secreto, uma vez que o infante era o principal estorvo à posse dessas terras pelos condes borgonheses?»42. Além do mais, no quadro da contextualização de Pierre David, parece-me absurda a hipótese de o tesouro do rei Afonso VI se guardar num território de fronteira, como era Toledo.
Notando, como nós já o fizemos acima, que Henrique não figura no documento como conde de Portugal, Bernard Reilly considera que o acordo é anterior a esse facto, quando o território português ainda estava unido ao da Galiza sob a tutela do conde Raimundo de Borgonha. Para este autor, se Henrique possuísse Portugal quando este acordo altamente político foi negociado, seria inacreditável que esse facto não fosse mencionado, até para o excluir das restantes provisões. Quanto a Raimundo, apesar de não aparecer como conde da Galiza, o texto deixa claro que o era. Ele estava em condições de dar a Galiza se tivesse necessidade de o fazer e o objectivo do acordo era poder tomar Leão, Castela e Toledo depois da morte de Afonso VI. A Galiza já ele tinha. De Portugal não há nenhuma menção e não é credível o argumento que este silêncio se deveria já à doação perpétua do território a Henrique. Imaginar um acordo para dividir o reino entre os dois condes deixando de fora uma parte substancial do território é não compreender a dinâmica deste conluio. Portugal não foi nomeado porque não era mais que uma parte da Galiza, e portanto na posse de Raimundo. Por outro lado antecipa-se no pacto o papel de Henrique em assegurar Leão e Castela para Raimundo. A expectativa era que Raimundo pudesse estar longe, na Galiza, e que Henrique estivesse em Leão onde podia tomar a iniciativa e não longe, em Portugal. Estas considerações de Bernard Reilly fragilizam as construções dos diversos autores que colocam o pacto depois de Henrique ser conde de Portugal.
D. Intitulação do aditamento
Fiduciam quam Comes RAYMVNDVS fecit in manum Domini DALMATII Geret.
Garantia que o conde Raimundo fez na mão do senhor Dalmácio Geret.
Trata-se de uma nova menção que também não parece fazer parte do pacto. Essa também foi a interpretação de M. Amédée Paquis que, na sua edição, colocou esta sentença entre parêntesis e excluiu a transcrição da parte que sinalizamos em A43. Gonzaga de Azevedo, considera que «É notável que o texto do pacto ou juramento mútuo finaliza com declaração semelhante a esta inicial» reforçando assim que se segue uma aclaração posterior, que contudo, pertenceria ao pacto44. Para mim, este excesso explicativo parece confirmar a suspeição que mantenho sobre o documento.
E. Cláusula final
Si Ego Comes RAYMUNDVS nom possum tibi Comiti HENRICO dare Toletum vt promisi, dabo tibi Gallæciam, tali pacto vt tu adiuues mihi adquirere totam terram de Leon, & de Castella: & postquam inde Dominus pacificè fuero, dabo tibi Gallæciam, vt postquam eam tibi dedero, dimittas mihi terras de Leon & de Castella. Igitur Deo iubente, sic quoque sancta Dei Ecclesia pijs orationibus interueniat, Amen.
Se eu, conde Raimundo, não puder dar Toledo a ti, conde Henrique, tal como prometi, dar-te-ei a Galiza com a condição de que tu me ajudes a conquistar toda a terra de Leão e de Castela; e só depois de eu aí governar em paz, te darei a Galiza, com a condição de que, depois de ta ter dado, tu me deixares as terras de Leão e de Castela. Com a ordem de Deus e também com a intercessão das pias orações da Santa Igreja de Deus. Ámen.
Trata-se, portanto, de uma pretensa adenda ao protocolo, para contemplar o caso de os condes não poderem conquistar ou manter a posse de Toledo45. Rui de Azevedo considera que o facto de Raimundo admitir a hipótese de não poder dar Toledo ao cunhado, não tem impreterivelmente de se interpretar, como faz o Prof. Pierre David, no sentido de que o obstáculo a tal propósito é ter essa província sido já atribuída ao infante Sancho. As questões que ele coloca são relevantes: «Acaso não existiam na Península, ao tempo do pacto, qualquer que seja realmente a sua data, outros pretendentes mais ameaçadores e poderosos ao domínio dessas terras? Não estavam elas ainda sob a ameaça almorávide?»46. Tal motivo parece a Rui de Azevedo sobejamente justificativo do condicionamento estabelecido na cláusula. Se Raimundo não pudesse dar-lhe Toledo, dar-lhe-ia a Galiza, contando que Henrique o ajudaria a adquirir Leão e Castela, que, neste caso, ficariam por inteiro para Raimundo. Dado que Portugal não é referido no texto, tudo me leva a admitir que Portugal seja aqui subentendido como fazendo parte da região da Galiza47. Só com o desenrolar dos tempos a palavra «Portugal», que principiara por ser simplesmente o nome duma cidade e respectivo territorium, passou a designar o conjunto territorial governado por D. Henrique, base do estado português. Mostrando a história que Henrique não teve Toledo, ficaria demonstrado no pacto que Raimundo lhe deu em feudo Portugal.
F. Notas dos editores do Spicilegium:
(1ª edição)
Circa Ann. Chr. 1093.
Mittūt exēplar fœderis amicitiæ inter se initæ, & pactorum de partienda successione soceri sui Alphonsi, Castellæ ac Legionis Regis.
ex ms. Abbatia Cluniacensis.
Cerca do ano de Cristo de 1093.
