Notas sobre o contexto de uma ideia
“N’uma epoca em que o principio da solidariedade social começa a ser comprehendido e a fructificar grandemente, a creação de uma obra destinada a beneficiar aquelles que dos beneficios da sociedade mais precisam - as creanças - não podia deixar de encontrar o mais largo auxilio.” (Associação Protectora…, 1903, p. 3-4).
No início do século XX, tal como em outros países europeus, também em Portugal a elite esclarecida e culta demonstrava uma sensibilidade social crescente face às dificuldades vividas pela maioria da população, sobretudo nas grandes cidades. O apoio e proteção à primeira infância, e às crianças, constituem uma preocupação partilhada sobretudo por médicos, higienistas, políticos e beneméritos. Preconizando os princípios fundamentais do positivismo, pretendiam afirmar nestes domínios valores de progresso científico e social que, frequentemente, se traduziam no apoio financeiro e/ou especializado a equipamentos existentes ou, ainda, dinamizando e viabilizando a sua construção.
A pobreza atingia quem trabalhava, devido aos baixos salários e à escassez de apoios sociais, agudizando a fome, favorecendo a mendicidade e a proliferação de bairros precários e insalubres. Os fluxos migratórios para as cidades, sobretudo Lisboa e Porto, tiveram implicações diretas na imagem de ambas as urbes que, paulatinamente, foram perdendo marcas de uma ruralidade até então predominante, e geraram assimetrias que desde o início do século XX se foram acentuando numa tripla dimensão: urbana, socioeconómica e, também, cultural. Neste sentido, “muitos dos habitantes de Lisboa demonstram dificuldades de inserção no ambiente urbano, na cidade que quer ser ordeira, produtiva e um símbolo de modernidade.” (Pinheiro e Vaz, 2009, p. 95).
Se, globalmente, o foco dos legisladores, dos médicos, dos higienistas e do Município de Lisboa, entre outros agentes, era dirigido a esta população fragilizada e desenraizada, num acelerado processo de aculturação, houve uma atenção especial em relação às mulheres e, assim, aos seus filhos, criados muitas vezes em contextos monoparentais e que registavam altos índices de mortalidade1.
Neste contexto, a reforma da saúde pública proposta pelo doutor Ricardo Jorge (1858-1939)2, a pedido do Governo (1889-1901), de inspiração inglesa e alemã, afirmava conceitos do moderno sanitarismo, o de primeira geração (Graça, 2015). No entanto, a implementação das medidas aprovadas foi sempre inconsistente, comprometendo a sua eficácia a médio e longo prazo. Era, então,
um novo conceito em torno de um novo objecto político, a população, que se manifestava através de uma nova tecnologia disciplinar na preocupação com a espécie humana, e não apenas com o corpo individual, concentrando-se em fenómenos de conjunto como a mortalidade, a natalidade, a morbilidade, a longevidade ou a reprodução [visando a] implementação de um novo sistema sanitário, com vista à vigilância médica e à erradicação de endemias e prevenção de epidemias e medidas afins. (Alves e Carneiro, 2019, p. 9).
As conferências internacionais sobre estes temas eram acompanhadas em Portugal, o que favoreceu, a par da intervenção régia, sobretudo da rainha D. Amélia3, o facto de o minimizar das dificuldades sentidas por grande parte da população fosse assumido como causa própria por parte das elites. O emergir de uma nova consciência do seu papel na sociedade foi mais além de uma atitude caritativa, que permanece, mas à qual se sobrepõe a intervenção direta, animada por novos valores científicos e éticos.
Um exemplo paradigmático desta nova atitude é o primeiro lactário construído em Lisboa pela Associação Protetora da Primeira Infância (APPI).
A Associação Protetora da Primeira Infância e o lactário
O primeiro lactário edificado na capital resulta da iniciativa do coronel Rodrigo António Aboim Ascensão (1859-1930)4, ao preconizar, em 1901, a constituição da Associação Protetora da Primeira Infância5, cujos estatutos foram aprovados por alvará de 3 de julho de 1901.
