Introdução
A pandemia da covid-19 provocou mudanças agudas no cotidiano das cidades. Tendo em vista a larga duração das quarentenas e as medidas de distanciamento social em geral adotadas por diferentes segmentos sociais, tal como tem ocorrido ao longo da história em situações similares excepcionais, o tecido social foi esfacelado com a perda das referências cotidianas (Barbosa, 2020). Do ponto de vista das sonoridades, foi possível constatar que o esvaziamento das ruas das cidades se traduziu em uma diminuição de variadas fontes. Nesse ambiente sonoro menos presente, brotaram ondas sônicas difusas, as quais ecoaram não só convocando a nossa atenção, mas que também mobilizaram de maneira catártica os atores nos territórios.
Por um lado, foi possível observar, por exemplo, várias ocorrências envolvendo a iniciativa de atores cantando, tocando, dançando e reproduzindo música nos balcões e varandas das urbes em diversas cidades do mundo, que convocavam os atores locais a participarem de interações sonoras. Por outro lado, janelas e varandas se tornaram plataformas de onde disputas, desentendimentos e insatisfações variadas se tornaram sonorizadas, ativando inclusive comportamentos violentos dos moradores confinados1.
Aliás, pode-se dizer que nesse contexto emergiu um conjunto de acontecimentos que passaram a girar em torno de sonoridades que borraram parcialmente as tradicionais fronteiras entre a esfera pública e privada, mas também alteraram provisoriamente o ponto de acesso ao mundo privado dos atores. Nessa direção, Rivera (2020) sugere que durante a pandemia, especialmente quando as “portas se fecharam” - interrompendo os seus fluxos contínuos - muitas das janelas se agigantaram na vida dos atores, inaugurando de certa maneira uma arquitetura e dinâmica social peculiar que passou a gravitar em torno das mesmas.
Nesse contexto, as janelas se (re)configuraram, portanto, como um elemento de comunicação entre espaços públicos e privados, processando um movimento intermediário entre ambos. A obrigatoriedade do confinamento implicou em uma espécie de subversão da hipervalorização histórica dos indivíduos (Sennett, 1974/1988), recuperando parte do sentido de privação que essa noção imprimia na filosofia da Grécia Antiga (Arendt, 1958/2007). Privados de sua existência pública e política nas arenas tradicionais, os atores encontraram nas janelas formas de externalizar temporariamente a sua cidadania com manifestações coletivas que são fundamentalmente sonoras.
Tem-se tido a oportunidade de constatar que vem se produzindo durante a pandemia processos de sensibilização e de construção de relevantes conexões socioculturais e políticas temporárias que se materializam através de “manifestações sonoras presenciais mais distanciadas”, as quais constroem processos de “reterritorialização urbana” com alguma potência (Herschmann & Fernandes, 2014, p. 73). Neste artigo, analisam-se duas tendências que, apesar de aparentemente serem opostas, indicam uma continuidade de expressões acústicas dos espaços públicos sonoros não só como forma de negociar tensões, expor divergências e praticar ações estético-políticas, mas também como maneira de estar com de forma precária (mesmo que os atores sejam obrigados a resguardar certa distância. Constituem-se em intervenções que invadem os espaços, muito além dos ambientes domésticos. É importante destacar que se está compreendendo essas duas tendências como integradas a um extenso e complexo fenômeno sonoro urbano, o qual gera múltiplas interações sociais e possui grande capacidade de mobilização social, especialmente com o agenciamento das tecnologias sonoras de reprodução e produção disponíveis na contemporaneidade.
Assim, as reflexões desenvolvidas neste artigo tomam como referência não só parte da literatura especializada que analisou a trajetória de algumas sociedades em tempos de pandemia e a produzida no âmbito dos estudos do som, mas também o material audiovisual e as narrativas levantadas durante uma pesquisa exploratória realizada na mídia tradicional e nas redes sociais da internet sobre o comportamento e reações dos atores durante as quarentenas da covid-19 que ocorreram em 2020 e 2021 em diversas localidades do globo (com destaque não só para o contexto do Brasil e Estados Unidos da América, como também para os países do continente europeu). Salienta-se que se procurou analisar aqui o duplo fluxo de aproximações e afastamentos entre os atores que - privados em grande medida de sua dinâmica de interações coletivas e cotidianas nas cidades (por conta das medidas sanitárias de distanciamento social recomendadas pelas autoridades durante a pandemia) - encontraram em algumas experiências sonoras de solidariedade e de protesto que ecoaram nos territórios, para a concretização de intercâmbios socioculturais relevantes. Assim, os atores produziram alianças e tensões peculiares e relevantes permitindo que se repense - especialmente da perspectiva dos estudos de som e música - os limites e a porosidade das fronteiras entre as esferas do público e do privado, em particular em contextos marcados por uma certa descontinuidade da vida cotidiana (que era caracterizada por dinâmicas mais presenciais).
