1. Introdução
Durante os séculos finais da Idade Média, a estrutura urbana de Santarém assumiu uma feição polinucleada: junto ao rio Tejo, a Ribeira permitia o contacto com as vias de circulação fluviais que serviam o esporão da Alcáçova, ocupado desde tempos proto-históricos. Sobre a diacronia da ocupação de um terceiro núcleo localizado no planalto de Marvila, têm sido avançadas hipóteses de trabalho divergentes. Enquanto alguns autores, baseados no cadastro actual, entreviram sinais de urbanismo romano1, outros investigadores tem argumentado que a expansão da malha urbana atingiu esta última zona durante o período islâmico e que corresponderia ao núcleo comercial da medina estruturado em torno da mesquita aljama, templo que seria o antecessor directo da igreja baixo-medieval de Marvila2.
Uma vez que rareiam fontes documentais anteriores ao século XII, a evolução urbana da cidade só poderá ser esclarecida recorrendo aos dados fornecidos pelas intervenções arqueológicas realizadas na cidade, que se multiplicaram nas últimas duas décadas. Se num primeiro momento os trabalhos estiveram praticamente circunscritos à Alcáçova3, o advento da arqueologia preventiva na década de noventa do século passado resultou não só num exponencial aumento das escavações, como na sua dispersão por todo o chamado “centro histórico4”.
2. Sucessão estratigráfica e cronologia dos contextos arqueológicos
Propomo-nos analisar os dados recolhidos durante uma escavação arqueológica que incidiu sobre uma área bastante extensa, cerca de mil metros quadrados e que decorreu entre Agosto e Novembro de 2007 e Junho e Setembro de 2008, nos números 5-8 da Rua Cinco de Outubro5. A área intervencionada assumia-se à partida como fundamental para esclarecer a diacronia da evolução urbana de Santarém, na medida em que corresponde ao extremo oriental do planalto de Marvila, designado nas fontes medievais por Alpran e contemporaneamente por Alporão. Os constrangimentos topográficos implicam que a circulação entre este acidente de relevo e a Alcáçova se processe na área escavada, realidade atestada documentalmente para a Idade Média6, mas que se teria estruturado logo em época romana7.
Esta última afirmação apoia-se na estratigrafia identificada, que permitiu determinar que a ocupação humana desta área se iniciou com uma necrópole de incineração8, certamente utilizada pela população concentrada na Alcáçova, tendo sido identificadas várias deposições em urna e um possível ustrinum, contextos genericamente enquadráveis no período alto-imperial. Posteriormente e de forma aparente ininterrupta, o espaço foi sucessivamente acolhendo inumações cujas características, como veremos adiante com mais pormenor, são consonantes com as soluções e evoluções decorrentes dos rituais funerários praticados nas urbes peninsulares entre os séculos III e X.
A partir das primeiras taifas\período almóravida assinala-se por fim uma mutação da funcionalidade do espaço, com o início da escavação de grandes estruturas negativas, que geralmente são interpretadas como silos. Nos primeiros momentos do domínio cristão, a área continuou a acolher actividades e estruturas típicas das periferias urbanas como fornos de cerâmica, pedreiras e alcaçarias.
O processo de urbanização só se intensificará a partir dos séculos XIII-XIV, tendo sido registados vários espaços de habitação margeando arruamentos, sem nunca anular completamente algumas parcelas vazias de construções - mesmo durante o século XV - certamente dedicadas `a produção agrícola. As claras evidências de actividade metalúrgica no local, demonstram também que a malha urbana não seria ainda especialmente densa nos finais da Idade Média.
3. Na periferia da cidade. A diacronia das necrópoles
Após esta descrição necessariamente sucinta dos dados recolhidos, concentremo-nos nas necrópoles visigoda e islâmica, cuja implantação e dispersão espacial fornecem pistas fundamentais para a recuperação da paisagem urbana num período em que o contributo das fontes documentais é diminuto.
A afirmação progressiva dos preceitos rituais do Cristianismo, que culminará com a conversão de Constantino, torna especialmente complexa a tarefa de integrar cronologicamente os enterramentos baixo-imperiais. Paralelamente à progressiva difusão da inumação do cadáver em detrimento da opção pela incineração, vão também desaparecendo os espólios votivos que permitiriam uma datação contextual para o momento do enterramento9. Assim, algumas sepulturas escavadas na rocha, onde ocorrem por vezes de elementos pétreos ou cerâmicos funcionando como muretes e tampas, não podem ser integrados cronologicamente sem recurso a métodos de datação absoluta, mas foram indubitavelmente depositados entre os séculos III e VIII.
