Para o medievalista, em especial se português, não há fontes documentais secundárias. Todos os actos diplomáticos, públicos ou privados, cartas solenes ou notícias avulsas, conservados integral ou fragmentariamente, disponibilizados em forma avulsa ou em livro de registo ou cartulário, autênticos e mesmo falsos, são portadores de uma informação invariavelmente relevante1.
A produção documental no Portugal medieval multiplicou-se permanentemente. O estabelecimento de modo organizado de oficinas ou cartórios notariais, por iniciativa régia, posto que não exclusiva, porquanto devemos valorizar as redes de produção documental suportadas pelos poderes e quadros redactoriais eclesiásticos e nobiliárquicos, sobretudo a partir de começos de Duzentos, veio potenciar o aumento da escala de produção gráfica em todo o território2.
E porque a conservação do documento escrito, em pergaminho ou em papel, preocupava o português medieval, assiste-se consequentemente à afirmação de arquivos, modestos ou de maior expressão, tanto dentro como fora das cidades. Valorizaram-se, primeiramente, mosteiros e catedrais como lugares de guarda de documentação. Tanto o rei como a nobreza e, por maioria de razão, o clero, sobretudo o secular, e até alguns municípios, encontraram nesses locais sítios e garantias de segurança para neles depositarem os documentos que acautelavam os seus direitos, heranças, privilégios, vontades testamentárias e interesses negociais3.
Os reis de Portugal, contudo, nunca deixaram de ter arquivo palatino. A transferência de uma parte da documentação para a custódia de arquivos externos, geralmente diplomas de maior importância como sucedia com testamentos reais ou tratados e acordos internacionais ou mesmo de alcance meramente interno, nos originais simples ou duplicados senão em cópias autênticas, como aconteceu com os Mosteiros de Santa Cruz de Coimbra e de Alcobaça4, não anulava a lógica e a racionalidade da existência do arquivo real em que documentos da chancelaria, enquanto instância produtora dos actos de governação pública, assim como das escrivaninhas particulares, precavendo o exercício do deve e haver doméstico da cúria, se multiplicavam, interseccionavam tantas vezes e acumulavam5.
A administração económica foi desde cedo, na longa cronologia da humanidade, uma das esferas civilizacionais que mais impulsionou as obrigações da escrita e da sua conservação6. Os registos fiscais e administrativos, na esfera das monarquias ocidentais, no domínio eclesiástico como no de senhorios particulares ou mesmo dos institutos municipais, sem esquecer os assentos privados de prestamistas e mercadores, cresceram e multiplicaram-se nos séculos medievos7.
Em Portugal, o exercício dessa contabilidade verifica-se muito bem ao nível da fiscalidade eclesiástica8 e das suas confluências na área dos interesses pertinentes ao padroado régio9, como se estendeu ao controle dos serviços burocráticos, caso do tabelionado e das respectivas receitas geradas por cada cartório notarial logo nos finais de Duzentos10. É um fenómeno que se atesta, como se sabe, desde o reinado de D. Afonso II, vindo a acentuar-se particular e reiteradamente no século XIV11.
Não é, assim sendo, uma novidade que nos mosteiros medievais se encontrem, por norma, exemplos de boa gestão económica tanto ao nível do património base dessas instituições, dos seus domínios e coutos, bens e propriedades, directa ou indirectamente explorados e com proventos expressos em foros e rendas, como ainda de outros proventos avulsos, esmolas ou benefícios caritativos, expressos em géneros ou em dinheiro, provenientes de fiéis e benfeitores piedosos que lhes solicitavam ofícios e serviços litúrgicos de significado sobretudo espiritual12.
