Introdução
A doença de Behçet (DB) afeta cerca de 2,5 pessoas em cada 100 000 habitantes em Portugal. (1 Não é, por isso, uma patologia frequente na realidade da Medicina Geral e Familiar. Uma vez que se trata de uma patologia sistémica, pode apresentar manifestações clínicas diversas. (2-4 Atendendo aos aspetos previamente referidos e ao facto de o Médico de Família ser, muitas vezes, o primeiro contacto do doente com os serviços de saúde, é necessário que este esteja familiarizado com a doença e capacitado para a diagnosticar, iniciar tratamento adequado e referenciar à especialidade.
Caso Clínico
Uma mulher de 37 anos recorreu à consulta de situação aguda. A sua história obstétrica era composta por 4 gestas e 3 paras, salientando-se um aborto espontâneo no primeiro trimestre. Recorreu por noção de tumefação cervical dolorosa, odinofagia, tosse seca e febre, desde há 4 dias. A orofaringe encontrava-se eritematosa. Objetivaram-se três adenopatias cervicais posteriores esquerdas infracentimétricas, dolorosas ao toque. O teste rápido de deteção de antigénio COVID-19 foi negativo. Desta forma, foi assumido quadro de síndrome mononucleósido, tendo sido prescrito tratamento sintomático com paracetamol 1000 mg e ibuprofeno 600 mg. Dois dias depois, a doente regressou a nova consulta por manutenção das queixas e aparecimento de várias lesões ulceradas na cavidade oral e uma lesão ulcerada na vulva, ambas dolorosas. Foi possível apurar história de artralgias de ritmo inflamatório de longa data, localizadas sobretudo aos joelhos, punhos e tornozelos, de ritmo infamatório. Constatou-se também que a estomatite aftosa apresentava caráter recorrente, há pelo menos 4 anos. Quando confrontada com a possibilidade diagnóstica de DB a doente referiu que tinha um primo em segundo grau com a doença (Fig. 1). Ao exame objetivo, observaram-se duas úlceras orais localizadas no lábio inferior e uma úlcera localizada junto ao freio da língua, no pavimento da cavidade oral (Figs. 2 e 3). As lesões apresentavam um halo eritematoso caraterístico, estavam cobertas por fibrina e possuíam cerca de 1 cm de diâmetro.
Na região interna do lábio esquerdo, junto à comissura labial posterior, observou-se uma úlcera genital de bordos regulares eritematosos e com profundidade considerável, com cerca de 3 cm de diâmetro (Fig. 4). O fundo da úlcera encontrava-se parcialmente coberto por uma pseudomembrana de fibrina. Foi prescrito acetato de fluocinolona 0,25 mg/g tópico. Para as úlceras orais foi prescrito budesonido suspensão pulverizada 32 mcg/dose e sucralfato 1000 mg/5 mL. Foram pedidos também exames complementares adequados ao contexto clínico.
A doente regressou novamente para ser reavaliada e mostrar os exames requisitados. Constatamos francas melhorias das queixas álgicas associadas às úlceras e uma diminuição do seu tamanho, com a terapêutica instituída. A doente apresentava uma velocidade de sedimentação de 116 mm/h e uma proteína C-reativa de 7,27 mg/dL. Nesse momento, foi realizado pedido de consulta de Reumatologia Hospitalar e iniciou-se tratamento com colchicina 1 mg, uma vez por dia. Por recorrência das úlceras orais e pelo agravamento das queixas articulares dos tornozelos, a doente recorreu a nova consulta um mês depois. Apurou-se que as lesões ulceradas anteriores tinham resolvido com cicatrização fibrosa (Fig. 5). Requisitou-se radiografia dos tornozelos, enquanto aguardava chamada para consulta de Reumatologia.
Discussão
A DB é uma doença subdiagnosticada. Desde o início da sintomatologia, a doença demora cerca de 5,3 anos a ser diagnosticada. 5 Este facto pode revelar um relativo desconhecimento da doença por parte dos clínicos, que é explicado pela raridade da mesma e pouca frequência na prática do dia-a-dia. (2 Por outro lado, trata-se de uma condição extremamente complexa, que pode apresentar manifestações muito díspares, sendo facilmente confundida com outras patologias. O próprio curso surto-remissão caraterístico da doença frequentemente impede que, a um dado momento, estejam reunidos todos os critérios diagnósticos necessários e, por outro lado, pode contribuir para a desvalorização das queixas por parte do doente, tal como evidenciado no caso reportado, o que retarda a procura de cuidados de saúde. O diagnóstico de DB é clínico e baseado em opinião de especialistas, bem como exclusão de outras etiologias.3 O seu diagnóstico diferencial implica a consideração de várias patologias. Na presença de úlceras genitais, devemos excluir doenças sexualmente transmissíveis, particularmente a sífilis, cancroide ou linfogranuloma venéreo. As úlceras orais podem ter diversas causas. O lúpus eritematoso sistémico pode cursar com esta manifestação, embora as úlceras sejam habitualmente indolores e não deixem lesões cicatriciais. Por sua vez, apesar da estomatite aftosa recorrente poder causar úlceras muito dolorosas que poderão interferir com a ingestão ou a fala, os sintomas sistémicos são nulos ou residuais. A DB poderá manifestar-se com sintomas gastrointestinais similares à doença inflamatória intestinal. Para além disso, as ulcerações da mucosa oral são comuns em ambas as patologias, o que dificulta ainda mais a sua distinção. Muitas vezes, essa diferenciação apenas pode ser feita pela presença de granulomas em exame anátomo-patológico do tecido envolvido do tubo digestivo. (3 Espera-se que esta estratégia diagnóstica seja eficiente no diagnóstico de DB quando o tempo de consulta é escasso, permitindo ao Médico de Família suspeitar do diagnóstico, excluir outras doenças particularmente infeciosas agudas e dar o encaminhamento precoce para consultas especializadas de doenças autoimunes.