À semelhança do que se verifica em várias urbes peninsulares, em que as inumações paleocristãs ocorrem frequentemente nas proximidades de uma basílica peri-urbana, sobreposta aos cemitérios romanos e dominando por inerência um eixo viário de acesso preferencial à povoação10, esta necrópole relacionar-se-ia com um templo localizado a Norte, nas cotas cimeiras do planalto. A sua eventual correspondência topográfica com a paroquial que aí se erguia após a conquista cristã11, dedicada a S. Martinho de Tours12, assume-se como forte possibilidade.
Já no extremo NE da intervenção arqueológica foi identificado um conjunto de sepulturas cujas características demonstram que se organizou quando a presença visigoda na cidade era já uma realidade. Desde logo pela disposição das sepulturas, com uma irrepreensível orientação E-O, com a face orientada a nascente e organizadas em núcleos. Algumas foram ortogonalmente colocadas lado a lado, num esquema de disposição que poderá significar uma aglomeração com base em laços familiares, típica dos primeiros momentos da colonização germânica13, impressão reforçada pela presença de ossários em algumas delas correspondendo, com elevada probabilidade, ao desejo de inumação junto de um parente anteriormente falecido. Ao nível do ritual, surgem indícios de que os indivíduos era enterrados no interior de caixas de madeira, denunciadas pela presença de grandes pregos de ferro no registo arqueológico.
Os adornos recolhidos permitem enquadrar pelo menos dois deles no ambiente cultural e na cronologia proposta: a inumação [640] - sepultura [423] - fazia-se acompanhar de dois anéis e no interior da sepultura [763], muito embora já não contivesse restos osteológicos, foram levantados dois brincos e uma pulseira em bronze, bem como um colar composto por várias dezenas de contas de âmbar com secção para-oval e corpo aplanado. Uma grande conta em vidro, com estrias exteriores, seria o elemento central desse adorno14. O jarro de perfil piriforme proveniente da mesma sepultura, muito embora apresente dimensões mais reduzidas, oferece um paralelo evidente com materiais exumados na necrópole visigoda de Fuentes, Cuenca, datada entre os séculos VI e VII15, bem como com a variante 3 da cerâmica funerária de El Ruedo, em Almedinilla16. A sua morfologia aproxima-o também de recipientes recolhidos, na cidade de Mérida, em contextos que correspondem a despejos domésticos ocorridos entre os séculos VI e VIII17.
A presença de espólio votivo em sepulturas cristãs destes períodos foi já interpretada como uma forma de afirmação identitária dos arianos face à restante população cristã18, o que colocaria alguns destes enterramentos numa data anterior à conversão de Recaredo ocorrida em 589, mas esta tese não é consensual entre os investigadores19.
Dada a implantação tipificada para as necrópoles islâmicas, invariavelmente no exterior da cidade dos vivos20, é seguro que a zona a este de Alporão se manteve vazia de construções durante os primeiros séculos após a integração da cidade nos domínios muçulmanos uma vez que as inumações continuaram, interceptando frequentemente os contextos funerários anteriores.
Os seus aspectos formais são absolutamente consonantes com os rituais prescritos pela religião do Corão, uma vez que os cadáveres foram depositados em decúbito lateral direito, no interior de simples fossas escavadas na rocha, não se detectando qualquer espólio votivo associado21.
No entanto, se bem que todos os enterramentos identificados partilhassem as características mencionadas, verifica-se que alguns deles, restritos à secção Norte da área intervencionada, têm uma orientação ligeiramente desfasada da posição canónica, estando orientados Norte/Sul, com a face virada a Nascente. Já no quadrante sul e sueste da área intervencionada, todos as sepulturas estão dispostas na direcção NE/SO que no Al-Andaluz garantia um correcto alinhamento com a quibla22.
Obviamente que os períodos de transição tendem a originar situações de heterodoxia, quer pela natural vigência de soluções de continuidade, quer pela reduzida intensidade dos novos comportamentos e opções culturais. O incremento da actividade arqueológica das últimas décadas tem-se revelado fundamental para revelar, ainda que timidamente, o conspecto material dessas alterações. A mesma hesitação na orientação dos enterramentos de período islâmico tem sido referenciada em assentamento rurais, estruturalmente menos permeáveis às mudanças culturais, como no sítio do Vale do Bouto, Loulé, onde algumas inumações em decúbito lateral continuaram a ser orientadas E-O, mas também em povoações marcadamente urbanas como Mértola, onde 13% dos esqueletos do Rossio do Carmo estão, à semelhança dos identificados em Santarém, depositados no sentido Norte-Sul23.