Enviam exemplar do acordo de amizade iniciado entre si e dos pactos de partilha de sucessão do seu sogro Afonso, rei de Castela e Leão.
Exemplar manuscrito, na Abadia de Cluny.
(2ª edição)
Anno circ. MXCIV
In exemplari quo usus est Dacherius, nomina horum Comitum et Regis signantur tantum per primas litteras.
Ano cerca de 1094.
No exemplar que utiliza d’Achery, o nome destes condes e rei estão assinados simplesmente pelas iniciais.
Como nos refere Gonzaga de Azevedo, não dispomos dos elementos diplomáticos que, na sua opinião, deve ter tido d’Achery quando provavelmente o transcreveu do cartulário de Cluny, e lhe atribuiu a data de 1093: «Esta circunstância torna a sua opinião, senão mais respeitável do que a de qualquer outro, pelo menos digna de particular atenção»48. O critério de edição foi expresso por d’Achery, de forma muito sussinta: «Numero Epistolae cuique in margine affixo annum, quo vel floruere Auctores, vel maximè quo scripsêre, à mescias indicatum»49. Pelo facto de o documento ter sido publicado avulso, e não inserido num cartulário, considero que a indicação da proveniência de Cluny teria sido deduzida do texto por Luc d’Achery ou indicada por um seu correspondente. Importa referir que sendo o cartulário de Cluny o mais importante da idade média, quase desapareceu no século XVI, quando a abadia foi ameaçada, sendo mesmo saqueada pelos Huguenotes em 1562, o que levou à dispersão e, em parte, destruição dos manuscritos50. Não se pode assim inferir o local de origem próxima do documento publicado por d’Achery.
Merece a pena mencionar a fórmula um pouco diferente que d’Achery utilizou para identificar outro documento com origem de Cluny: «Ex autographis Abbatiae Cluniacensis»51. A não aposição de «autographis» na identificação da origem do pacto parece indicar que d’Achery não teve acesso, neste caso, ao documento original. O novo editor, La Barre, acrescentou uma nota marginal informando que os nomes dos condes e do rei foram desdobrados, o que nos dá a perceber que tinha ainda, senão mesmo o documento que serviu de base à primeira edição, pelo menos um apontamento adicional deixado por Luc d’Achery. Em todo o caso, nenhum autor colocou em causa a identificação de R[aymundus], H[enricus] e I[ldephonsi] (ou A[ldephonsi], na 2ª edição de La Barre)52. A divergência de um ano na data atribuída ao pacto, constante na nota à 2ª edição, não parece ter qualquer significado especial, devendo tratar-se de um mero erro de transcrição.
Ao terminarmos a análise detalhada do texto do pacto, colocam-se duas questões: uma quanto à forma, se o documento for falso, e outra quanto ao conteúdo, se o documento for verdadeiro.
A primeira questão diz respeito há identificação no texto de palavras que não fosse expectável encontrar com frequência num documento medieval. Recorri novamente ao Prof. Manuel Ramos, que me apresentou os seguintes casos:
Filologicamente há um abuso da conjunção copulativa pospositiva «-que» em vez do «et», que aparece, para além dos mais vulgares omníque e eiúsque, em vestraeque, comésque, tuaeque, tuíque, terrámque e totámque;
O ditongo «ae», que é costume estar simplificado em «e» nos textos medievais, aparece em vestraeque, integrae, tuaeque, vitae, praeparatus, praebeam e Gallaeciam.
O primeiro caso é o menos comum num texto medieval e portanto mais digno de se tratar de produção de um erudito moderno com uma cultura clássica. O segundo caso requer alguma prudência na interpretação, pois pode mais facilmente ter havido o restauro do «e» em ditongo «ae» na transcrição paleográfica.
A segunda questão, partindo agora do princípio que estamos perante um documento histórico verdadeiro, passa por questionar a sua validade jurídica. O destacado jurista alemão Augustin Leyser (1683-1752), na sua obra publicada em onze volumes Meditationes ad Pandectas (publicada entre 1717 e 1748) considerou o «nosso» pacto um ilícito, dado que não há herança de pessoa viva («viventis nulla est hereditas»)53. A morte natural é o cerne de todo o direito sucessório, pois só ela determina a abertura da sucessão. Não se compreende a sucessão hereditária sem o óbito do «de cujus», no caso, o rei Afonso VI, pois sabemos que só veio a morrer dois anos depois de um dos signatários do pacto, o conde Raimundo.
A chegada dos condes à península
Um dos problemas principais que o estudo do pacto levanta é o da chegada dos condes à península. As datas propostas por conjectura pelos historiadores para a vinda do conde D. Henrique variaram desde a sua chegada a Espanha na companhia de Constança - segunda mulher de Afonso VI - em 1079, passado pela participação no cerco e conquista de Toledo em 1085, pela vinda com o seu irmão mais velho Eudes em 1087, até à consideração que foi no ano de 1096, por não haver documentação segura anterior. Uma situação semelhante passa-se com o conde Raimundo, embora se admita que chegou primeiro à península. Os dois condes eram já cunhados antes de casarem com as filhas de Afonso VI, pois a irmã de Raimundo, Sibila, casou com o duque Eudes I (1079-1102), irmão de Henrique de Portugal. Henrique e Raimundo não eram, portanto, primos, como diz a historiografia tradicional, mas apenas membros de duas famílias diferentes unidas pelo casamento54. O Prof. José Mattoso, dá conta que Raimundo, encontra-se na península, em todo o caso, antes de 1092, e que não se encontram sinais da presença de D. Henrique na península antes do ano de 109655. Por conjectura B. Reilly considera que Henrique e Raimundo chegaram a Espanha no fim do inverno ou na primavera de 1087, com o irmão mais velho do primeiro, Eudes56. Conjectura por conjectura, poderiam os condes estar dois anos antes, no cerco de Toledo? Merece a pena rever a documentação disponível sobre assunto, ainda que se trate de indícios frágeis, face ao problema que temos em mãos. Para maior clareza da exposição deixamos de lado alguns documentos que exibem data anterior a 1096, mas cujo estudo crítico colocou de forma credível em data posterior, assim como os de data anterior, em que existe consenso sobre as confirmações dos condes serem posteriores.
