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Vista. Revista de Cultura Visual

On-line version ISSN 2184-1284

Vista  no.13 Braga June 2024  Epub June 30, 2024

https://doi.org/10.21814/vista.5505 

Artigos Temáticos

Liberando Mentes: O Legado Intelectual de Angela Davis e Suas Imagens no Cinema

Michelle Sales1  , Concetualização, curadoria dos dados, análise formal, aquisição de financiamento, investigação, metodologia, administração do projeto, recursos, software, supervisão, validação, visualização, redação do rascunho original, redação - revisão e edição
http://orcid.org/0000-0003-1589-4003

Bruno Muniz2  , Concetualização, curadoria dos dados, análise formal, aquisição de financiamento, investigação, metodologia, administração do projeto, recursos, software, supervisão, validação, visualização, redação do rascunho original, redação - revisão e edição
http://orcid.org/0000-0002-9109-7439

1 Departamento de Artes Visuais, Escola de Belas Artes, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil

2 Associação Humana Povo para Povo Brasil, Salvador, Brasil


Abstract

We propose thinking of Angela Davis's intellectual legacy from a decolonial perspective. We point out that just as the fight for civil rights and the end of racial segregation in the United States helped to consolidate the Black movement in Brazil, the circulation of anti-colonial ideas during the struggles for the decolonization of African countries in the 1950s and 60s was crucial to the circulation of abolitionist ideas and anti-racist movements in the United States and abroad. We will analyze interchanges capable of pointing out "the recognition of multiple and heterogeneous colonial differences, as well as the multiple and heterogeneous reactions of populations and subjects subordinated to the coloniality of power" (Bernardino-Costa & Grosfoguel, 2016, p. 21). Our contribution seeks to analyze Davis as a public and militant intellectual through her images in film. Beyond considering Angela Davis's image in cinema as representation, we also analyze how her intellectual and political activities were involved with the flourishing of a new Black cinema in the United States. This paper analyzes films such as Child of Resistance (1973), Free Angela and All Political Prisoners (2015), and 13th (2016).

Keywords: decolonial; Black independent cinema; Angela Davis; abolitionism

Resumo

Propomos pensar o legado intelectual de Angela Davis a partir de uma perspectiva decolonial. Ressaltamos que, assim como a luta pelos direitos civis e o fim da segregação racial nos Estados Unidos ajudaram a consolidar o movimento negro no Brasil, a circulação de ideias anticoloniais durante as lutas pela descolonização dos países africanos, nas décadas de 1950 e 1960, foi crucial para a circulação de ideias abolicionistas e movimentos antirracistas nos Estados Unidos e no exterior. Analisaremos intercâmbios capazes de apontar "o reconhecimento de diferenças coloniais múltiplas e heterogêneas, bem como as reações múltiplas e heterogêneas de populações e sujeitos subordinados à colonialidade do poder" (Bernardino-Costa & Grosfoguel, 2016, p. 21). Nossa contribuição busca analisar Davis como uma intelectual militante por meio de suas imagens no cinema. Além de considerar a imagem de Angela Davis no cinema enquanto representação, também analisamos como suas atividades intelectuais e políticas estiveram envolvidas com o florescimento de um novo cinema negro nos Estados Unidos. Este artigo analisa filmes como Child of Resistance (Filho da Resistência; 1973), Free Angela and All Political Prisoners (Libertem Angela e Todos os Presos Políticos; 2015) e 13th (2016).

Palavras-chave: decolonial; cinema negro independente; Angela Davis; abolicionismo

Não acredite na mídia, é uma sequela Como um igual, posso trazer isso a você Meu carro 98 está crescendo com um baú de funk Todos os invejosos não conseguem impedir o enterro Vindo da escola dos duros golpes Que alguns frequentam, eles bebem Clorox Atacam os negros, porque eu sei o que lhes falta exatamente Os duros fatos, e eles ainda tentam fazer uma cópia. — Public Enemy, "Don't Believe the Hype"

1. Introdução

Este texto propõe uma reflexão sobre o legado intelectual de Angela Davis sob uma perspectiva decolonial. O projeto decolonial sugere um diálogo entre as pessoas que foram colonizadas e racializadas, vivendo sob relações marcadas pela colonialidade do poder. Assim, destacamos que, como a luta por direitos civis e o fim da segregação racial nos Estados Unidos ajudaram a consolidar o movimento negro no Brasil, a circulação de ideias anticoloniais durante as lutas pela descolonização de países africanos nas décadas de 1950 e 1960 foi crucial para a disseminação de ideias abolicionistas e movimentos antirracistas nos Estados Unidos e no exterior.