O deve e haver das contabilidades monásticas detecta-se bem cedo no Ocidente13. Georges Duby pôde estudar, de modo assaz preciso, os gastos e rendas da Abadia de Cluny entre 1080 e 115514. Outros exercícios foram positivamente logrados para a situação portuguesa como se demonstra à saciedade nos estudos dedicados por Iria Gonçalves, ao Mosteiro de Alcobaça15, no de Maria Helena Coelho em relação à Granja de Alvorge, do Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra16 ou no de Luís Carlos Amaral sobre o Mosteiro de São Salvador de Grijó17. E os exemplos poderiam alargar-se ao universo municipal ou mesmo do erário público régio nacional18 ou fora do país mas debaixo de uma gestão portuguesa19.
2 - A fundação do Mosteiro de S. Jorge, situado um pouco a nascente da cidade de Coimbra, segundo as crónicas modernas dos cónegos regrantes de Santo Agostinho, dever-se-ia ao Conde D. Sesnando, o celebrado governador moçárabe de Coimbra. Caçava o Conde veados e porcos monteses, pelas imediações da mata de Mirleus, quando o cavalo, desenfreado, corria para um perigoso precipício. E reza, ainda, essa lenda encantada cujos tópicos narrativos se reencontrarão coincidentemente na mais popular lenda de D. Fuas Roupinho, relativa à praia estremenha da Nazaré, que o Conde, na iminência do desastre, invocou S. Jorge e logo o animal estancou milagrosamente, as patas no ar, permitindo ao cavaleiro apear-se e salvar-se.
Em memória do maravilhoso acontecimento, D. Sesnando teria mandado levantar nesse local, em 1080, uma ermida dedicada a S. Jorge, fazendo-a mudar, quatro anos depois, para outro lugar, justamente aquele onde o mosteiro, segundo os cronistas crúzios, viria a ser edificado. O padroado desta igreja terá transitado de D. Sesnando para D. Elvira Sesnandes, sua filha e casada com Martinho Moniz, os quais, por sua vez, o terão transmitido a um seu sobrinho, Salvador Guimariz, diácono20.
Data de Julho de 1146, na verdade, o compromisso feito por “Saluatorio diacono Guimariz” com os “hominibus quibuscumque religiosis mecum conversari uolentibus siue successoribus eorum de illa heremita ecclesie sancti Georgii martyris que est constructa in finibus Colimbrie supra ripam fluminis Mondeci cum turri que dicitur de Canardo (?).” Comprometia-se Salvador Guimariz, diante de D. João, bispo “Dei gratia electus”, e subscritor do acto, a partilhar com os seus companheiros o património que para esta fundação se estabelecia, a fim de que tudo fosse partilhado em comum: “sed sicut nobis ibi omnia in Christo communia”. Afirmava-se, também, o fito espiritual da fundação: “Et hoc facio pro salute animee mee et illorum qui mecum in eo loco caste et pie uiuendo regulariter Deo seruire studuerint.”21
O envolvimento do bispo eleito de Coimbra, D. João Anaia, deixa transparecer a dependência da fundação deste cenóbio do poder episcopal coimbrão. Que a fundação correspondia a uma canónica regrante colhe-se, de imediato, da doação de bens em Vila Franca (Coimbra), lavrada por Flamula Garsia, em Agosto desse mesmo ano de 1146, aos “canonicis sancti Georgii”, mencionando-se os nomes dos presbíteros João, Domingos, Lourenço, João (II) e Salvador e outros “uestris omnibus sociis”22.
A este mosteiro ligaram-se, por especial devoção, os monarcas da dinastia afonsina. D. Sancho I e D. Dulce, sua mulher, entregaram, em 1191, a dízima da herdade régia de Façalamim aos cónegos, sendo prior-mor D. Pedro Vicente23, em reconhecimento da intervenção do santo mártir na protecção ao infante D. Afonso, futuro rei, quando este se mostrava, pouco depois do nascimento, ainda “muito enfermozinho e tolhido”24.