A primeira referência ao conde D. Henrique pode ser encontrada entre os confirmantes de uma doação à abadia clunicense de Montelio pelo seu irmão Duque Eudes da Borgonha57. A data atribuída pelos editores ao documento é de antes de 1078, pois nele figura a mulher de Eudes, Sibila, que teria morrido neste ano. Segue-se um documento de Molesmes de 1082, onde é chamado de «puer», pelo que ainda não devia ter feito doze anos58. Um documento de 18 de Abril de 1088 em terras associadas ao mosteiro leonês de Eslonza, refere-se a Dom Vidas de Uilla Chexida que diz ter sido «mordomo do conde Henrique»59. Podemos colocar em dúvida a data desta carta ou se se refere a outro conde com o mesmo nome (eventualmente o pai), pois nenhuma outra evidência existe do conde D. Henrique da Borgonha na península antes de 1096.
Pelo seu lado, de Raimundo temos um registo de 1086, em França, onde participou com o seu pai, o conde Guillaume Tête-Hardie na doação de Salins a Cluny60. Um outro documento, peninsular, referente a uma doação privada de 28 de Outubro de 1086, citando Raimundo como conde da Galiza e marido de Urraca, está provavelmente mal datado61. Só depois de 1090 é que Raimundo teria passado os Pirenéus. No Spicilegium encontramos um documento ao qual Luc d’Achery atribuiu a data crítica de cerca de 1090 e que se refere a uma doação de Raimundo de Borgonha de grande parte dos seus bens tendo como contrapartida recebido 7000 soldos para a sua viagem a Espanha (videfig. 3)62. É um dos três documentos a favor da igreja de Besançon, que Pierre-François Chifflet forneceu a Luc d’ Achery para o Spicilegium e que aceitamos com alguma reserva por razões que veremos mais tarde63, e que estão associadas a uma possível sobrevalorização da história de Besançon, e porque os originais, tal como aconteceu com o pacto, se os houve, desapareceram64. Tive a sorte de, no decurso desta investigação, ter sido disponibilizado na Gallica o manuscrito, da mão de Pierre-François, contendo uma «Diplomatis huius peritia» que permaneceu inédita (AELETH, Vistas 220-221, videfig. 4). A principal lição que nos interessa retirar desse manuscrito é que Luc d’Achery, tal como suspeitamos ter acontecido relativamente ao pacto, não consultou o original. Verifica-se ainda que transporta para o corpo do texto impresso um comentário que estava inserto no manuscrito de Pierre Chiflet entre parêntesis, explicitando os irmãos de «Guillelmi comitis» («Scilicit Guillelmi & Raynaldi»). Foi contudo mais prudente ao mencionar «descripsit P. Chifflet ex autographo», em vez de inferir a sua localização.
Pierre David considerou que um documento da Abadia de Cluny com data de 1100 é anterior a 1092, pelo facto de Raimundo figurar como conde de Amous65. Um documento privado citado por Bernard Reilly com data de 30 de Março de 1087, foi considerado por este autor como refeito posteriormente para conter a informação de Raimundo já como conde e genro do rei, mas talvez não seja esse o caso66. Trata-se da escritura do mosteiro de Jubia cuja data já tinha sido colocada em dúvida por Frei Prudêncio de Sandoval67. O bispo de Pamplona considerou a escritura verdadeira mas admitiu que o ano lhe pareceu baixo. O mesmo documento foi analisado por López Ferreiro que admite haver deslocação das últimas três unidades da Era e a sua junção à cota das Calendas, pelo que a verba assim redigida ERA MCXXV. III K. April teria como arquétipo Era MCXXVIII. K. April68. Harmonizando esta data com a do último documento datado de França, o casamento de Urraca - filha do casamento de Afonso VI com Constança - com o conde Raimundo que se tornou conde da Galiza e aparentemente provável herdeiro, deve ter ocorrido no primeiro trimestre de 109069.
Merece ainda a pena referir a confirmação de Afonso VI dos bens da Sé de Palencia, em 31 de Maço de 1090. Nela se diz que o rei seguiu o conselho, entre outros, do seu genro conde Raimundo. Apesar de Bernard Reilly, considerar que pode ter havido uma interpolação, a importância que Raimundo e Urraca teriam no reino, nessa ocasião, como herdeiros únicos do trono ajusta-se perfeitamente à nossa cronologia70.