Portanto, segundo Dussel (1979/1995), para superar a modernidade eurocêntrica, é necessário um "projeto utópico" para nos conduzir além das estruturas racistas e patriarcais que constituem a modernidade. É crucial construir um projeto alternativo que comece no Sul Global e entre aqueles tornados subalternos pela modernidade eurocêntrica (Grosfoguel, 2008). Os protestos antirracistas de 2020 indicam que um movimento transatlântico por justiça, igualdade e "diversidade epistêmica" pode transcender seu caráter utópico. Dessa forma, queremos destacar a relação entre o legado intelectual de Angela Davis e o projeto decolonial. Este texto adota uma abordagem interseccional e transnacional na análise das diferentes representações de Angela Davis no cinema. Interseccional, no sentido de que considera as diferentes estruturas raciais e políticas que condicionam a vida de Angela Davis, como essas estruturas se intersectam e como sua imagem foi apropriada e transformada na cultura de massa. Ao mesmo tempo, implementamos uma análise transnacional, uma vez que as estruturas raciais e políticas mencionadas acima também afetam a maneira como as ideias e imagens de Davis viajam através das fronteiras.

Nossa contribuição busca analisar Davis como uma intelectual pública e militante através de suas imagens no cinema. Além de considerar a imagem de Angela Davis no cinema como representação, também analisamos como suas atividades intelectuais e políticas estiveram envolvidas com o florescimento de um novo cinema negro nos Estados Unidos, influenciado pelo cinema africano pós-colonial. Analisaremos intercâmbios capazes de apontar "o reconhecimento de diferenças coloniais múltiplas e heterogêneas, bem como as múltiplas e heterogêneas reações das populações e sujeitos subordinados à colonialidade do poder" (Bernardino-Costa & Grosfoguel, 2016, p. 21).

A primeira instância disso é uma curta-metragem realizada em 1970, na qual o escritor e ativista político francês Jean Genet apoia publicamente os Panteras Negras. Ele também defende o movimento pelos direitos civis, incluindo a liberdade de Angela Davis e o filme Child of Resistance (Filho da Resistência; 1973), dirigido por Haile Gerima e inspirado na prisão de Angela Davis, a 13 de outubro de 1970. Também consideraremos neste texto documentários como Free Angela and All Political Prisoners (Libertem Angela e Todos os Presos Políticos; 2015) e 13th (2016), e a emenda à Constituição dos Estados Unidos que aboliu a escravidão.

Incluímos vários filmes recentes na análise, que ainda não foram amplamente considerados em outros estudos sobre a imagem de Angela Davis e sua interação com a luta antirracista. A palestra de Angela Davis em 2019, em São Paulo, onde é abordada a sua representação nos filmes, também não é analisada pela academia.

2. Escrever Sobre a Imagem de Angela Davis: Transnacionalismo, Interseccionalidade e Colonialidade

“Autora”. “Acadêmica”. “Ativista”. “Revolucionária”. Estas são algumas das palavras usadas para descrever Angela Davis. Estas palavras expressam as diferentes dimensões de seu trabalho como intelectual e a influência que teve sobre movimentos antirracistas e na produção de imagens. Seja como ativista por uma revolução política ou como acusada encarcerada, ela construiu um legado intelectual com o qual diversos escritores e estudiosos, manifestantes e radicais têm se engajado e continuam a fazer. Como pensadora abolicionista, seu trabalho tentou articular uma análise das relações de classe e capitalistas com raça, gênero, cultura negra e encarceramento em massa.

Are Prisons Obsolete? (São as Prisões Obsoletas?) de Davis (2003) e seu capítulo em A Companion to African American Philosophy (Complemento para Filosofia Afro-Americana; Davis, 2007) oferecem uma crítica profunda ao sistema prisional, enfatizando suas raízes no racismo histórico e seu impacto contínuo nas comunidades negras. Ela argumenta que o encarceramento em massa de indivíduos negros não é apenas um subproduto do crime, mas uma continuação de mecanismos de controle racial historicamente enraizados na escravidão e segregação. Esta perspectiva é crucial para analisar a representação das prisões nos filmes, onde a natureza racializada da punição muitas vezes passa sem questionamento (O'Sullivan, 2001).

Os filmes como artefatos culturais, muitas vezes, refletem e moldam as percepções sociais sobre crime e punição, reforçando ou desafiando as narrativas predominantes. A interação entre a crítica de Davis ao sistema prisional e a representação da encarceração nos filmes sublinha a importância de reconhecer e abordar o racismo institucional embutido tanto no sistema de justiça criminal quanto em suas representações na indústria cinematográfica. Este texto analisa como representações hegemônicas de crime e punição também impactaram a criação de imagens sobre Angela Davis.