O apoio do rei D. Sancho I ao Mosteiro de S. Jorge foi reiterado, em 1194, a propósito da cedência que o prior-mor, D. Gonçalo Martins, e demais cónegos fizeram, “in nostra presentia”, em benefício do chanceler régio D. Julião, de certo caneiro de água necessário aos moinhos que o chanceler tinha em propriedade contígua à herdade dos religiosos agostinhos. Subscreveram o acto o prior-mor, o prior claustral, o prepósito, os dois chantres e treze outros cónegos, num total de 18 cónegos professos25. Também no ano seguinte, a família real, com o Infante D. Afonso à cabeça, em conjunto com D. Gonçalo Martins, prior-mor do Mosteiro de S. Jorge, todo o seu convento e, ainda, com Fr. João, da Albergaria de Poiares, promulgam carta de foral, segundo o costume de Évora, aos povoadores de S. Vicente da Beira26. No seu segundo testamento, lavrado em 1210, D. Sancho I deixa a S. Jorge 500 morabitinos27.
Em 1216, D. Afonso II toma debaixo da sua real protecção este cenóbio para, pouco depois, em 1221, o papa Honório III conceder-lhe o privilégio da isenção diocesana28. Também D. Afonso III, num acto de fé que recorda o sucedido com o seu pai, se voltou para esta canónica de Coimbra, em 1259, suplicando a intercessão de S. Jorge para que a sua filha primogénita, a Infanta D. Branca - nascida, recorde-se, do seu consórcio com D. Beatriz, e em tempo de interdito sobre o reino devido à situação de bigamia do monarca luso -, pela misericórdia divina, usufruísse de uma “vitam longuam” e para que Deus protegesse e defendesse “eam per tempora longuiora et quod dominus Ihesus Christus liberet me a potestate diaboli.” Para mais afirmar e vincular o seu voto, o rei doou ao prior e aos cónegos deste mosteiro, a 20 de Março do dito ano, estando em Santarém, o padroado da igreja de Santa Maria de Portalegre29.
Pelo que possuía em Santarém estava o mosteiro obrigado a dar ao monarca lenha, um dia por semana, sempre que a corte régia jornadeasse naquela vila ribatejana. Obrigação de que prescindiu o Bolonhês, “verus patronus” de S. Jorge, por carta de 10 de Janeiro de 1269, promulgada justamente em Coimbra30.
3 - No século XIII, S. Jorge de Coimbra usufruía de um património rentável e apreciável. Por doação, compra ou escambo, este instituto regular estendeu o seu património, para além do que tinha em Coimbra, a Castelo Viegas31, Arregaça32, Taveiro33, num aro geográfico ainda muito próximo de Coimbra, e, depois, num segundo círculo já mais distanciado, a terras como Lorvão, Penela34, Tentúgal, Montemor-o-Velho, Lavos35, Ameal e Façalamim. S. Jorge tinha, finalmente, interesses senhoriais apreciáveis em pontos bem mais longínquos como eram Arganil, Celorico [da Beira], Paços, Covilhã, S. Vicente da Beira [“de ultra serram”], Rio de Moinhos, junto a esta vila, Santarém e Portalegre36.
Num pequeno caderno de registos documentais, do primeiro terço do século XIII, que indicia um balbuciante cartulário deste mosteiro, foram lançadas cópias de diplomas, datados de entre 1167 e 1211, relativos às propriedades que o cenóbio detinha em Toxe e Alvorge (Santarém). Nele foi trasladado, ainda, o contrato, de Junho de 1238, com João Eanes Remelado, sobre a exploração da vila de S. Vicente [da Beira], que deveria render à vestiaria monástica 100 morabitinos de ouro em cada ano.
Para além disso, recolheu-se, neste caderno, uma “noticia de aniuersariis” instituídos na igreja de Santiago [de S. Vicente da Beira], um rol do dinheiro despendido por Martinho Mendes na lavoura e amanho de terras da canónica e alguns lanços das verbas percebidas, também, por Martinho Mendes “cum sociis suis”, na portagem de Coimbra, num valor que se estimava em 1500 maravedis anuais, discriminando-se, no averbamento em causa, os valores do dinheiro entrado relativamente aos dias situados entre 3 e 12 de Abril de 122437.