Em ambiente urbano, o desajustamento da orientação nos primeiros momentos da presença islâmica pode ser explicado pela conversão de templos anteriores em mesquitas, o que implicava um desajustamento da quibla face à sua direcção astronómica e cartográfica. È certo que frequentemente o mirab era colocado na parede Sul «por una aversion a orar hasta Este (a imitar a los cristianos)24», mas possivelmente, em especial nas cidades mais afastadas dos centros políticos e religiosos do Al-Andaluz e/ou junto de comunidades recentemente islamizadas, as igrejas poderão ter sido utilizadas sem alteração, o que explicaria a orientação N/S de algumas das sepulturas de Santarém e também de Mértola. Só a construção ex-novo de templos permitiria orientá-los perfeitamente para Meca pelo que a construção da mesquita aljama de Santarém pelo califa Hisam II, no século X25, poderá ter contribuído para normalizar o ritual funerário, difundido definitivamente a solução canónica por todos os necrotérios da cidade.
Este espaço de necrópole foi abandonado ainda durante o domínio islâmico, uma vez que vários enterramentos foram interceptados por estruturas negativas, correspondendo certamente a silos, posteriormente reconvertidos em lixeiras e entulhados com despejos domésticos. Muito embora seja necessário sistematizar o estudo de todos os materiais arqueológicos recuperados no seu interior, a datação contextual da última utilização de algumas estruturas aponta para um período entre a segunda metade do século XI e a centúria seguinte.
4. A reorganização funcional nos séculos XI-XII
Consideramos que amortização da função funerária neste espaço não estará relacionada com um processo de expansão do tecido urbano, mas antes com os equilíbrios geoestratégicos observados no extremo ocidental da Península e que colocaram Santarém, precisamente nessa cronologia, na linha da frente dos confrontos entre as unidades políticas que se digladiavam pela sua administração. O sinal de alerta definitivo para o campo muçulmano terá sido a integração durante 18 anos da cidade nos domínios leoneses26. Recuperada pelos Almorávidas em 1111, a estratégia de D. Afonso Henriques durante os decénios seguintes, nomeadamente a fortificação de Leiria em 1135, anunciava um ataque eminente a Shantarin27.
O relato da tomada de Santarém undecentista (De expugnatione Scallabis, doravante DES), regista indubitavelmente a reacção a essa conjuntura por parte do poder almorávida que criara em Alporão em data anterior a 1147, uma linha protectora composta por muralhas, torres e um baluarte, possivelmente antecedido por uma barbacã em terra batida28, edificada com o entulhamento de um complexo defensivo anterior composto por fossos29 ou estruturas positivas30. Este complexo defensivo foi portanto erigido poucos metros a oriente da área da intervenção arqueológica e poderá relacionar-se directamente com o terminus das inumações nesse espaço, que passaram a estar localizadas no interior do perímetro amuralhado. No entanto, reafirmamos que não foram registados indícios de urbanização anteriores à conquista cristã, o que sugere uma inexistência ou uma reduzida densidade construtiva na área, pelo que esta segunda linha de muralhas, mais do que defender contingentes populacionais significativos, teria como objectivo imediato criar um primeiro impedimento à progressão de beligerantes nas cotas mais elevadas da urbe.
Da mesma maneira que o campo cristão não esquecera que Afonso VI só conseguira tomar a cidade «pela fome31», o governador almorávida consideraria fundamental impedir que um eventual exército cristão levantasse cerco junto dos muros das Alcáçova. De facto, se os sitiados se circunscrevessem aos 4 hectares da alcáçova, para além de mais facilmente serem atingidos por projécteis arremessados do exterior, o acesso a recursos alimentares seria dificultado: o relevo envolvente dificultaria sortidas esporádicas e o espaço disponível para o armazenamento de víveres num momento prévio ao cerco seria bastante reduzido32.
Os dados disponíveis parecem confirmar esta linha de interpretação e permitem perspectivar que em 1147 existiriam duas linhas defensivas autónomas. É certo que a DES regista que D. Afonso Henriques, investindo pela direita em direcção às portas de Alporão acabou por «entrar pela porta da cidade, com muito maior segurança33», o que sugere a existência de uma só cintura defensiva, sem separação material entre aquela entrada e a Alcáçova, tomada assim pela ardilosa penetração de uns poucos guerreiros. No entanto, cremos bastante plausível que o panegírico de um monarca que escorava o seu prestígio na proficiência militar34, tendesse a abreviar os factos que conduziram à captura da cidade, concentrando-se exclusivamente na acção bélica mais espectacular, olvidando uma eventual entrega pacífica da Alcáçova35, que se encontrava indiscutivelmente cercada por muros36, como nos demonstra a descrição da ofensiva almóada de 1184.