De forma célere, foram desde logo definidas as intenções desta instituição inédita em Portugal: “a implementação do modelo de lactário e a criação de um serviço clínico inovador, que tinha ao seu dispor incubadoras (à época designadas por creadeiras) para os cuidados neonatais, provavelmente os primeiros aparelhos com essa função vindos para Portugal.” (Oliveira, 2015, p. 15). Nos seus estatutos eram descritos como campos de atuação o fornecimento de vestuário para a primeira infância e a divulgação de cuidados (alimentares e higiénicos) junto das progenitoras, sendo também prevista a existência de «protetoras assistentes»6.
Uma das primeiras prioridades foi a instalação da Associação. Neste sentido, Domingos José de Morais Júnior (da Comissão Organizadora) e o médico José Gomes de Resende Júnior (diretor técnico da mesma Comissão), após visitarem um espaço disponibilizado gratuitamente para essa finalidade pela Irmandade de Nossa Senhora da Boa Nova, no largo do Museu de Artilharia, não foram “favoráveis à instalação da APPI naquele espaço, por o considerarem «[…] acanhado de dimensão e com muito difficil serventia, sendo as obras de adaptação, segundo a opinião de um perito, pelo menos de septecentos mil reis […]»”, propondo em alternativa um terreno próximo da capela da mesma Irmandade, propriedade da Câmara Municipal de Lisboa (CML), no qual “«[…] se pode construir, embora com simplicidade, um edifficio em condições mais amplas, por um conto de reis a um conto e duzentos mil […]»”(apud Oliveira, 2015, p. 23)7.
Foi a 10 de maio de 1901 que deu entrada na Câmara um requerimento no qual a APPI solicitava a concessão do terreno municipal com 342m2 situado entre o largo do Museu de Artilharia e da então denominada avenida Marginal Oriental (atual avenida Infante D. Henrique), para nele construir o primeiro lactário da cidade. Após parecer da Direção Geral do Serviço de Obras, na sessão de 10 de outubro de 1901, a Comissão Administrativa, presidida pelo conde d’Ávila, defere o requerimento da APPI (Comissão Administrativa…, 1901, p. 365), sendo a escritura de concessão efetuada a 9 de janeiro de 19028.
Um outro terreno confinante com este, a sul, do Ministério das Obras Públicas, Comércio e Indústria, com uma construção9, foi também doado graciosamente à APPI, com termo de entrega celebrado a 14 de fevereiro de 1902. Estavam assim criadas as condições para dar início à construção das instalações da Associação.
O projeto foi encomendado pela Direção da APPI ao arquiteto Ventura Terra (1866-1919), cuja notoriedade era crescente desde o seu regresso de Paris em 1896, e tinha duas componentes fundamentais: a transformação do edifício pré-existente e a construção de raiz de uma vacaria e dependências associadas. O primeiro, situado nos terrenos cedidos pelo Ministério das Obras Públicas, era “destinado a laboratorio, casa de distribuição de leite, gabinete medico, installação de creadeiras, quartos de pessoal, etc.” (Associação Protectora…, 1902, p. 3-4) e, as novas construções, indispensáveis para o cumprimento dos objetivos associativos, localizavam-se nos terrenos cedidos pelo Município. Os trabalhos foram realizados de acordo com indicações de José Gomes de Rezende Junior e José Evaristo de Moraes Sarmento, “illustres medicos bactereologistas que desde a fundação da sociedade bastante a tem auxiliado com os seus conhecimentos technicos e esclarecida intelligencia” (apud Oliveira 2015, p. 23)10. Submetido a aprovação camarária a 8 de janeiro, teve parecer favorável.
No primeiro relatório da Direção da APPI é referido que o arquiteto lhe entregara prontamente os projetos, os cadernos de encargos e o orçamento aproximado e, ainda, que o mesmo “bizarramente se prestou a levantar o projecto dos edificios e a vigiar a sua construcção, cedendo-nos duas terças partes dos seus honorarios, o que representa um donativo de réis 240$000” (Associação Protectora…, 1903, p. 8).