Janelas em Consonância
Como é notório, o isolamento social, como principal estratégia de enfrentamento da longa pandemia do coronavírus debilitou psiquicamente boa parte da população do planeta e instigou reações de todo tipo, algumas delas criativas e sonoras, mobilizando os atores a atuarem de forma coordenada em diferentes localidades do globo. Organizaram apresentações coletivas - realizadas em janelas e varandas - que invadiram sonoramente a ambiência do espaço público. Pode-se afirmar que essas manifestações sonoras se constituíram em uma tentativa de alterar o humor dos atores nos locais em que ocorreram2. Assim, para além dos milhões de contaminados, hospitalizados ou mortos, um dos aspectos difíceis de administrar nas quarentenas foi justamente a necessidade de se encarar o distanciamento social, numa rotina penosa e restrita. Vários estudos em curso têm indicado um crescimento exponencial dos casos de crise de depressão e de ansiedade em diversas regiões do planeta: nesse sentido, alguns especialistas comentam que a pandemia da covid-19 está curiosamente gerando como efeito colateral várias outras pandemias, que estão acometendo a humanidade hoje (Lima, 2020). Nessa pri meira parte do artigo se gostaria de assinalar que a “pandemia de solidariedade” foi uma das raras externalidades positivas da epidemia do coronavírus3.
O fato é que, se os ruídos caracterizam a atividade social de diferentes épocas (Attali, 1977/1995), o contexto dessa pandemia tem demonstrado de forma mais evidente que o indivíduo moderno e especialmente o contemporâneo construíram e sedimentaram uma cultura bem ruidosa, da qual são profundamente dependentes (ainda que manifestem por vezes o seu incômodo e descontentamento com essa ambiência acústica). Em outras palavras, vale sublinhar que, nesse contexto de pandemia, os atores estão descobrindo que eles têm também dificuldade em lidar com menos ruídos no seu cotidiano. Se, por um lado, passaram a viver em uma “paisagem sonora” (Schafer, 1969) bem mais silenciosa que produziu efeitos ecológicos sobre o planeta (há vários relatos dos atores que narravam a ampliação da capacidade de escutar mais os sons dos animais e da natureza, mesmo nas cidades); por outro lado, há que se reconhecer também que nem sempre o “sossego” vem produzindo impactos necessariamente positivos sobre psiquismo dos indivíduos, especialmente quando havia um vírus de alta letalidade rondando os atores4.
Na realidade, o que se nota é que a experiência sonora nas cidades é vivida de maneira ambígua. Em muitos dos discursos coletados durante a pandemia, constatou-se que os atores afirmavam sentirem falta dos sons que regularmente vazavam - de forma “esquizofônica”5 - pela cidade. Aliás, salientavam inclusive que se ressentiam da falta da presença do “muzak”6 no cotidiano: de que antes tanto reclamavam, mas a que estavam inteiramente habituados. Em vários depoimentos veiculados nas redes sociais os atores parte do estudo efetuado sublinhavam que, se, por um lado, esses sons os importunavam, por outro lado, possibilitavam que se sentissem parte de uma coletividade pulsante7.
Outro aspecto que saltou aos olhos durante a pesquisa realizada foi o fato de que a música mais do que nunca foi regularmente acionada pelos atores como uma potente “tecnologia do self” (DeNora, 2000, pp. 12-13), como estratégia de gestão dos ânimos em tempos de pandemia. Em outras palavras, a música foi agenciada não só como uma forma de autocuidado, mas também como uma maneira de alterar - nem que fosse apenas em uma condição temporária - o estado de consternação e tristeza. Portanto, foi empregada de forma “astuciosa e tática” (Certeau, 1980/1994, pp. 77-78), como uma maneira de se reconectar precariamente a algumas pessoas, buscando reintegrar um pouco o “tecido social”, o qual de certa maneira foi colapsado pelos longos períodos de quarentena8.