Este pequeno caderno reúne, como se expôs, fontes relativas a três tipos de receitas económicas do claustro: a primeira relativa às terras e propriedades, e seus modos de exploração contratual; a segunda aos proventos dos aniversários e legados pios; a terceira, por último, alusiva ao dinheiro colectado na portagem coimbrã38), fechando com um rol das despesas realizadas na exploração directa de parte das terras do domínio monástico. Ele revela as preocupações que a canónica tinha com a administração do seu património, de modo a inscrever em cadernos do arquivo canonical a informação que cumpria acautelar, revelando a presença de um ecónomo (Martinho Mendes) responsável pela recolha de rendas e pela gestão pelo menos de uma parte do domínio agrário dos cónegos de S. Jorge.
Na primeira metade do século XIII, como vimos, o Mosteiro de S. Jorge de Coimbra mantinha práticas de administração que passavam pela escrita organizada. Se o “caderno de registos”, atrás citado, o indicia já, o documento que aqui publicamos apresenta, para os anos económicos de 1257 e 1259, um balanço do deve e do haver desta canónica regrante.
Poderemos classificá-lo como registo de contabilidade monástica, numa tipologia documental rara, sobretudo para essa época, nos nossos arquivos, mas que vem demonstrar, uma vez mais, a proliferação dos mecanismos de uma escrita contabilística no Portugal ducentista. Nele percorre-se longamente o património monástico dominial arrolando-se rendas e proventos cujas entradas se faziam pelas ovenças, respectivamente, da enfermaria, da vestiaria e da correaria. O hospital monástico e a “pitançaria” são referidos muito de passagem como tendo rendimentos próprios. Individualiza-se, ainda, uma boa parte, senão todos, os proventos exclusivos do prior-mor. No final do texto aparece um breve rol com as dívidas39.
Devemos atender, no entanto, que este registo de contabilidade monástica é, simultaneamente, um documento que arrola, inventaria e delimita o exercício dos poderes no interior desta canónica coimbrã. Ao identificar os bens e respectivas rendas das ovenças como a enfermaria, a vestiaria, a correaria, delimita-as nas garantias das suas fontes de receita, ao mesmo tempo que arrola o que pertence à mesa do prior-mor.
Neste sentido, o registo em causa é um acto que resulta, como referimos, de um exercício de reconhecimento e afirmação dos poderes endógenos de uma canónica agostiniana, de estatuto e protecção reais, no Portugal de meados do século XIII, garantindo os direitos patrimoniais da comunidade conventual e expondo os que eram pertença do prelado. E nestes, aliás, pressente-se uma certa denuncia de incapacidade de gestão e até de abuso de exercício de autoridade, por parte do prior-mor, demonstrável nas rendas que se não cobravam ou na apropriação, pelo prelado, de rendimentos que eram das ovenças.
Não significa esta leitura, contudo, que este tipo de diplomas, de inventário e contabilidade, apenas emergissem em situações de crise ou de conflito no seio das comunidades monásticas que nos interessam. Essas situações, naturalmente, poderiam contextualizar a redacção deste tipo de actos, mas importa sublinhar a capacidade técnica da sua concretização. E é a este nível mais profundo, o da inteligência redactorial em que a palavra e o número se associam no discurso financeiro, que importa situar o documento em causa. Não como uma excepção ao serviço da demonstração de poderes, mas como peça que resulta de um saber e de uma prática contabilística natural num senhorio monástico.
De uma leitura global deste registo contabilístico, verificamos que se intersectam neste claustro dois tipos de economia. Pesavam os pagamentos em géneros alimentares, em animais e até em escravos sarracenos. Mas a linha dominante neste micro-universo monástico é a da economia monetária. Procura-se avaliar todos os proventos em moeda, valorizando-se vendas e rendas expressas em dinheiro. Ainda que nem sempre isso aconteça, como sucede com a verba relativa aos três moios de centeio e um sarraceno recebidos, em 1257, pelo prior da enfermaria. Trigo, centeio, milho mourisco e milho, sem mais, tinham boa recepção no mercado urbano, valendo cada alqueire de trigo, nesse ano, quatro soldos. Como se vendiam bem, cremos, “panos”, decerto lanifícios para cuja manuifactura não faltava matéria-prima nos celeiros do Mosteiro. Os panos vendidos pelo prior a Vicente Serrão, por exemplo, tinham valido a soma de sete libras.