Até 1096, o território português esteve unido ao da Galiza sob a tutela do conde Raimundo de Borgonha71. Um documento particular de Agosto de 1096 parece testemunhar que o governo efectivo desse território ainda não teria sido transferido para Henrique72. A 1 de Outubro de 1096, um documento privado cita Henrique como conde de Tordesilhas e Raimundo possuindo Cora e Zamora. Dificilmente o escriba ignoraria a entrega do condado de Portugal a Henrique se nesta data já tivesse acontecido73. Mas tal deve ter acontecido pouco depois pois, ainda nesse ano, devem ter atribuído os forais de Guimarães e Constantim de Panoias74. São estes os primeiros documentos onde o condado portucalense surge como entidade política. O conde Henrique teria casado nesse ano com Teresa, tornando-se conde de Portugal75. Segundo a Crónica de Afonso VII76, Portugal foi dado a Henrique “jure hereditario”, corroborando a informação já anteriormente contida num documento de 110077. Tomando estes dois documentos, Paulo Merêa conclui que a concessão da terra portucalense foi hereditária, mas permanecendo, naturalmente, um efectivo e sério vínculo de vassalagem78. Este facto, juntamente com o aparecimento do filho ilegítimo de Afonso VI, Sancho, pode ter constituído uma ameaça séria para Raimundo. A nova situação de Henrique, não parece ajustar-se a uma posição subalterna face a Raimundo, pelo que o pacto não pode ser deste período.
Quanto à questão da dependência ou não de Henrique relativamente a Raimundo, o Prof. José Mattoso aceita as minuciosas argumentações de Rui de Azevedo, Paulo Merêa, Avelino J. da Costa e Torquato de S. Soares, de que não houve dependência inicial de Henrique relativamente a Raimundo79. Certamente por colocarem o pacto numa data mas tardia, e interpretando de forma hábil a dependência, referida no pacto, de Raimundo relativamente a Henrique, que incluiria outras terras que não de Portugal, pois estas seriam, como já vimos, «jure hereditario».
No entanto, a 19 de Janeiro de 1097, Henrique é ainda mencionado apenas como conde em Tordesilhas, designação que já não podemos considerar nesta altura como exclusiva, embora este documento seja um original80. Dado que se trata do segundo documento privado de Sahagun, parece-nos possível que tomasse como modelo o primeiro, não considerando as novas atribuições de Henrique. Finalmente, num documento privado de Coimbra, de 9 de Abril de 1097, aparece a evidência clara da sua jurisdição territorial de Portugal81. A mutação relativamente à época anterior consistiu no facto de esta entidade englobar, pela primeira vez, duas unidades anteriormente existentes e até ali independentes uma da outra: o condado de Portucale e o de Coimbra82. A confirmação do casamento com D. Teresa - filha ilegítima de Afonso VI - aparece num documento privado do mosteiro leonês de Gradefes, datado de 23 de Abril de 109783.
A mudança por parte de Afonso VI da situação política da parte ocidental dos seus estados, tirando a Raimundo o território entre o Minho e o Tejo, que anos antes lhe tinha confiado, e fazendo com ele, em 1097, uma província separada, que entregou a Henrique, seria devido aos sucessos militares de Henrique na fronteira do Tejo, na sequência da pesada derrota que o exército liderado pelo conde Raimundo sofreu, em 1094, perante as hostes muçulmanas, e que comportou a perda de Lisboa84. Essa derrota teria significado um duro golpe para a reputação de Raimundo, uma vez que o próprio rei Afonso VI tinha tomado parte activa na sua reconquista. É possível que a apropriação dessa cidade por parte dos sarracenos tenha determinado a entrada do conde Henrique de Borgonha na história peninsular85. Com essa nomeação, Afonso VI não só fortalece a parte oeste do reino contra a ameaça árabe, mas também confina a progressão do conde Raimundo. A elevação do conde Henrique associado a um casamento ligado à coroa criou um conflito de interesses com o conde Raimundo, que beneficiaria o seu projecto de nomear como seu sucessor o filho ilegítimo Sancho Alfónsez.
Para o estudo do pacto, as conclusões mais relevantes são: não se ter provado a dependência de Henrique relativamente a Raimundo e não encontramos qualquer indício que nos levasse a admitir uma vinda à península dos condes numa data que lhes permitisse participar no cerco de Toledo, no que concordam todos os historiadores contemporâneos.