Para muitos atores a experiência do distanciamento ou isolamento social naquele momento foi vivenciada como uma experiência de medo e de perda de importantes referenciais. Só para que se tenha uma noção: ao longo da nossa pesquisa foi possível constatar que na Itália, Espanha, Portugal e Alemanha, em “tempos de lockdown”, a palavra de ordem era “resistir”, tentando manter de alguma forma, ainda que de maneira tênue, os laços com o entorno. Não é à toa que uma composição - que foi reproduzida frequentemente nessas “manifestações dos balcões” - foi a canção popular oriunda do meio trabalhador do século XIX intitulada Bella Ciao, a qual por razões óbvias virou uma espécie de hino dessa “reexistência” dos indivíduos em isolamento. Isso ocorreu não só porque essa música evocava na memória coletiva (Halbwachs, 1950/2013) de diversas sociedades europeias, como também devido ao sucesso recentemente da série Casa de Papel (a qual foi veiculada na plataforma Netflix). No Brasil, esses concertos não ocorreram com tanta frequência como na Europa, mas se pode mencionar como exemplos os “shows na varanda” - de seus prédios na zona sul do Rio de Janeiro - de cantores bastante populares no âmbito nacional, tais como Mumuzinho, Alok e Lulu Santos. Es ses cantores mobilizaram as suas respectivas vizinhanças e foram filmados pelo público e veiculados com grande repercussão nas redes sociais (Família Martinez; 2020, Stories do samba, 2020) e até mesmo em canais de televisão aberta.
Aliás, ficou patente que as músicas que ecoaram nessas manifestações sonoras são em geral aquelas muito conhecidas pela população local - aciona-se uma espécie de repertório mnemônico básico da coletividade -, pois em geral o efeito que se procura produzir na vizinhança é uma dinâmica o mais participativa possível: seja tocando algum instrumento, seja cantando junto ou mesmo dançando com os músicos nas janelas sonoras.
Assim, a tática de se produzir uma condição de “asilo musical” contra o estresse ou de “bolha” - como salientam respectivamente DeNora (2016) e Bull (2015) - pode se constituir em uma estratégia de sobrevivência interessante, que permitiria aos atores se distanciarem um pouco, por exemplo, da avalanche de notícias trágicas ou distópicas que emergem nas redes sociais e na mídia de forma geral. Contudo, a proposta nessas iniciativas musicais coletivas e catárticas segue em outra direção: através delas procura-se promover a reconexão com o outro e entorno, buscando alterar o psiquismo e o estado de espírito não só de quem está diretamente envolvido na iniciativa, mas também os da vizinhança que vai consumir essas performances musicais9 e sonoridades.
Portanto, sublinha-se aqui não só o prazer da reconexão social nesse contexto muito peculiar e bastante delicado, mas também a dimensão política dessas iniciativas mobilizadoras. Nesse sentido, Obici (2008) argumenta de maneira bem fundamentada que a música que ecoa nos espaços urbanos - voluntariamente ou involuntariamente -- acaba por promover também “políticas de som”, pois geram experiências coletivas potentes que podem ganhar múltiplos sentidos e significados, alguns até com sinais contraditórios.
Poder-se-ia destacar ainda outro aspecto dessas manifestações sonoras coletivas em tempos de pandemia: a capacidade desses sons e da música de ressignificar os es paços e os imaginários urbanos10. Assim sendo, ainda tomando como referência essas intervenções sonoras coletivas mais ou menos organizadas, pode-se dizer o seguinte: por um lado, algumas dessas experiências musicais são recebidas como desejáveis e capazes de produzir nos atores um estado momentâneo de ânimo, de espírito coletivo e até de excitação; por outro lado, contraditoriamente (e, muitas vezes, ao mesmo tempo) geraram nostalgia e certa angústia nos envolvidos (pois fazia com que se recordassem como era o seu cotidiano antes da pandemia). Vale recordar também que o medo foi amplificado midiaticamente neste contexto de isolamento. Assim, durante essa crise sanitária mundial, a sensação que os atores tiveram foi a de que - mais do que nunca -- as narrativas e os sons veiculados na grande mídia e nas redes sociais em geral atua- lizam diariamente um imaginário de incertezas e de insegurança, reiterando a sensação de viver na “cidade do medo”, na qual o outro representa um enorme risco no dia a dia. Ao mesmo tempo, ainda que de maneira pontual, a organização destas iniciativas sonoras com as vizinhanças também sensibilizou e mobilizou os atores, ressignificando os espaços, gerando experiências coletivas lúdicas que construíram “territorialidades sônico-musicais” (Herschmann & Fernandes, 2014, p. 13), as quais promoveram, ainda que precariamente, a reintegração de fragmentos do tecido social que foi fragilizado pelas vivências de quarentenas consecutivas.
