Introdução
A neuropatia periférica é uma entidade que engloba diversos diagnósticos diferenciais, nem sempre fáceis de descortinar. No entanto, faz parte das competências do médico de família saber qual a melhor forma de gerir as queixas inespecíficas dos utentes, com recurso às informações clínicas recolhidas. Neste contexto, um dos diagnósticos diferenciais a ter em conta é a meralgia parestésica, que resulta de uma lesão do nervo femoral cutâneo lateral (L2-L3). A lesão deste nervo pode ser mecânica, por exemplo, pelo uso de roupa justa, gravidez, obesidade, cinto de viaturas automóveis, ou pode ser iatrogénica, como resultado de intervenções cirúrgicas.1-7 Quanto aos fatores de risco identificados elencam-se os seguintes: diabetes mellitus, obesidade e idade avançada.3,7,8 Geralmente, a forma de apresentação inicial é dor e parestesia na região cutâneo lateral da coxa, sem alterações do exame neurológico, nomeadamente défices motores.3 O doente refere alívio da dor quando se senta, e agravamento desta com a marcha.2 O diagnóstico da meralgia parestésica é clínico (dor e parestesias unilaterais em localização característica, e alterações sensitivas ao exame objetivo) e sustentado por eletromiografia.9,10 Embora os sintomas possam ter resolução espontânea, pode ser necessário intervir. Nestas situações o tratamento pode variar desde uma abordagem mais conservadora com recurso à prescrição de anti-inflamatórios não esteroides e prescrição de fisioterapia, a uma mais invasiva, com recurso a bloqueios nervosos com injeção de corticosteroides ou anestesia local, ou mesmo cirurgia, como a neurectomia e descompressão nervosa. A abordagem não farmacológica, como o repouso, perda ponderal e evicção do uso de roupa justa, é muito importante.2,7,9,11-13 Os autores, com a descrição deste caso clínico, pretendem alertar para uma patologia frequentemente subdiagnosticada nos cuidados de saúde primários.
Caso Clínico
Mulher de 66 anos, doméstica, com antecedentes pessoais de excesso ponderal, hipertensão arterial, dislipidemia, bócio eutiroideu, síndrome do túnel cárpico bilateral e síndrome depressivo. Estava medicada com losartan 50 mg, atorvastatina 20 mg, sertralina 100 mg, referindo adesão terapêutica. Negava hábitos tabágicos, alcoólicos ou consumo de drogas, bem como a prática de exercício regular. Desde 2010, que recorria frequentemente a consultas dos cuidados de saúde primários e secundários por queixas álgicas em ambas as coxas que irradiavam aos joelhos. Referia também parestesias e disestesias, com sensação de queimadura. Em 2016 realizou tomografia computorizada lombar que demonstrou “...uma protrusão posterior circunferencial L2-L4 com contacto dos respetivos trajetos radiculares, e acentuada protrusão do disco L4-L5, com provável compromisso da raiz L4 e sofrimento radicular à direita”. Em 2018, pelas mesmas queixas, foi requisitada uma eletromiografia dos membros inferiores que não demonstrou alterações de relevo. As queixas foram sempre interpretadas como derivadas de radiculopatias. Chegou a ter agendamento de consulta hospitalar de ortopedia, mas faltou. Durante este espaço temporal de mais de 10 anos, foi sendo irregularmente medicada com diferentes analgésicos, com pouco alívio álgico. Em setembro de 2020, recorreu a consulta de intersubstituição nos cuidados de saúde primários por agravamento progressivo das queixas nos últimos 4 meses. Mencionava que a dor inicialmente se manifestava como uma sensação de ardor e queimadura na coxa direita, com posterior alodínia. Não apresentava outras queixas. Ao exame objetivo apresentava hipoestesia na região cutâneo lateral da coxa direita, com alteração da sensibilidade, que descrevia como um “choque”, sem défices motores nem de reflexia. Foi solicitado novo estudo eletromiográfico dos membros inferiores que demonstrava "ausência de potencial sensitivo registável em relação ao nervo femorocutâneo, bilateralmente, compatível com compromisso do mesmo nervo, provavelmente ao nível da espinha ilíaca ântero-superior e em congruência com clínica de "meralgia parestésica bilateral.” Foi instituída como primeira abordagem terapêutica farmacológica, com necessidade de ajustes frequentes, bem como fornecidas orientações não farmacológicas. À data a doente está sob pregabalina 100 mg (2x/dia) e amitriptilina 10 mg, com controlo sintomático.
Discussão
A meralgia parestésica é uma das mononeuropatias mais comuns do membro inferior, sendo mais prevalente do que se pensava14 provavelmente por ser frequentemente diagnosticada como uma radiculopatia. Porém, através de uma adequada história clínica e rigoroso exame objetivo é possível fazer o diagnóstico diferencial entre estas duas entidades.7,15 Embora nenhum sintoma motor esteja associado a esta condição clínica, as disfunções sensoriais são potencialmente debilitantes para os doentes. Como tal, é fundamental que o médico de família consiga estabelecer os diagnósticos diferenciais de neuropatia periférica, para que esta entidade clínica possa ser diagnosticada de forma atempada. Só desta forma é que se poderá instituir a escalada terapêutica de forma adequada, e, consequentemente, diminuir o sofrimento destes doentes. Apesar de não ter sido possível aferir uma possível relação, é provável que o contexto laboral da utente tenha tido algum impacto no desenvolvimento deste quadro. Este caso clínico demonstra a necessidade de o médico de família ter sempre um espírito crítico, curioso e inquieto. Foram estas características, que neste caso clínico, permitiram estabelecer o diagnóstico, propor um tratamento, e, consequentemente, possibilitar uma melhor qualidade de vida à doente.