Higuera e os falsos cronicões
O argumento, externo ao pacto, mais favorável a considerá-lo executado na altura do cerco de Toledo, tínhamo-lo encontrado em Frei António Brandão86. Anunciando como fonte Juliano, arcipreste de Santa Justa, transcreve as suas palavras: «Comites Raymundus, et Henricus consanguinei, postque generi Alfonsi Imperatoris, venerunt ad obsidionem Toleti, illicque interfuerunt». Expressa assim de forma clara que os condes vieram ao cerco de Toledo e tornaram-se mais tarde genros de Afonso VI. De acordo com o mesmo autor, fazem a confirmação outras palavras do mesmo Juliano, quando refere o milagre do breviário moçárabe, a que diz se acharam presentes o rei, o arcebispo de Toledo, os condes Raimundo e Henrique: «Praesente Rege, Archiepiscopo Bernardo, Raymundo, et Henrico Comitibus, qui juverant captionem Toleti»87. Ao contrário do que uma leitura rápida pode levar a pensar, António Brandão refere não uma mas duas fontes: «(1) Juliano e (2) Sandoval, na Chrónica de Afonso VI, fol. 81». O eventual equívoco de leitura poderia resultar do detalhe desigual das duas referências. A primeira só com o autor, enquanto para a segunda fornece o autor, título da obra e ainda a informação da página. Esta última remete-nos meramente para a opinião de Sandoval, baseada ou não também em Juliano, não sabemos, que é citado na mesma obra, mas noutro contexto88. A primeira referência deveria ser de um manuscrito, do qual não nos dá referência, nem indica página. Poderá trata-se de mais uma efabulação a juntar a outras que circulavam nos inícios do século XVII e que vieram a comprovar-se que tiveram origem no Padre Jerónimo Román de la Higuera y Lupián (1538-1611). Vivia-se o fascínio empolgante e contagioso dos falsos cronicões, recebidos durante o domínio espanhol como literatura exemplar. Os seus cronicões alcançaram grande popularidade, tendo sido utilizados como fonte, como vimos, por Prudêncio de Sandoval, apesar do juízo contrário do bispo de Segóbia Juan Bautista Pérez, que era uma autoridade na matéria, e que se dirigiu ao jesuíta dizendo-lhe que os seus escritos eram ficção, deixando estes então de aparecer. Mas a morte do citado bispo proporcionou que se seguissem publicações durante alguns anos no século XVII. Para a posteridade, demonstrou igualmente a sua falsidade o bibliógrafo Nicolás Antonio em Censura de histórias fabulosas, assim como o eminente historiador padre Enrique Florez na sua España Sagrada. Nos séculos XIX e XX, dois académicos das Reales Academias de la Historia y de la Lengua Española, José Godoy Alcántara, na sua obra História Crítica de los Falsos Cronicones, e Julio Caro Baroja en Las falsificaciones de la Historia, estudaram os cronicões não deixando dúvida quanto à sua falsidade89.
O Padre Jerónimo Higuera reproduziu muitas das notícias das antigas crónicas enriquecendo-as com novos pormenores, fabricando documentos, que designou de «fragmentos», que atribuiu a cronistas e historiadores, alguns dos quais até aí desconhecidos, como é o caso de Julian Perez. Existe notícia de que o Padre Higuera compôs uma segunda versão das suas crónicas falsas, depois que a primeira, comunicada em manuscrito, não teve o sucesso esperado90. É mesmo de supor que houvesse várias versões, de várias mãos, possivelmente de discípulos de Higuera91. Uma delas, publicada em 1628, cobre a conquista de Toledo e o milagre do missal Moçárabe mas não encontramos nela as citações de Brandão92. Os fragmentos citados por António Brandão, podiam ser de uma versão diferente, entretanto perdida93. Os manuscritos de Higuera entraram precocemente em Portugal através de cartas que enviou ao nosso antiquário Gaspar Alvares de Lousada94. No prólogo do tomo III da Monarquia Lusitana, António Brandão refere que deve a Lousada «muita notícia nas Antiguidades deste Reyno, & de toda Espanha». Penso, desta forma, ter identificado a possível fonte usada por Brandão.
Pela minha parte, a partir do momento que coloquei a hipótese de o pacto se tratar de um falso, o estudo prosseguiu pela sua análise dentro dos esquemas mentais de um falsário moderno. Neste contexto, o pacto parece enquadrar-se perfeitamente na cronologia conhecida no século XVII para a chegada dos condes Raimundo e Henrique à península Ibérica, colocando-a numa data demasiado precoce, hoje não defensável. De Raimundo existe um quadro do século XVII, com uma inscrição latina dando-o como fundador da capela de São Marcos, em Salamanca, no ano de 107695. Era também dado como certo que Henrique viveu 67 anos e morreu em 1112, logo que teria nascido na Borgonha, em 1045 (videfig. 5). Chegaria a Espanha em 1072, estando já casado com Teresa no ano seguinte, de quem teria o filho Afonso Henriques em 1094 (sic). A descrição de Henrique a comandar um exército de três mil lanças por ordem de Afonso VI, quando hipoteticamente el Cid desafiou os Condes de Carrion, criam um cenário de fundo que tornam plausível que o pacto tenha sido forjado, concebendo a presença dos dois condes comandando exércitos no cerco de Toledo96.
Luc d’Achery: o autor e a obra
O deficiente conhecimento dos personagens e dos factos que me parece poder encontrar no texto do pacto levam-me a crer poder tratar-se de produção de um falsário da época moderna. O Prof. José Mattoso, com quem conversei sobre este assunto, considerou que seria importante tentar averiguar como é que Luc d'Achery descobriu o documento. Sendo um conselho do mais elementar bom senso, constato que pouca ou mesmo nenhuma atenção foi dada a esta questão pelos numerosos autores que estudaram o pacto.
A presença do pacto no Spicilegium, por um lado, e a sua ausência na documentação peninsular, pelo outro, dependem de causas humanas que não podem escapar de forma alguma à análise. Sabemos que os documentos, verdadeiros ou falsos, são um produto da sociedade que os fabricou segundo as relações de forças que aí detinham o poder. O pacto aparece-nos como o feliz e completo monumento de um acontecimento que desconhecíamos antes. A construção de uma narrativa, pela junção de três documentos num (a carta, o texto do pacto e uma adenda ao texto), enquadrados por um título e subtítulo, são algumas das características que levam à sua suspeição, pois não se encontram, comulativamente, em documentos originais. É necessário desmontar esta construção, analisando a conjuntura em que surge o pacto e a sua inserção no conjunto de documentos de que faz parte, os treze volumes do Spicilegium de Luc d’Achery97.