Janelas em Dissonância
Se, por um lado, o vazamento sonoro a partir de janelas e varandas tem um enorme potencial de produzir adesões entre indivíduos distanciados pela pandemia, por ou tro, alguns destes vazamentos acabaram acirrando tensões e rupturas sociais. Diversas publicações têm apontado para o longo percurso de embates em torno das sonoridades das cidades, desde pelo menos o século XIX (Attali, 1977/1995). Os sons das vizinhanças ou mesmo o ruído das ruas, do trânsito e da movimentação constante de pessoas aglomeradas são interpretados muitas vezes como elementos de distúrbio nas cidades, produzindo insatisfações, enfrentamentos e mobilizações do poder público para minimizar o vazamento de sons entre e para as residências.
Em um interessante estudo sobre os embates relativos à sonoridade em meados do século XIX, Picker (2003) observa que o aumento do som das cidades produzia fortes reações de intelectuais e artistas cujo trabalho intelectual era maculado pelos sons invasivos das ruas. Aliás, em 1864, o deputado britânico Michael T. Bass foi um dos primeiros políticos que propuseram uma lei urbana com o objetivo de preservar a paz e a tranquilidade das residências da classe média londrina das barulhentas atividades de pregoeiros, carroças, realejos e músicos de rua (Bass, 1864). Na ocasião, esse parlamentar recebeu diversas cartas de apoio, publicadas no mesmo ano no livro Street Music in the Metropo- lis (Música de Rua na Metrópole), com depoimentos de moradores de regiões de médio poder aquisitivo, intelectuais e enfermos que se dizem vitimados com a “tortura” dos insuportáveis sons das ruas (Bass, 1864, p. 13). O debate envolvendo esse parlamentar e alguns cidadãos deixa transparecer de modo muito evidente que os incômodos sonoros que atravessaram os discursos do século XIX estão quase sempre relacionados com assimetrias sociais. Nas cartas direcionadas a Bass, não raro são mencionados imigrantes e desocupados que circulam livremente pela cidade importunando o sossego alheio. O projeto de lei e o clamor de tais cidadãos é pela aplicação de regulamentos que permitiriam uma ação enérgica do aparato policial na cidade. Porém, nem sempre essa assimetria parece tão absoluta, como em um caso relatado nesse livro, no qual é mencionado que uma banda alemã foi retirada da rua por policiais após a reclamação de um morador. Curiosamente, em outro momento, esse mesmo morador recebeu esses artistas na varanda de sua casa onde tocaram “por mais duas horas” (Bass, 1864, p. 17). Essa manobra operada por um membro da vizinhança demonstra que a aplicação de interdições e sanções tem limites sociais relacionados às relações de poder (Trotta, 2020). A discussão não está circunscrita aos países europeus, inclusive existem movimentos semelhantes do outro lado do Atlântico. Bielleto (2018) assinala uma série de regulações na virada do século XIX para o XX que visava disciplinar o espaço acústico urbano na Cidade do México, criminalizando determinados repertórios musicais e práticas sonoras não condizentes com certos ideais civilizatórios. Desta forma, multas e prisões foram concretizadas por inspetores urbanos para coibir ruídos e comportamentos julgados inadequados. Neste sentido, Bielleto (2018) faz o seguinte comentário:
como ilustram os registros, foi a apreciação subjetiva dos inspetores o que serviu para determinar quando as manifestações das pessoas tinham ultrapassado os limites do sonoramente aceitável, ainda que frequentemente isso também implicou em considerar o que consideravam inadmissível em termos estéticos, corporais e morais. (p. 164)
O que se busca evidenciar através desses exemplos é que tais desavenças sonoras estão atravessadas pelos interesses e posicionamentos sociais dos atores: é a partir dessas perspectivas que em geral são avaliados e sentenciados os vazamentos sonoros. A partir do início do século XX, o problema dos vazamentos se amplifica com a crescente popularização dos aparelhos de reprodução sonora, que gradativamente passam a fazer parte do som das residências. Bijstervelt (2008) assinala que nesse momento os governos de várias cidades da Europa se mobilizaram para buscar legislações capazes de diminuir o “problema dos vizinhos”. Problemas que, segundo essa autora, esbarram no tênue limite ético que advogava aos indivíduos o seu direito ao sossego na privacidade, em uma articulação que conjuga intimidade e propriedade garantidas pelo código legal que em geral rege os estados liberais. Novamente nesses embates, a questão da privacidade versus publicidade opera como elemento importante das negociações sonoras, sendo vetor de questionamentos e, muitas vezes, de tensões.