Após a aprovação do projeto, “procedeu-se á arrematação em hasta publica sendo adjudicadas as obras das construcções novas e das reparações ao constructor sr. Abílio Pereira de Campos” (Associação Protectora…, 1902, p. 4) e, de imediato, começaram os trabalhos sob a fiscalização do arquiteto Ventura Terra.
Da ideia à prática: as transformações necessárias
Devido a diversos imponderáveis a festa de inauguração oficial da sede da APPI, que contou com a presença da Família Real, realizou-se a 22 de novembro de 1903, embora as rações de leite tivessem sido distribuídas pela primeira vez a 30 mulheres, em abril desse ano.
Em 1904, ano em que entrou em funcionamento o Serviço Médico com consultas pediátricas aos bebés e sessões semanais de pesagem, a APPI submeteu à aprovação da CML um novo projeto para a construção de um barracão, destinado a arrecadação, que teve parecer favorável. No ano seguinte, a Associação solicitou a prorrogação da licença de construção, o que foi deferido pela Câmara.
Posteriormente, é solicitada autorização à CML para a colocação de um pedestal no qual assentaria o busto de José Luís de Morais (1860?-1903), concebido pelo escultor António Augusto da Costa Motta (1862-1930). Colocado à entrada do edifício da sede, foi inaugurado em 1906 no âmbito da 3ª Sessão Solene da APPI.
Nos anos seguintes deram entrada na Câmara vários pedidos de autorização para a realização de construções que visavam a melhoria das instalações da Associação. Assim se verificou em 1908 (para uma arrecadação), em 1913 (para um telheiro), e em 1916, neste caso para uma obra de maiores dimensões visto tratar-se de uma vacaria e respetivas dependências11. Todas os requerimentos foram deferidos pelo Município.
Porém, “o Relatório e Contas de 1919/1920 menciona que a entrada em funcionamento do espaço teria de ser adiada, devido a restrições financeiras que não permitiam o grande investimento que constituía a aquisição e manutenção de mais cabeças de gado” (Oliveira, 2015, p. 54). Contudo, verifica-se que no início de 1919 a APPI solicita à CML o deferimento de pequenas alterações ao projeto da vacaria que serão aprovadas.
Como refere Oliveira,
Depois de anos de prosperidade (1910-1918), a APPI começou a sentir a grave crise económica que afectava a Europa. O início de 1920 foi particularmente difícil para a Associação. No Relatório e Contas de 1919-1920, referia-se que «o futuro associativo, que até há pouco se antevia desanuviado, vai ultimamente de ano para ano tornando-se cada vez mais sombrio e cheio de apreensões» (2015, p. 61)12.
Considerações finais
No contexto económico, político e social das duas primeiras décadas do século XX, a APPI teve uma atividade ascendente alcançando relevante prestígio nacional e internacional. O trabalho desenvolvido, iniciado pelo coronel Rodrigo António Aboim Ascensão13, minimizou as dificuldades de centenas de famílias desfavorecidas da capital quanto aos cuidados dos recém-nascidos, à alimentação e higiene na primeira infância. Neste sentido e com estas características, alcançou um duplo sucesso, simultaneamente de apoio social e de aplicação do conhecimento científico, nomeadamente na divulgação de métodos relacionados com a saúde neonatal e infantil.
Os documentos a seguir reproduzidos, do acervo do Arquivo Municipal, permitem acompanhar a articulação da Associação com o Município de Lisboa e visualizar o modo como o arquiteto Ventura Terra e a arquitetura desempenharam neste processo um papel ao serviço de uma causa social, configurando as condições indispensáveis à atividade da Associação. Mas, estes documentos testemunham, ainda que indiretamente, a necessária articulação com outras entidades, nomeadamente o Governo, através do Ministério das Obras Públicas e do relevante apoio régio, bem como a mobilização da sociedade civil e da comunidade médica portuguesa, indispensáveis à concretização dos objetivos da APPI.