Assim, as tropas muçulmanas terão acampado no planalto de Marvila, «en la montaña que domina a Santaren y esta contigua a ella», destruindo algumas construções no exterior das muralhas e preparando a partir daí o assédio às fortificações da cidade. Depois atacaram o complexo de Alpran, que transpuseram sem grande dificuldade, sendo que os seus defensores se salvaram in extremis, recolhendo ao interior da «muralla de la alcazaba37». A memória cronística portuguesa de Quatrocentos, muito embora apresente um versão diferente dos sucessos militares, também não nos afasta dessa interpretação registando que no contexto desse ataque D. Sancho se fortificara não «dentro nos muros da Villa, nem Dalcaceva, que então era tão somente cercada», mas antes «se susteve sempre nos arrabaldes da Villa em palanques, e estancias, que com madeiras somente afortalezou38». Consideramos que os primeiros muros mencionados por Rui de Pina correspondem a Alporão, sendo claro que a Alcáçova é um espaço militar individualizado materialmente, mas que não teria castelo. Já os palanques mencionados poderão significar uma reactivação da barbacã de terra batida almorávida, reforçada por estruturas em materiais perecíveis.
Verifica-se portanto que constituem informações absolutamente coincidentes com o sistema defensivo construído entre 1111 e 1147 descrito na DES. Registe-se também que ambas as descrições da ofensiva almóada relatam algumas estruturas habitacionais no planalto de Marvila, embora sejam unânimes em considerá-lo como arrabalde.
Os desenvolvimentos posteriores à incursão almóada de 1184 são concordantes com a imagem esquemática do espaço urbano e peri-urbano fornecida pelas fontes já citadas. Muito embora a cidade tenha resistido, as fragilidades reveladas pelo sistema defensivo terão compelido D. Sancho I a reestruturá-lo39. Nesse sentido se deverá entender a implantação topográfica do conjunto claustral de S. João de Alporão, junto das portas homónimas, reforçando portanto a sua protecção com um contingente de Hospitalários que na década de 80 do século XII eram presença cada vez mais frequente e eficaz nas campanhas militares portuguesas40.
No entanto, a premissa fundamental seria obstaculizar a penetração de comitivas inimigas no planalto de Marvila, pelo que se iniciara a edificação de uma terceira linha de muralhas como demonstram as referências ao muro de Marvila em 1191 e às portas de Atamarma em 1218 e de Manços em 123241, sucessão cronológica que parece comprovar que este novo projecto construtivo se constituiu como uma reacção à aparente facilidade com que os almóadas assediaram a linha de Alporão e ameaçaram a Alcáçova.
5. A expansão urbana nos finais do século XII. A densificação construtiva no planalto de Marvila.
Na sequência das informações documentais e arqueológicas que fomos tratando parece-nos prematuro defender que Marvila se tenha afirmado como centro cívico, religioso e comercial durante o domínio muçulmano. Em primeiro lugar pela conhecida aversão a vizinhar com áreas de necrópole que se encontrava, durante o século XI senão em utilização, certamente visível a cerca de 120 metros. Depois porque nos parece inverosímil que o poder almorávida deixasse sem protecção a zona mais nobre da cidade. Por último, as crónicas cristãs e árabes são consensuais em afirmar que os combates de 1184 decorreram num espaço de arrabalde, realçando a sua exterioridade face ao núcleo mais urbanizado.
De resto, mau grado a precocidade da referência à paróquia de Marvila, em 118642, é indiscutível que nos decénios seguintes se observava ainda nas proximidades deste templo uma malha cadastral frequentemente interpolada por espaços vazios, denunciados pelo topónimo Pedreira ou pela doação de um ferragial em 1251, localizado a Este da igreja paroquial. Estes dados não permitem perspectivar a elevada densidade construtiva que seria espectável numa antiga medina. Pelo contrário, levam-nos a concordar com Ângela Beirante quando concluiu, a partir dessas referências documentais que a «valorização de Marvila parece posterior à Reconquista43».