Luc d’Achery nasceu em 1609. Foi presbítero e monge beneditino da congregação de São Mauro. Dedicou 45 anos de trabalho à biblioteca de Saint-Germain-des-Prés e especializou-se no estudo e publicação de manuscritos medievais. Apesar da doença que o acompanhou quase toda a vida, d’Achery exerceu um papel muito importante como organizador e editor. Das suas edições retemos: a publicação a título póstumo da obra preparada por Hugues Ménard (1645), as obras completas de Lanfranco (1648), as de Guibert de Nogent (1651), a Régula Solitariorum de Grimlaic (1653) e os treze volumes do Spicilegium (1655-1677). Coligiu ainda o material histórico para as Acta Ordinis S. Benedicti que viria a ser publicada pelo seu mais famoso assistente, Jean Mabillon. Morreu em 1685 com 76 anos.
De todas as suas publicações, a mais conhecida e a mais útil para o estudo da idade média é, sem dúvida, o Spicilegium. Mais que uma edição de textos medievais, cada um dos seus treze volumes contem um prefácio, assim como notas que exibem grande erudição. É contudo uma obra mais basta que metódica98.
A partir do tomo II, e cobrindo sempre um largo período cronológico, do século IV ou do século X ao século XIII ou ao século XV, segundo os volumes, agrupando entre cinquenta a cem diplomas, são editados cerca de oitocentos documentos. Eles são devidos, em grande parte, à generosidade de Antoine Vion d’Hérouval, mas publica igualmente textos provenientes de colecções particulares (P. Louvet, R. de Gyvès, o Padre Chifflet, E. Bigot, N. Camuzat e E. Baluze) ou de fundos monásticos (Cluny, Corbie, Marmoutiers, Saint-Florent de Saumur, Saint-Germain-des-Prés, Citeaux, Saint-Aubin d’Angers, Saint-André de Vienne, Saint-André d’Avignon, Saint-Julien de Brioude, Saint-Vicent de Laon e Montmajour). Conta com numerosos amigos em França e no estrangeiro de mosteiros beneditinos e dos padres jesuítas, como se comprova na sua correspondência conservada na Biblioteca Nacional de Paris, que fornece interessantes informações sobre o trabalho incansável destes eruditos, ajuda a entender melhor suas preocupações intelectuais e a melhor compreender as condições materiais do seu trabalho99.
Considera-se que um dos correspondentes acima referido, o Padre Pierre-François Chifflet (1592-1682), foi menos crítico que editores posteriores, copiando documentos que hoje se consideram falsos ou falsificados100. De acordo com as vinte e oito cartas escritas de Dijon, entre 1668 e 1675, pelo Padre Chifflet a d’Achery, sabemos que forneceu várias peças de importância variável para diferentes volumes do Spicilegium, mas, ao que parece, só a partir do tomo IX. No entanto, a colaboração pode ter sido anterior, pois Pierre-François Chifflet refere uma visita a Saint-Germain-des-Prés em 1646. Dele sabemos que foi irmão de Jean-Jacques Chifflet (1588-1673), nascido em Besançon, e que foi médico do rei de Espanha Filipe IV, mas também historiador (videfig. 6). As principais obras históricas de Jean-Jacques foram: Vesuntio, civitas imperialis… Monumentis illustrata, in- 4º, Lyon, 1650; Vindiciae Hispanicae, in-folio, Anvers, 1650; Le faux childebrand, 1659, in-4º101. Na sua obra Vindiciae Hispanicae, o franco-contês procurou demonstrar que o rei de Espanha é o único herdeiro legítimo e directo do imperador Carlos Magno e que, para tal herança, são inexistentes os direitos do rei de França, apesar dos esforços dos tratadistas franceses contemporâneos102. Jean-Jacques Chifflet foi ainda pioneiro com a publicação de uma colecção de tratados Franco-Hispanos103. Estas obras levaram o historiador da diplomacia espanhola Miguel-Ângel Ochoa Brun a considerar «Jean-Jacques Chifflet, uno de los mayores propulsores teóricos de la política y el poderio españoles en Europa»104. Possuidor de grande erudição, Jean-Jacques escreveu as suas obras num latim elegante, sendo um investigador diligente mas ao mesmo tempo considerado faccioso no seu julgamento e pouco claro nos métodos105. Deixou o seu espólio, ainda em vida, ao seu irmão Pierre-François106. É possível que os três diplomas da igreja de Besançon que D’Achery recebeu de Pierre-François fizessem parte desse espólio, pois o irmão dedicou muito do seu trabalho à história de Besançon. Merece a pena referir que Besançon tem ainda hoje a particularidade de coincidir aproximadamente com o condado de Borgonha, que se dissociou do ducado da Borgonha e se individualizou no séc. XI107. Durante a maior parte do século XVII, Besançon esteve debaixo da soberania espanhola. Deste período, encontram-se na Biblioteca de Besançon vários manuscritos relativos a Portugal, do abade Joseph Arnolfini, cujo sentido geral é o de «que no conocia outro rey de Portugal que a Felipe 4º»108. Arnolfini, natural de Sevilha, foi um monge cisterciense que, apresentando-se pomposamente como “Dom Joseph de Illescas”109, desempenhou actividades diplomáticas para o rei Filipe IV, que premiou o seu desempenho nomeando-o para a abadia da Caridade, no ducado de Borgonha110. Identificamos assim um espaço geográfico-temporal favorável à criação de um falso, para além do know-how específico para o fazer.
