“A tecnologia digital já mudou o mundo; agora, está a mudar a infância”.1
Brincar é a forma mais natural e espontânea de a criança se expressar.
Brincar é de tão grande importância para o desenvolvimento infantil que consta, enquanto Direito, na Convenção sobre os Direitos da Criança.2) Mas o paradigma das brincadeiras infantis não é estanque. As brincadeiras dos nossos avós eram diferentes das dos nossos pais e as dos nossos pais diferentes das nossas. E hoje em dia, qual é o paradigma das brincadeiras infantis?
O boom tecnológico e digital a que o Mundo assiste desde a entrada no século XXI não tem precedentes. Poderá, quiçá, ser equiparado à Revolução Industrial, em livros de História futuros, se estes ainda não tiverem sido definitivamente substituídos por um dispositivo eletrónico.
As crianças nunca poderiam ser excluídas deste novo mundo. E como tal, seria de esperar que incorporassem estas novas ferramentas nas suas brincadeiras. As atuais brincadeiras e ocupação dos tempos livres incluem cada vez mais ecrãs: durante a refeição, na sala de espera, na creche, no intervalo da escola.
A dúvida premente que tem vindo a afligir os pais e cuidadores das nossas crianças é: será demasiado?
A publicação “Situação Mundial da Infância 2017: as crianças no mundo digital”, apresenta o primeiro olhar abrangente da UNICEF sobre as diferentes formas como a tecnologia digital está a afetar a vida das crianças e as suas perspetivas de futuro, identificando não só oportunidades e benefícios, mas também potenciais perigos e malefícios.1
Estima-se que, em todo o mundo, um em cada três utilizadores da Internet seja uma criança e, ainda assim, um terço das crianças a nível mundial não estão online.1 Em Portugal, estima-se que 90% das crianças dos 0 aos 18 anos utilize novas tecnologias e que 69% tenha uma utilização diária superior a 1 hora e 30 minutos.3
Porém, e apesar desta forte presença infantil no meio digital, pouco tem sido feito para que os mais novos sejam protegidos dos seus perigos, de modo a tornar o seu acesso a conteúdos online mais seguro.1
O frenético desenvolvimento digital e tecnológico que vivemos nos últimos anos tem transformado não só os estilos de vida como também os locais laborais dos progenitores.3 Saíram do campo para o escritório e do escritório para casa. Também as crianças alteraram os seus locais preferenciais para brincar. Do campo, do quintal, da rua, do ar livre, passaram para atividades confinadas ao interior das habitações, espaços exíguos onde os dispositivos eletrónicos e ecrãs estão ao seu dispor.4
Quando é que poderemos olhar para a tecnologia como um potencial problema para a criança?
Está descrito por vários autores que a utilização excessiva de tecnologias condiciona um maior sedentarismo, excesso de peso e obesidade.5,6 Por outro lado, o aumento da atividade física não compensa o efeito nefasto do tempo de ecrã excessivo.7 No campo do desenvolvimento cognitivo e intelectual, o aumento do número de horas despendido com ecrãs - smartphones, tablets, computadores e televisão -, tem mostrado reduzir a qualidade das interações entre pais e filhos, bem como a aprendizagem de habilidades sociais, cognitivas e emocionais por parte das crianças.6 A interação social e física com as outras pessoas e com o meio envolvente vai sendo substituída silenciosamente pela interação máquina-indivíduo, prejudicando o desenvolvimento da criatividade, da linguagem e das relações.8
Uma exposição diária a ecrãs superior a 3 horas aumenta o risco de perturbações de sono e a exposição precoce (antes dos 2 anos de idade) pode aumentar o risco de problemas de atenção.9 Já as brincadeiras interpares promovem uma aprendizagem ativa, baseada na aquisição de competências de interação social e emocional.9
Assim sendo, em que sentido nós, profissionais de saúde, podemos atuar para evitar uma mudança tão brusca de paradigma?
A informação aos cuidadores das nossas crianças é essencial.
Em 2016 a American Academy of Pediatrics atualizou as guidelines relativas ao tempo diário de uso de ecrãs, desaconselhando o seu uso para crianças com menos de 24 meses de idade e limitando o seu uso a 1 hora por dia para as crianças com idades entre os 2 e os 5 anos, idealmente acompanhados pelos pais ou cuidadores.10 A Organização Mundial da Saúde publicou, em 2019, orientações em relação ao tempo que idealmente deverá ser dedicado à prática de atividade física, uso de ecrãs e número de horas de sono para crianças com idade inferior a 5 anos, desaconselhando o uso de ecrãs a crianças com idade inferior a 1 ano e restringindo a uma hora diária, no máximo, para as maiores de 2 anos.11)
Seria, então razoável olharmos para a tecnologia como um entrave ao desenvolvimento das nossas crianças?
O problema não será a tecnologia em si, mas sim o desequilíbrio na utilização da mesma.
As crianças devem ter acesso primariamente a atividades que lhes permitam desenvolver a criatividade, o raciocínio e as competências sociais. Só assim é que, posteriormente, poderão utilizar livremente os dispositivos eletrónicos sem que se tornem dependentes dos mesmos.
A UNICEF reconhece também potenciais benefícios do acesso à tecnologia, nomeadamente: aumentar o acesso das crianças à informação, desenvolver competências necessárias ao mercado de trabalho digital e proporcionar-lhes uma plataforma para se conectarem com o mundo e partilharem as suas ideias.2
Embora as opiniões não sejam completamente consensuais sobre o impacto positivo ou negativo no desenvolvimento das crianças, as tecnologias acabam por estar naturalmente presentes nas suas vidas e nas suas brincadeiras,4 influenciando o seu desenvolvimento.6 O ideal será sempre a criação de um equilíbrio entre a utilização de dispositivos eletrónicos e as brincadeiras tradicionais.
Tais resultados só poderão ser atingidos com a íntima colaboração do médico assistente com as famílias e encarregados de educação, professores e educadores e, naturalmente, com a própria criança.
O Médico de Família está numa posição privilegiada ao ser, por excelência, um prestador de cuidados longitudinais, continuados e envolvendo toda a família, desempenhando um papel fundamental na abordagem do abuso de tecnologias nas crianças e jovens. Em cada consulta de Saúde Infantil e Juvenil, os pais ou cuidadores, as crianças e os adolescentes devem ser sistematicamente esclarecidos acerca dos limites de uso diário dos dispositivos eletrónicos. Os hábitos de vida saudável deverão ser incutidos, com a inclusão de atividades ao ar livre partilhadas em família ou com outras crianças, sendo alternativas promotoras do desenvolvimento cognitivo, da linguagem e raciocínio, da motricidade e locomoção e aquisição de importantes competências sociais e humanas.
Vivemos na era tecnológica e o papel influenciador que ela tem na vida de adultos e crianças é inegável. Não obstante, como médicos cabe-nos a tarefa de fazermos a diferença diariamente na vida dos pais e das crianças, contribuindo para um equilíbrio conducente a um desenvolvimento saudável.