Índice das imagens
Figura 1 AML, PT/AMLSB/CMLSBAH/FNAJ/001/0059/023, f. 66.
Figura 2 AML, PT/AMLSB/CMLSBAH/FNAJ/001/0059/023, f. 66V.
Figura 3 AML, PT/AMLSB/CMLSBAH/FNAJ/001/0059/023, f. 67.
Figura 4 AML, PT/AMLSB/CMLSBAH/FNAJ/001/0059/023, f. 67V.
Figura 5 AML, PT/AMLSB/CMLSBAH/FNAJ/001/0059/023, f. 68.
Figura 6 AML, Obra nº 28677, Volume 1, Processo nº 193/1ªREP/PG/1902, p. 1.
Figura 7 AML, Obra nº 28677, Volume 1, Processo nº 193/1ªREP/PG/1902, p. 6.
Figura 8 AML, Obra nº 28677, Volume 1, Processo nº 193/1ªREP/PG/1902, p. 6V.
Figura 9 AML, Obra nº 28677, Volume 1, Processo nº 193/1ªREP/PG/1902, p. 7.
Figura 10 AML, Obra nº 28677, Volume 1, Processo nº 193/1ª REP/PG/1902, p. 2.
Figura 11 AML, Obra nº 28677, Volume 1, Processo nº 193/1ªREP/PG/1902, p. 5.
Figura 12 AML, PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/003/FAN/003083.
Figura 13 AML, Obra nº 28677, Volume 1, Processo nº 193/1ªREP/PG/1902, p. 3.
Figura 14 AML, Obra nº 28677, Volume 1, Processo nº 193/1ªREP/PG/1902, p. 4.
Figura 15 AML, PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/PAG/000334.
Figura 16 AML, Obra nº 28677, Volume 1, Processo nº 4603/1ªREP/PG/1904, p. 1.
Figura 17 AML, Obra nº 28677, Volume 1, Processo nº 4603/1ªREP/PG/1904, p. 2.
Figura 18 AML, Obra nº 28677, Volume 1, Processo nº 4603/1ªREP/PG/1904, p. 3.
Figura 19 AML, Obra nº 28677, Volume 1, Processo nº 2828/1ªREP/PG/1905, p. 1.
Figura 20 AML, Obra nº 28677, Volume 1, Processo nº 2828/1ªREP/PG/1905, p. 2.
Figura 21 AML, Obra 28677, Volume 1, Processo nº 2966/1ªREP/PG/1906, p. 1.
Figura 22 AML, Obra 28677, Volume 1, Processo nº 2966/1ªREP/PG/1906, p. 2.
Figura 23 AML, PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/AND/000522.
Figura 24 AML, Obra nº 28677, Volume 1, Processo nº 3330/1ªREP/PG/1908, p. 1.
Figura 25 AML, Obra nº 28677, Volume 1, Processo nº 3330/1ªREP/PG/1908, p. 2.
Figura 26 AML, Obra nº 28677, Volume 1, Processo nº 3330/1ªREP/PG/1908, p. 3.
Figura 27 AML, Obra nº 28677, Volume 1, Processo nº 3567/1ªREP/PG/1913, p. 1.
Figura 28 AML, Obra nº 28677, Volume 1, Processo nº 3567/1ªREP/PG/1913, p. 2.
Figura 29 AML, Obra nº 28677, Volume 1, Processo nº 3888/1ªREP/PG/1916, p. 1.
Figura 30 AML, Obra nº 28677, Volume 1, Processo nº 3888/1ªREP/PG/1916, p. 4.
Figura 31 AML, Obra nº 28677, Volume 1, Processo nº 3888/1ªREP/PG/1916, p. 2.
Figura 32 AML, Obra nº 28677, Volume 1, Processo nº 3888/1ªREP/PG/1916, p. 7.
Figura 33 AML, Obra nº 28677, Volume 1, Processo nº 615/1ªREP/PG/1919, p. 1.
Figura 34 AML, Obra nº 28677, Volume 1, Processo nº 615/1ªREP/PG/1919, p. 2.