A venda da herdade de S. Simão de “Penellola” gerara uma receita de 80 libras. E, de Lorvão, recebia-se uma renda de 40 libras, dois terços das quais eram repartidos pela vestiaria e pela correaria. O Mosteiro era senhorio de muitas cabeças de gado miúdo e de apreciáveis boiadas. Um dos seus ovelheiros, Vicente, entregou aos cónegos 80 ovelhas e um asno, e D. Pedro, irmão de D. Sebastião, oito vacas, um boi e mais de 40 ovelhas; de um outro ovelheiro, Durando, recebeu-se 60 ovelhas e 13 libras em dinheiro. Pedro Gonçalves de “Paliom”, por seu turno, pagou oito cabeças de vacas, entre grandes e pequenas, 10 cabras, três asnos, um boi e um bom “zorame et sagiam”.
O hospital monástico entregara, em dois anos, a lã de 300 ovelhas, acentuando a relevância na economia deste mosteiro do gado lanígero e o peso que os produtos dele derivados, sobretudo a lã, como vemos, atingia.
Entre os rendimentos variáveis situavam-se os 10 moios de milho que o rei doara para pitança aos frades, mas “nihil inde habuerunt”. Da pitançaria de Santarém saíam 30 e mais libras de pão. A “pitançaria” tinha três e mais libras anuais, em Albarrol, pagas por Fernando Martins de Penela. A ferragem da almoinha da correaria rendia sete libras e os moinhos 4,5 libras por dia. Da vila de S. Vicente de “ultra serram” deveriam receber-se 200 libras anualmente, mas elas estavam por pagar desde 1257. Casos havia, ainda, de rendas subestimadas como sucedia com os cinco casais do Ameal, entregues pelo prior-mor, pelo prazo de um quadriénio, a Pedro Salvado, por 100 libras, se bem que valessem 200.
Da vinha da correaria recebia-se todo o vinho, mas a ausência de cavadura da mesma pelo caseiro, quando já floresciam as cepas, prejudicara a vindima. Quem fosse o responsável pela manutenção dessa vinha, não se indica. Cita-se, junto dessa parcela, que o mouro Mafomede entregara 57 libras à correaria, se bem entendemos. Seria este mouro o arrendatário da vinha em causa?
O Mosteiro tinha alguns olivais, poucos, rendendo, os que trazia D. Bento, “fibularius”, cinco libras. A mesa prioral auferia, como seria de esperar, da maior parte das rendas monásticas e, vezes havia, ainda, que o prior-mor se socorria dos proventos das ovenças da comunidade para dar satisfação a despesas que entendia convenientes quando deu algumas bestas, da correaria, a João Pais da Covilhã e a Pedro Peres “Lanyoso” ou dela recebeu sete carneiros para gastos.
Do “ano isto proximo preterito”, ou seja, 1258, não estava ainda apurado quanto o enfermeiro e o correeiro monásticos haviam entregado ao prior-mor. Sabe-se, no entanto, que o prelado recebeu os leitos e as cobertas de sete frades falecidos nesse período.
Não se apontam valores para o rendimento dos bens de Portalegre e da Covilhã, talvez por dificuldades de se levar a bom cabo a respectiva cobrança. Dos quatro casais de Celorico, por seu lado, havia já dois anos que nada se cobrava.
O claustro contraiu dívidas, nesses anos, para compra de cereal. A Pedro Manso, de Façalamim, seis moios de trigo; ao cónego Martinho Pais, de Coimbra, dois moios de trigo e outros dois de milho; ao Bispo de Coimbra, dois moios de milho e dois quarteiros de trigo; ao mercador Pedro Salvado, um moio de trigo e a Martinho Moniz, também mercador, seis quarteiros do mesmo cereal; ao carpinteiro Martinho Pais, da paróquia de S. Bartolomeu, foi comprado um moio de milho.