Ao refletir sobre as intrusões sonoras em residências, Dominguez Ruiz (2015) elabora a noção de “intimidade acústica”, definida como “uma sensação de segurança experimentada em um espaço livre de intrusões sonoras” (p. 119). Essa sensação é capaz de produzir uma espécie de conexão como o íntimo, conquistada pelo controle das condições acústicas do ambiente, especialmente no âmbito doméstico. Vale sublinhar a esta altura que a escuta de sons invasivos forçados, inversamente, produz um contato direto com o outro. É compreendida aqui como uma manifestação de poder e, portanto, como um ato violento, “que nos obriga a escutar o que não queremos, e cuja capacidade perturbadora acarreta sérios custos à saúde pública das cidades” (Dominguez Ruiz, 2015, p. 129).
Aliás, esse aspecto intrusivo e violento aparece de modo evidente nos embates sonoros processados durante o confinamento social no Brasil. Em um contexto de intensa polarização política, permeada pela atitude bélica e negacionista do governo de Bolsonaro, a pandemia da covid-19 tem sido vivenciada como um acontecimento carac terizado por tensões e divergências políticas. Impactados por declarações e posições contraditórias das diferentes esferas de poder (municipal, estadual e federal), atores de diferentes localidades converteram os seus espaços de confinamento em campos de luta política e ideológica. Às sensações de impossibilidade e restrição próprias do momento, soma-se um sentimento de revolta diante das atitudes e declarações eticamente agressivas pronunciadas pela cúpula desse governo. Como resultado, protestos sonoros passaram a ser (re)produzidos nas janelas e varandas, especialmente através de gritos e batidas em panelas, os quais vêm se constituindo em uma forma de a população ex ternalizar a sua desaprovação em relação às políticas que vêm sendo adotadas no país.
Especialmente o som das panelas - por sua capacidade de projeção, grau de estridência e frequência - tornaram-se, nas primeiras semanas da pandemia, um acompanhamento sonoro diário das grandes cidades brasileiras. Amplificadas por cobertura jornalística em cadeia nacional (que dedicava longos minutos a exibir registros de pane- laços em várias cidades feitos a partir das janelas com aparelhos celulares), tais sonoridades produzidas por segmentos expressivos da sociedade brasileira evidenciaram uma enorme insatisfação e consternação com as “intensas crises” - no âmbito político, econômico, social, ecológico e institucional - que o governo Bolsonaro vinha contribuindo de forma significativa para “rotinizar” ao longo de seu mandato. Na impossibilidade de concretizar algum tipo de manifestação política a partir das ocupações de territórios urbanos, parcelas da população das cidades agenciaram os sons nas janelas, buscando anunciar dissensos e tensões nessa arena pública precária. Vale destacar que tais táticas astuciosas de expressão já tinham sido empregadas na história recente do país, com protestos intensos contra a suposta corrupção e as políticas públicas implementadas pela Presidente Roussef, durante os anos de 2015 e 2016.
Em ambos os momentos, a percussão das panelas enfrentou também as respostas de admiradores desses respectivos políticos (e dos seus governos), que pretendiam, através de slogans e gritos (e, eventualmente, até através do agenciamento de músicas), expressar uma posição favorável aos poderes instituídos. Tanto em 2015 quanto em 2020 - em uma espécie de continuum sonoro -, as janelas se constituíram em loci de externalização de apoios e insatisfações, espaços relativamente seguros e privados de manifestação de opiniões e enfrentamentos públicos, publicizados e amparados pelo som estridente da percussão do alumínio e do aço inoxidável.