São ainda conhecidos os falsos póstumos do erudito oratoriano Jérôme Vignier, também publicados por d’Achery111. Sendo póstumos, não me parece que ele seja o falsário que procuramos, dado que Vignier faleceu em 1661 e o pacto foi publicado no Spicilegium dois anos antes de ele morrer. Em todo o caso, foi-nos possível verificar a existência de contactos entre Vignier e Jean-Jacques Chifflet, pois aparecem como co-autores da obra «Stemma Austriacum annis abhinc millenis»112, o que nos leva a admitir que todos os falsos publicados por d’Achery possam ter uma origem comum.
A ser um falso, vemos que o pacto não será um caso isolado. Luc d’Achery usou documentos de muitas proveniências, de cópias de intermediários, muitos dos quais nunca tinham sido publicados. É também significativo o número de originais perdidos. O Spicilegium viria a ser considerado muito incompleto e incorrecto por inúmeros autores. Estes problemas não teriam passado despercebidos ao seu assistente, Jean Mabillon, que em 1681 publica o seu De re diplomática, fundando, definitivamente, a crítica do documento, essencial na procura da autenticidade, perseguindo os falsos e, por consequência, atribuindo uma importância fundamental à datação.
Uma nova hipótese explicativa
Para se fazer uma edição crítica de um documento é necessário o conhecimento da época em que foi produzido. Ao tomarem o pacto como verdadeiro, os autores que o trataram concentraram a sua atenção na história dos fins do século XI e princípios do século XII. Como vimos, o pacto, que parecia à partida poder adaptar-se a qualquer contexto, ao longo de uma dúzia de anos, acabou por se verificar que não lhe podemos atribuir nenhuma data precisa. Parece ser feito antes de Henrique ser conde de Portugal, situação esta que não nos parece admissível para a sua realização. Indicia problemas de protocolo ou anacronismos nas subscrições. Não nos é possível identificar com segurança o Dalmácio convocado para o pacto. Implica a improvável conivência do Abade Hugo num acto de traição a Afonso VI. Situa a sua realização durante o cerco de Toledo, o que nos levou a associá-lo aos falsos cronicões de Higuera. Tudo para criar um quadro de fundo para poder transmitir a mensagem de vassalagem de Henrique relativamente a Raimundo.
Se tomarmos em consideração que Luc d’Achery publicou o pacto em plena guerra da restauração (1640-1668) e que o manuscrito nunca apareceu, julgo que temos aqui uma boa base para a sua suspeição. Após a restauração da independência nacional, em 1640, com o afastamento dos representantes da administração filipina e a tomada do poder por D. João IV, as iniciativas dos dois estados foram sobretudo diplomáticas. Estando a Espanha envolvida na Guerra dos Trinta Anos com a França, que acabou em 1648, contra Portugal só se realizaram numa primeira fase campanhas esporádicas e inconsequentes, que a resistência portuguesa enfrentou sem grandes dificuldades. As pressões exercidas pelos espanhóis foram sobretudo de natureza diplomática, que levaram à ruptura das relações com a Santa Sé, tendo sido até tentada a excomunhão do soberano português113.
Ainda no ano de 1640, pouco depois de sabida na corte castelhana a notícia da aclamação de D. João IV, imprimia-se um folheto redigido por D. José Pellizer, cronista-mor, que era dedicado à «Sucession de los Reynos de Portugal i el Algarve, feudos antiguos de la corona de Castilla». Com ele, pretendia o seu autor demonstrar que os mesmos reinos, dados, em dote, a D. Teresa e a D. Henrique de Borgonha, haviam sido tiranizados, a primeira vez, por D. João, Mestre de Avis e, ultimamente, sublevados pelos cúmplices no levantamento de D. João de Bragança, que usurpara o título de rei e quebrara, assim, a fé devida, a homenagem e juramento prestado ao seu legítimo soberano D. Filipe IV. Contrapôs-se o «Manifesto do Reyno de Portugal», em 1641, de António Pais Viegas, que originou a reacção de D. João Caramuel, no mesmo ano, na sua «Resposta al Manifiesto del Reino de Portugal». Durante duas décadas prosseguiu a polémica em torno da legitimidade de D. João IV e dos direitos de Portugal, quase inteiramente no campo diplomático114. Foi perto do final desse período, em 1659, que foi publicado o pacto no Spicilegium. Precisamente no mesmo ano em que foi impressa uma obra dirigida ao Papa contra o provimento dos bispados de Portugal, da autoria do jurista de Salamanca, Francisco Ramos del Manzano115. A falta de aprovação papal seria um argumento fundamental para provar a ilegitimidade do movimento restauracionista português116. Por outro lado, ao defender a pretensão do monarca católico de Espanha continuar a nomear os bispados vacantes, depois da rebelião do duque de Bragança, legitimava os seus direitos sobre a coroa de Portugal117. Os espanhóis procuravam demonstrar que Filipe IV tinha o título recuperandae authoritatis, que quer dizer de recuperação de autoridade do reino que Afonso VI tinha dado ao conde D. Henrique, com obrigação de vassalagem, e que Afonso Henriques e todos os reis seus sucessores, ao eximirem-se dessa vassalagem aos reis de Leão, seriam intrusos118.