Não se explica cabalmente a razão desta necessidade de compra de cereais, pelos cónegos de S. Jorge, no mercado coimbrão. Dificilmente nos parece de admitir a hipótese de se atravessar, nesses anos, uma época de crise agrícola ou mesmo de escassez geral de cereais. Tanto assim não era, aliás, que o mosteiro encontrou no mercado local coimbrão o cereal de que necessitou.
A necessidade de trigo e de milho talvez se possa explicar por razões que se prendessem com o sustento da comunidade e um provável défice de entradas de trigo e de milho nos celeiros conventuais - lembremos que os 10 moios de milho doados pelo rei aos cónegos também não estavam a ser pagos -, talvez, ainda, por necessidade de grão para novas sementeiras, ou, sobremodo, por deficiente administração e recolha das rendas da instituição. Rendas em que, como anotámos, predominavam mais os pagamentos em moeda do que verdadeiramente em géneros, ainda que estes existissem.
A hipótese da falta de cereal nos celeiros do convento, contudo, poderá derivar de episódica deficiente gestão económica deste claustro. O próprio documento que seguimos refere que havia dois anos que o cabido monástico não se celebrava, sintoma de que algo não estava a decorrer regularmente neste claustro. Por 1258, aliás, parece ter assumido a cadeira prelatícia do mosteiro D. Gomes Lopes, substituindo D. Vicente Eanes, prior-mor desde 124740.
4 - S. Jorge de Coimbra conheceu tempos de prosperidade e outros de crise interna. No ano de 1192, o claustro acolhia 26 cónegos e exercia jurisdição sobre a comunidade feminina de cónegas agostinhas da Santa Ana, para a qual se apontam, nessa data, nove professas41. Dados que indiciam um ciclo de vitalidade na história desta comunidade regular. Mas o documento que motiva este artigo, por seu lado, revela sintomas de crise dentro da instituição nos finais da década de 125042.
Sabemos, também, que em 21 de Junho de 1264, D. Egas, bispo de Coimbra, se apresentou no mosteiro para fazer visitação “tam in capite quam in membris”, recebendo em mãos a renúncia de Gomes Lopes, prior e demais convento, “uolentes uitare dampna ipsius Monasterii”, a fim de que ali se mantivesse a paz e a concórdia43.
Que discórdias e rivalidades então dividiam os religiosos de S. Jorge não sabemos. Mas elas foram recorrentes. Numa sentença proferida por Pascásio Nunes, arcediago e vigário da Diocese de Coimbra, em 29 de Julho de 1287, dirimiu-se a questão que opunha o prior-mor e o convento, representados pelo seu procurador e cónego regular, Pedro Peres, a João Salvadores, também ele cónego professo deste mosteiro.
O conflito entre estas partes respeitava aos direitos de posse sobre umas casas, situadas no “vico de couis Colimbrie”, que tinham sido do pai de João Salvadores e de que era herdeiro. Alegava o procurador dos cónegos, no entanto, que tais casas deveriam pertencer de direito à instituição monástica, pois que o dito João Salvadores era cónego e professo desse cenóbio e “de iure et de consutudine regule sui ordinis nichil proprium deberet habere.” Reconheceu-se a S. Jorge, de facto, o direito sobre tais casas e impôs-se, aos litigantes, “perpetuum silentium” sobre o assunto44.
A vida na clausura não terá sido, contudo, sempre turbulenta como parecem sugerir os documentos citados. Conhecemos exemplos de boas vidas, ou pelo menos de vidas bem sucedidas ao serviço da Igreja, entre os professos de S. Jorge de Coimbra. Neste claustro se criou, numa demonstração, creio, da vitalidade de recomposição disciplinar que ali se alcançou, para a vida religiosa, “in minori officio constitutus”, um tal Domingos, sobrinho do prior-mor dessa canónica, D. Martinho Miguéis45.
