O envelhecimento da população, o aumento do número de doenças crónicas, a acessibilidade aos cuidados de saúde e a própria evolução científica têm contribuído para a complexidade dos esquemas de medicação e para a polimedicação. Esta problemática pode levantar mui- tos dilemas e obstáculos à prática clínica.
Englobando a seleção, prescrição e monitorização, a gestão da medicação é um processo fundamental que se deve aliar à segurança, de forma a evitar, prevenir ou corrigir incidentes que podem daí resultar.
Não raras vezes, observamos doentes que não são portadores da sua terapêutica crónica; outros levam à consulta apenas a medicação em falta; alguns fazem-se acompanhar somente dos fármacos prescritos pelo clínico/especialidade em causa; outros referem não fazer a medicação (embora os registos eletrónicos das plataformas de prescrição nem sempre sejam concordantes com o que afirmam). Nestas incongruências e discrepâncias, os utentes “saltam” entre uns profissionais e outros, tendem a adotar a posição mais confortável para eles próprios, continuando não portadores do guia de medicação prolongada atualizado. Outra questão prende-se com a medicação duplicada, quando apresentam o mesmo medicamento de farmacêuticas diferentes ou a mesma medicação prescrita em consultas diferentes. A polimedicação pode ser perigosa para a saúde dos doentes, sobretudo pelos efeitos adversos, sobredosagem, interações medicamentosas ou potenciação de reações adversas.
Assim, torna-se essencial a reconciliação terapêutica, um conceito que, segundo a Direção Geral da Saúde (DGS), consiste na análise da medicação do doente sempre que ocorrem alterações na mesma, de forma a evitar omissões, duplicações ou doses inadequadas, com o intuito de promover a adesão à terapêutica, diminuir riscos e incidentes relacionados com a medicação.1
Este conceito surgiu nos EUA em 2002 e mais tarde foi considerado uma atividade indispensável para melhorar a segurança dos doentes, pela Joint Comission.2,3 Atualmente, outras organizações internacionais, como a Organização Mundial da Saúde (OMS) e o Institute for Healthcare Improvement (IHI), têm unido esforços e incentivado a implementação do processo de reconciliação terapêutica para melhorar a segurança do doente.4
São vários os intervenientes nesta problemática (médicos, farmacêuticos, enfermeiros, familiares, amigos ou até mesmo ervanárias), o que reforça a necessidade de este ser um processo multidisciplinar, dinâmico, contínuo e centrado no doente.5 A responsabilidade deve ser partilhada entre os profissionais de saúde (médicos, enfermeiros, farmacêuticos, outros profissionais de saúde), em colaboração com o doente/cuidador que apre- senta também autonomia neste processo.6
Segundo a DGS, a reconciliação terapêutica divide-se em 3 fases, todas elas essenciais:
Recolha da Lista de Medicação do Doente: consiste na elaboração da lista completa da medicação com recurso a, pelo menos, 2 fontes de informação (registos informatizados, informação verbal transmitida pelo doente, familiares/cuidadores, lista entregue pelo doente, informação de lares, notas clínicas ou outros), devendo conter medicamentos não sujeitos a receita médica, produtos naturais, suplementos alimentares, entre outros;
Comparação da Lista de Medicação do Doente com a Medicação Prescrita na Transição: consiste na identificação de discrepâncias entre as 2 listas, forjando a integração da reconciliação da medicação nos processos clínicos e evitando o uso de abreviaturas;
Correção das Discrepâncias Identificadas: visa a correção das discrepâncias que podem ser intencionais ou não intencionais (omissão, duplicação, dose, entre outros), implicando o contacto imediato com o prescritor se a discrepância for urgente.
O principal objetivo da reconciliação terapêutica consiste em aumentar a segurança e diminuir os riscos associados à medicação, sobretudo na transição de cuidados, como a admissão e alta hospitalar e na transferência intra/inter-hospitalar de instituições prestadoras de cuidados de saúde. Vários estudos têm demonstrado que é na transição de cuidados que a reconciliação terapêutica tem especial relevância. Alguns revelam que mais de 50% dos erros da medicação ocorrem na transição de cuidados, sendo que 1/3 desses erros podem causar danos ao doente.7-9
Os ganhos em saúde associados a este processo são vários e reforçam a importância da sua implementação a nível das diferentes entidades prestadores de cuidados. A nível dos Cuidados de Saúde Primários, seria importante a criação de uma consulta pós-alta hospitalar, com integração da informação contida na “nota de alta” e das alterações terapêuticas realizadas. Esta oportunidade de reavaliação do doente deve ser integrada e adaptada aos recursos existentes, às listas de utentes, à unidade de saúde e à própria comunidade. A nível dos Cuidados de Saúde Secundários, este processo deverá ter maior impacto no momento da admissão hospitalar que resulte em internamento.
De realçar ainda o tempo de consulta e a sobrecarga de trabalho como possíveis potenciadores de erros. Esta problemática reforça, assim, a importância de reajustar os tempos de consulta, por forma a acompanhar a evolução das necessidades atuais, da complexidade e multiplicidade de patologias/esquemas terapêuticos. Com o aumento desta complexidade é premente a formação diferenciada e aquisição de competências específicas pelos profissionais intervenientes neste processo.
Os sistemas de informação atuais necessitam de atualizações que permitam a integração da informação clínica numa plataforma comum e alcançável pelos diferentes profissionais de saúde, que inclua a validação da medicação, com alertas para possíveis medicamentos potencialmente inadequados (incluindo alertas para interações medicamentosas e hipersensibilidade a fármacos - daquele doente - de forma individualizada) e com atualização automática do plano terapêutico. Não obstante, o guia de medicação prolongada em papel parece uma boa alternativa de interligação entre as múltiplas consultas.
Assim, a reconciliação terapêutica carece de atenção por parte dos profissionais de saúde e da implementação de medidas padronizadas pelas diversas instituições, visando a melhoria contínua de cuidados e promoção da prevenção quaternária. A reflexão partilhada sobre a reconciliação terapêutica proporcionará sempre um ganho de tempo em prol do benefício do doente, dos próprios profissionais de saúde e da qualidade em saúde.