O pacto, confirmando de forma inequívoca a sujeição do conde D. Henrique ao conde D. Raimundo, é um documento que poderia ser utilizado como arma na guerrilha diplomática entre Portugal e Espanha, então no seu auge. Encontramos evidência de uma relação entre Jean-Jacques Chifflet e Ramos Manzano, que o cita numa das suas obras119. No mesmo espaço geográfico e na mesma época, Joseph Arnolfini (de Illescas) dedica a sua atenção aos assuntos portugueses. Existe evidência de contactos entre Arnolfini e Jules Chifflet (1614-1676), filho de Jean-Jacques, cónego de Besançon e de Tournai e autor de obras de teologia e de história120. Nos papéis recolhidos por Jules Chifflet encontramos um que trata do conde D. Henrique e outro relativo à sucessão do reino de Portugal121. Vimos também que Pierre-François Chifflet, irmão de Jean-Jacques, foi correspondente de Luc d’Achery. Creio que identifiquei assim alguns dos elos de uma cadeia de ligação entre a disputa em torno do trono de Portugal e a publicação do pacto, como instrumento dessa mesma disputa, no Spicilegium, ainda que não tenhamos identificado o presumível falsário122.
Nos anos seguintes à publicação do pacto, realizaram-se uma série de reencontros militares importantes e de uma maneira geral penderam a favor dos portugueses. A guerra terminou apenas em 1668, com a assinatura de um tratado de paz, em que a Espanha reconheceu definitivamente a independência de Portugal.
Porém, a polémica da legitimação não terminou. Por ordem da corte portuguesa, a resposta a Ramos de Manzano, dada por Manuel Rodrigues Leitão, surgiria só em 1715. A defesa da legitimidade portuguesa remontaria à fundação da nacionalidade, passando pela consideração de que D. Teresa, mulher do conde D. Henrique, foi possuidora deste reino, não só por dote, mas também por herança e património123.
Neste contexto, não é de estranhar a controvérsia que o pacto gerou entre os historiadores espanhóis e portugueses. Aos espanhóis interessou a divulgação do pacto na península, o que foi feito, trinta e cinco anos depois da sua primeira publicação, pelo cardeal Aguirre. Alguns anos mais tarde, o genealogista espanhol, D. Luís de Salazar y Castro (1658-1734) procurou demonstrar que o pacto «sin embargo, sirve para conocer, que [D. Raimundo e D. Henrique] eram amigos, y que D. Ramon era superior»124. A resposta dos historiadores portugueses foi, num primeiro momento, dar o pacto como falso e, posteriormente, relativizar as suas presumíveis implicações para a legitimação do estado português.
Existe um aspecto que importa ainda ressaltar. Para além de não existir o original manuscrito, também não se identificaram testemunhos manuscritos. Trata-se assim de um único testemunho impresso, com diferentes cópias posteriores. Quando João Pedro Ribeiro se pronunciou sobre o pacto, parecia ainda crente que o cardeal Aguirre o tinha extraído de um cartório e assegurava a sua veracidade com o facto de d’Achery também o ter publicado125. Na verdade, comparando as edições destes dois autores, conclui-se facilmente que Aguirre, embora não mencionando a fonte que utilizou, copiou o texto do pacto de d’Achery126.
Desde que João Pedro Ribeiro aceitou o pacto, há quase 200 anos, nenhum autor reavaliou essa assunção. Desde então, sucessivas camadas de erudição prejudicaram a crítica do texto. Analisada, uma a uma, as diferentes hipóteses interpretativas, não me foi possível tomar partido por nenhuma. Com reverência por todos os autores citados, o conjunto das suas propostas conduziu-me a uma solução historicamente impossível para o casting nomeado no pacto. É no contexto da história da Restauração, no espaço geográfico de Besançon e nas suas ligações ao centro de erudição Maurista que encontro uma possível solução. Identificamos uma conjuntura favorável onde podemos pressupor que havia um conhecimento dos personagens e dos factos que permitiriam que alguém inventasse o texto do pacto e lhe atribuísse uma origem cluniacense, que o tornaria credível face ao conhecimento da influência que o abade Hugo exerceu sobre a península Ibérica. Eu admito que o pacto é um falso erudito do séc. XVII, mas continuo a pensar que não dei a resposta definitiva à questão, pois não consegui identificar de forma inequívoca o falsário. Contactei a Mme Jeannine Fohlen sobre este assunto, mas não lhe foi possível dar-me nenhuma informação adicional pois já não tinha qualquer documentação sobre a sua tese defendida na Ecole des Chartes no já remoto ano de 1952. Referiu-me ainda que apenas estudou os textos mais importantes publicados no Spicilegium, deixando de parte textos isolados, como é o caso do pacto. É assim admissível que, na extensa correspondência de Luc d’Achery, de um milhar de cartas, ou na considerável colecção de manuscritos de Étienne Baluze, ambas guardadas na Biblioteca Nacional de França, possa existir alguma informação relevante sobre a origem deste documento, o que possibilitaria a apresentação de uma conclusão mais segura127. Não posso, em todo o caso, deixar de alertar para os problemas que da consideração deste documento resultam no estudo do condado portucalense, caso se venha a confirmar a nossa suspeição.
Termino com uma palavra de agradecimento ao Senhor Professor José Mattoso, pela sua bondade, amizade e pelos seus ensinamentos. Com ele aprendi que a pesquisa histórica é exigente e tem muitos meandros. Como se vê, se o designado «pacto sucessório» desempenhou um papel muito limitado no contexto da história da restauração da independência, o mesmo tem tido efeitos nefastos no que se refere ao estudo do governo do conde D. Henrique. Deixo aqui o conselho que o Professor José Mattoso lembrou do seu mestre, o Professor Leopold Genicot, que afirmava «Um documento que não se consegue datar nem localizar não serve para nada».