Este Domingos “fuit assumptus ad episcopalis apicem Elborensis”, sendo pois D. Domingos Eanes Jardo, bispo de Évora entre 1285 e 1289. Por intervenção do agora prelado eboracense, o prior-mor da canónica, D. Fernando Gonçalves, com os cónegos, por acordo de 4 de Dezembro de 1286, comprometeram-se a celebrar, por alma desse seu anterior prelado da canónica, uma missa conventual todos os anos, devendo dar-se ao convento, nessa ocasião, “ad suam uictualium refectionem”, 10 libras velhas portuguesas, as quais seriam confiadas ao prior claustral ou, na sua ausência, ao “sacrista”46.
Os elogios que, neste compromisso piedoso, são tecidos à memória do velho prior-mor, D. Martinho Miguéis, embora se compreendam pela intencionalidade de lisonja para com a figura do então bispo de Évora, seu sobrinho, não deixam de expressar, ainda assim, o ideal de desempenho que se esperava de um prior-mor de uma canónica regular agostiniana: “laudabilem uitam et conuersationem venerabilis et religiosi patris domni Martini Michaelis quondam prioris nostri et labores quos ipse sostinuit pro bonis ipsius Monasterium nom solum spiritualibus sed etiam temporalibus augmentandis necnon bona multimoda et auxilia que nobis et nostro Monasterio ipsius persone intuitu fecit”47.
Em 1321, S. Jorge de Coimbra foi taxado em 900 libras, significativamente abaixo de Santa Cruz de Coimbra, com 13 700 libras, a mesa prioral, e outras 5500, o convento, mas consideravelmente acima, por exemplo, de outra canónica regrante, não muito distante no espaço geográfico, como S. Pedro de Arganil, estimada em 400 libras48.
A dimensão do património de S. Jorge permitia, ainda por todo o século XIV, um confortável nível de vida aos seus professos. Isso é muito claro, por exemplo, em 1334, quando o prior-mor concordava em “que os coonigos e os frades confessos do dicto monasterio de cada dia ajam pera seu mantimento tres pãees cada huum coonigo e frade e serem tamanhos que do alqueire da farinha triga peneirada polla ante maao e seendo-lhe a mão posta hûa vez que do alqueire fossem fectos dezeoyto pãaes […] e cada dia ajam d’aver tres fiaas de vinhos, o vaso da colaçom, e da noa e da presa o qual vinho seer terçado as duas partes de vinho e a hûa d’augua”49.
Em 1368, Afonso Gonçalves, prior de S. Jorge de Coimbra era também o reitor da Universidade, ao tempo instalada nesta cidade50. Em 1423, o Infante D. Pedro suplica ao papa a nomeação de Fr. João Verba, dominicano e seu confessor, para o priorado do Mosteiro de S. Jorge, vago pelo falecimento de Álvaro Gonçalves, avaliando-se os seus frutos em 200 libras pequenas de Tours51. O ciclo de comendatários deste Mosteiro, testemunhando a cobiça de alguns sobre as suas pingues rendas e o seu vasto património, prolongar-se-á pelo século XVI dentro52.
Fontes e Bibliografia
Fontes manuscritas
Direcção Geral de Arquivos - Torre do Tombo
Mosteiro de S. Jorge de Coimbra, Mº 1, Docs. 35 a 37.
Mosteiro de S. Jorge de Coimbra, Mº 3, Docs. 10, 12 e 15.
Mosteiro de S. Jorge de Coimbra, Mº 4, Docs. 5, 29 e 30.
Mosteiro de S. Jorge de Coimbra, Mº 6, Docs. 2, 21 e 32.
Mosteiro de S. Jorge de Coimbra, Mº 7, Doc. 12.
Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra, 2ª incorporação, Mº 238, Doc. com a cota antiga: “Alm. 60, nº 2, mº 12”.
Sé de Coimbra, Mº 15, Doc. 30.
Sé de Coimbra, 2ª incorporação, Mº 84, Doc. 3805.