A palavra “baldio” permanece na língua portuguesa como terra inculta, sendo por vezes até sinónimo de terra abandonada, inútil e vão. Esta ideia, de uma terra sem uso, terra de ninguém, está na base da destruição ontológica do que é um baldio, tendo sido estratégica para os processos de expropriação das terras comunitárias em Portugal. É por este motivo que o nome, ou melhor, as origens do nome, pouco importam. Como bem relembra o autor nesta obra, há que recusar partir para o estudo sobre os baldios desde a sua origem etimológica, sendo muito mais frutífero abordar os baldios como terras que resultam da ação coletiva dos e das que nela vivem, e por ela lutam, procurando assim ressignificar a palavra “baldio”.1 Este novo significado, antes mesmo de ser nome, é prática. Prática comum dos e das que da serra e da floresta, historicamente, usufruíram em comunidade.
“Que por ela lutam” é o foco de O despertar das montanhas, uma obra que procura retratar as lutas dos povos da região do Vouga antes da Revolução dos Cravos. Escrita por Vasco Paiva - engenheiro florestal mas, mais importante que isso, militante do Partido Comunista Português (PCP) desde 1969 -, a obra dá conta das diversas lutas e protestos que durante os primeiros anos da década de 1970 e até à revolução abalaram as freguesias de Talhadas (Município de Sever do Vouga), Préstimo (antiga freguesia do Município de Águeda agregada a Macieira de Alcoba em 2013 com a reforma administrativa do mesmo ano), Albergaria das Cabras e Cabreiros (atualmente Cabreiros e Albergaria da Serra, em Arouca), entre muitas outras situadas no Vale do Vouga. Essas lutas despertaram o povo para a ação coletiva e desafiaram o Estado fascista e os seus interesses privados associados.2
Apesar de os baldios ou, mais corretamente, de as terras comunitárias não serem um fenómeno exclusivo a Portugal, estas foram fundamentais para a consolidação do Estado fascista e, após a revolução, para a consolidação do capitalismo português. Não se estranha assim o relato de que junto dos povos se organizassem também militantes do PCP, muitos deles de forma clandestina. Esta foi também a experiência de Vasco Paiva, sendo uma das razões pelas quais esta obra é de interesse para quem procura compreender os baldios e analisar o papel das terras comunitárias na construção do Estado português.
Em Portugal, apesar de os trabalhos académicos sobre baldios tenderem a ser mais pontuais do que disciplinares e a se inscreverem na temática de investigação sobre “comuns”, e menos como temática em si, existem na nossa academia importantes autores e autoras, cujos trabalhos contribuem de forma substantiva para o entendimento das terras comunitárias. Destaco, por exemplo, os trabalhos de João Gralheiro, António Bica, João Arriscado Nunes e Rui Feijó, João Antunes Estêvão, Pedro Hespanha, Rita Serra e, mais recentes, os de Irina Skulska. Sem dúvida, o trabalho de Vasco Paiva junta-se a estes na composição de uma bibliografia que deve ser a base de qualquer futuro trabalho sobre baldios.
Alvorando-me da obra e focando-me no autor, há que refletir sobre o caráter documental e autobiográfico da narrativa que, ao longo dos distintos capítulos, nunca se sobrepõe à análise cuidada das condições materiais objetivas que estão na base da revolta. Quero com isto dizer que a maior força da análise de Vasco Paiva reside no facto de o autor ter sido mais do que um engenheiro florestal envolvido nas lutas. Tal como ele próprio reconhece, o saber técnico e jurídico desempenhou um papel fundamental nos processos de revolta e de contestação, mas foi o espírito de militância que fez e marcou a diferença - apesar de que para o autor, “o apoio técnico ou político era apenas isso, apoio” (p. 10). É, pois, neste relato humilde e reflexivo que se vê que “nada se faz sem a vontade do povo” (p. 9), uma importante conclusão da obra que, para Vasco Paiva e outros intervenientes mencionados ao longo da mesma, foi, e continua a ser, uma forma de estar. Esta importante conclusão serve também de lembrete aos académicos e académicas de hoje: todo o saber é útil quando comprometido com o povo e quando colocamos as nossas redes ao serviço das reivindicações do mesmo.
Olhando para a estrutura da obra, O despertar das montanhas pode ser entendido como estando dividido em três partes. Na primeira, Vasco Paiva introduz-nos brevemente à problemática dos povos da zona do Vouga e ao papel que a intervenção clandestina do PCP desempenhou ao animar os protestos, enfatizando, no entanto, que estes se deveram sempre aos próprios povos e por eles foram dirigidos. Na segunda parte, dividida em sete capítulos, o autor relata-nos a luta pelos baldios de Talhadas, Préstimo, Albergaria das Cabras e Cabreiros, Candal, entre outras freguesias, relembrando as ações repressivas dos Serviços Florestais e do Governo fascista, e identificando as motivações da revolta, as estratégias da luta e principais intervenientes - uma identificação que apenas em liberdade é possível realizar. Seguem-lhe relatos mais curtos das lutas de produtores de leite, de gado, de vinho, de batata e de aves, bem como um relato sobre o incêndio que em 1972 abalou a região. A segunda parte encerra-se com uma descrição daquela que foi a estratégia que animou a contestação dos povos das montanhas. A terceira parte, de caráter documental e organizada em anexos, procura conduzir-nos cronologicamente ao longo dos acontecimentos e transcreve os principais textos produzidos pelos povos em luta - textos estes animados por publicações como o jornal A Terra e o boletim A Voz da Montanha.
Sendo uma obra recomendável tanto para a academia como para fora dela, O despertar das montanhas aparece como um importante contributo político e histórico sobre os baldios e seus compartes, contribuindo para popularizar as nossas terras comunitárias. Acresce-se a este contributo a virtude de ser um relato honesto sobre o papel que o PCP procurou ter na organização dos protestos e na resistência antifascista. É assim um contributo importantíssimo para o tempo em que vivemos, tempo esse contaminado pela amnésia provocada por aqueles e aquelas que se revestem dos “usos e costumes” para impor uma nova repressão. Só que tal como “nada de faz sem a vontade do povo”, “Há sempre alguém que resiste / Há sempre alguém que diz não”.3
A edição é da Lápis de Memórias, um pequeno projeto nascido na cidade de Coimbra em 2011 que realiza um trabalho “Com rigor e exigência, mas também com um sentido - o traçado em Abril de 1974”.4
Irina Castro
Revisto por Alina Timóteo