O registo arqueológico também não sustenta uma intensa ocupação do espaço nos séculos XI e XII. Resumindo-se praticamente à identificação de silos, que no momento em que a sua funcionalidade primária se esgotou foram colmatados com sedimentos que embalaram materiais de cronologia islâmica44, a sua presença deve ser também encarada com precaução. Se em 2002 se verificava que «no planalto de Marvila (…) nunca foram encontradas quaisquer estruturas de carácter habitacional ou outro, para além das fossas escavadas na rocha, a que habitualmente se chamam silos», as publicações posteriores sobre escavações na cidade não alteraram esse panorama45.
A permanente glosada aptidão cerealífera das planícies aluviais ribatejana e a sua posição, no cruzamento de importantes vias terrestres e fluviais dinamizariam em muito a propensão comercial da cidade, especialmente potenciada durante os primeiros séculos de domínio islâmico, período em que a linha de costa sofreu vários raides marítimos de que são exemplos as incursões normandas, enquanto a relativa interioridade de Santarém a tornou menos exposta a esta conjuntura de instabilidade militar46. Nesta perspectiva a frequência de covas de pão poderá significar não uma ocupação residencial generalizada mas antes a adscrição de amplas áreas ao armazenamento de produtos agrícolas.
A julgar pelos contextos arqueológicos estudados e já publicados, verifica-se de facto que nas duas centúrias que antecederam a conquista de D. Afonso Henriques, muitos silos foram abandonados, o que poderá denunciar um decrescimento dos excedentes agrícolas armazenados na vila47. Uma explicação razoável para este processo seria a afirmação crescente da função comercial de Lisboa que passaria a redistribuir as produções do termo de Shantarin, embarcadas directamente na Ribeira. Muito embora a verificação desta tese só possa ser realizada com um estudo comparativo, que se afasta do propósito deste artigo, enquadra-se perfeitamente na imagem transmitida pelas fontes geográficas islâmicas coevas, que ilustra um processo de hierarquização dos pólos urbanos do Vale do Tejo, com vantagem para a cidade do estuário durante os séculos XI e XII48.
Em conclusão, no actual patamar da investigação, cremos que o povoamento durante época islâmica estaria concentrado entre a Alcáçova e a necrópole agora identificada, enquanto a ocupação no planalto de Marvila, a existir, seria certamente muito incipiente. Os quatro a seis hectares ocupados pela cidade alcandorada, permitem perspectivar uma urbe de reduzidas dimensões49 quando comparada com as suas congéneres plenamente mediterrânicas como Sevilha ou Huelva, mas perfeitamente condizente com o seu posicionamento na periferia geográfica e política da rede urbana do Garb Al-Andaluz50. E seriam ainda complementados pela área ocupada pela Ribeira. Muito embora seja necessário sistematizar as informações relativas ao arrabalde portuário, a sua importância para a dinâmica da urbe é revelada pela construção de uma muralha em época islâmica51, sendo verosímil que a contabilização da sua malha cadastral faça triplicar o valor global52.
Como bem realçou Mário Viana é nesta dicotomia fortaleza/porto que a feição urbana da cidade deve ser entendida53, afirmando-se como centro de consumo e plataforma de redistribuição comercial dos proventos da exploração agrícola, numa área cujas potencialidades de rendimento dinamizavam a estruturação de uma densa malha de pequenos núcleos de povoamento, glosada pelas fontes árabes e sugerida pela toponímia54 e que a arqueologia começa, ainda que timidamente, a comprovar55. Este esquema de povoamento, com forte humanização dos campos no hinterland da cidade, poderia mesmo explicar a tardia urbanização de Marvila, só possível com um crescimento demográfico pós-reconquista, alimentado por uma eventual concentração populacional no centro urbano56 e pela documentada chegada de colonos setentrionais57, certamente atraídos pela produtividade das aluviões do Tejo mas também pela proximidade com as urbes meridionais que ainda hasteavam a bandeira do Crescente, repletas de recursos ao alcance de uma cavalgada estival58.
Fontes Manuscritas:
AN-TT, Memórias Paroquiais, volume 33, nº 66f, pp. 493 a 516.
Fontes Impressas:
PINA, Rui de, Chronica de el-rei D. Sancho I, s.l., vol. LII de Biblioteca de Clássicos Portugueses, 1906, p. 41.
MARRAKUSI, Ibn Idari Al-, Al-Bayan al-Mugrib Fi Ijtisar Ajbar Muluk Al-Andaluz Wa Al-Magrib, vol. I, Ambrosio Huici Miranda (edição e tradução), Tetuán, Editora Marroqui, 1953, p. 71.