É evidente que a sonorização é inerente a praticamente todos os protestos políticos: acompanhados de slogans, refrões e sons variados, constata-se com certa facilidade que as manifestações urbanas tradicionais quase sempre são também ocupações sonoras. Recentemente, com a onda de polarizações políticas em diversas partes do planeta, som e música têm sido (re)agenciadas pelos atores como elementos ativos em protestos de rua. Poderia se mencionar a mobilização antirracista deflagrada pelo brutal assassinato de George Floyd nos Estados Unidos (Scott, 2020) ou as seguidas mobilizações contra a permanência da repressão política e o perfil neoliberal e ditatorial no Chile contemporâneo (Spencer Espinosa, 2020). Há inúmeros casos e não é difícil localizar uma robusta literatura que correlaciona som e música a manifestações e protestos políticos, em diversas latitudes e em períodos históricos diversos.
Entretanto, o que se procura destacar aqui é que o corpo vibracional de tais protestos de 2020 - realizados com certo distanciamento - se complementam e interagem com a ocupação online (em redes da web e plataforma variadas) e física de corpos, cartazes, carros de som, e, em geral, com um conjunto de recursos empregados em passeatas e manifestações políticas. Enfatiza-se aqui a materialidade física dos agrupamentos humanos engajados em torno de uma ideia que é somada, reprocessada e intensificada pela força acústica da sonoridade produzida por essa massa aglomerada. Não à toa. Quanto maior a quantidade de pessoas, maior a relevância simbólica e eficácia política dos protestos, que caminham lado a lado com o aumento também da energia vibratória e do volume sonoro de tais eventos. No conjunto de eventos sonoros que se encontra em discussão neste artigo, a materialidade física se dissipa, ficando impossibilitada de aparecer enquanto presença política. Nesse sentido, a materialidade sônica e vibracional do embate entre vizinhos confinados em suas residências no Brasil adquire relevância e possibilita a construção de uma “ambiência” (Thibaud, 2015) específica, caracterizada por uma intensa dramaticidade. Diferente dos outros casos de ocupação e enfrentamentos sonoros e políticos, os protestos das janelas em tempos de pandemia são ocorrências fundamentalmente acústicas, as quais colocam em evidência a potência sociopolítica dos sons e das músicas como elementos que alicerçam de forma significativa variadas interações humanas.
Sonoridades em Tempos de Pandemia
Como foi possível se atestar aqui, as metáforas da “consonância” e da “dissonância” podem ser úteis para sublinhar que os movimentos de aproximações e afastamentos sonoros não são excludentes, inclusive muitas vezes ocorrem de forma concomitan te em uma localidade. Nesse sentido, o significado técnico de tais termos no vocabulário musical apontam para um jogo contínuo de vibrações coincidentes e divergentes que caracterizam o que é compreendido como sendo uma linguagem musical.
Vale salientar que a sobreposição dos picos de ondas sonoras reforçando determinados harmônicos (consonância) e os batimentos de picos próximos que se anulam e entram em disputa (dissonância) são movimentos que regularmente atravessam as variadas práticas musicais em todo o globo. As dimensões dos ruídos (sons de altura indeterminada ou distorcidos por seu volume) e amplitude das ondas (volume) - como aspectos da reverberação do som nos espaços físicos e suas características timbrísticas, rítmicas e harmônicas - fornecem uma complexidade que torna difícil ou simplista a classificação de qualquer experiência sônica como consonante ou dissonante. Por conseguinte, buscando avançar além desta metáfora, propõe-se a seguinte ideia: os acionamentos subjetivos de interpretações sobre a pertinência e mesmo os significados e as modulações ideológicas do som e música formam um emaranhado de fluxos, os quais povoam a experiência sensorial privada vivida pelos atores nas cidades, especialmente em tempos de pandemia.
Encerram-se essas reflexões reconhecendo que não se realizou aqui um balanço exaustivo do fenômeno acústico e social da experiência das janelas sonoras durante a pandemia da covid-19. Como já foi mencionado anteriormente, o que se buscou analisar neste artigo foi o duplo fluxo de aproximações e afastamentos entre os atores (que foram temporariamente privados de sua existência coletiva nas cidades) e que foi mediado de certa maneira pela experiência sonora. Nesse contexto de crise menos ruidoso, sons e músicas adquirem mais peso e presença, afetando mais intensamente os modos de estar e viver coletivamente dos atores. Tendo em vista a impossibilidade de construir um espaço público sonorizado de maneira mais convencional, os habitantes da urbe viram-se forçados a estabelecer elos sociocomunicacionais com seu entorno através de sons emitidos especialmente de seus respectivos lares.