Ao mesmo tempo, a jornada de Angela Davis, desde seu envolvimento no ativismo pelos direitos civis até suas contribuições acadêmicas, representa uma voz crítica no discurso sobre justiça racial e abolição das prisões. Seu trabalho não apenas destaca o impacto desproporcional do encarceramento em massa nas comunidades negras, mas também defende uma reimaginação radical da justiça que transcende a mera reforma, visando uma revisão completa do sistema (Davis, 2003, 2007). Esta abordagem, ecoada nos filmes analisados, exige uma compreensão mais profunda dos contextos históricos e sociais que moldam o sistema prisional e sua representação na mídia.

O pensamento interseccional tem sido uma inspiração para intelectuais comprometidos com os objetivos da política progressista e emancipatória. O ponto de partida do filme Free Angela and All Political Prisoners (2014), dirigido por Shola Lynch, diz respeito ao movimento pela libertação de Angela Davis, mas também é sobre o legado das mulheres afro-americanas e a história política do feminismo negro, intimamente relacionadas à trajetória de Angela Davis.

À medida que começámos a pensar nas palavras certas para iniciar este artigo, um dos nossos objetivos era criar uma seção sobre como o trabalho e a imagem de Angela Davis impactaram os movimentos sociais no Brasil. Concordamos que um dos pontos de partida seria sua palestra recente, “Freedom Is a Constant Struggle” (A Liberdade É uma Luta Constante; TV Boitempo, 2019), nas aulas da conferência internacional: “Democracia em Colapso?”. No entanto, ao ouvirmos sua intervenção, disponível no YouTube e promovida pela Boitempo, uma editora de esquerda no Brasil, e pelo Serviço Social do Comércio, um serviço criado pelo setor comercial, encontramos este interessante comentário feito por Angela Davis:

me sinto sempre bastante desconfortável porque sou colocada para representar o feminismo negro, e por que vocês aqui no Brasil têm que olhar para os Estados Unidos da América [aplausos intensos]. Eu não entendo. Quero dizer, eu aprendo mais com Lélia Gonzalez do que vocês jamais aprenderão comigo. Ela escrevia sobre interseccionalidade antes mesmo de o termo existir. Ela nos convocava a desenvolver novas identidades, novas identidades políticas. Eu gosto dos termos dela, "ameríndio" e "amerafricano", são termos amplos que são inclusivos sem serem assimilatórios. Eu queria dizer isso, sempre tenho que dizer, me sinto realmente desconfortável porque nós, nos Estados Unidos, deveríamos estar aprendendo com a tradição vibrante de feminismo negro de vocês. (TV Boitempo, 2019, 00:52:23)

Precisamos nos perguntar sobre a influência de Angela Davis no feminismo negro brasileiro? Se seguirmos as próprias palavras de Davis, não deveríamos pensar em termos de compartilhamento de ideias e experiências, e não de influência? Naquele momento, quando Angela Davis reconhece oficialmente a importância de Lélia Gonzalez, ela junta muitos elementos para refletir sobre algumas questões, como a interseccionalidade e o imperialismo, apenas confirmando sua genialidade. Retornando à obra de Shola Lynch, em seu documentário Free Angela and All Political Prisoners, lançado em 2013, a professora de filosofia da Universidade da Califórnia em Los Angeles (UCLA) - que acabara de retornar da Alemanha - vai além do grupo Panteras Negras e se envolve com o Clube Che-Lumumba, um grupo majoritariamente negro do Partido Comunista Americano, influenciado pelas lutas de descolonização no continente africano e por uma ideologia antiimperialista. O Clube Che-Lumumba homenageia dois líderes internacionais na luta pela descolonização da África e da América do Sul: Che Guevara e Patrice Lumumba. A importância da relação de Angela Davis com o Clube Che-Lumumba é explorada no documentário de Shola Lynch e revela, além de algumas discordâncias de Angela Davis com o Partido Comunista, uma perspectiva pan-africanista, anti-imperialista e anti-sexista, que destaca sua postura decolonial avant la lettre.

Avançando na exploração do conceito de “olhar oposicional”, desenvolvido por bell hooks (1992), no contexto da produção artística de mulheres negras, o objetivo é se afastar da normalização da brancura. Esse processo centraliza as obras criativas de mulheres negras, destacando um mundo não enfraquecido e cínico devido ao racismo estrutural, mas sim, profundamente afetado pelos legados duradouros da colonialidade, envolvendo estruturas de poder anti-negras, sexistas e homofóbicas. Esse deslocamento é essencial para garantir que o estudo da brancura não contribua inadvertidamente para um foco renovado na própria brancura, como alertado por hooks em 1992.

Nosso principal objetivo é contemplar a noção de um olhar oposicional que permite a criação de imagens que existem além dos limites tradicionais do olhar do espectador, assumindo o comando da narrativa. Esse olhar toma controle sobre o próprio ato de representação. Para alcançar isso, escolhemos analisar representações de figuras como Davis, conforme retratada por diretoras negras como Ava DuVernay e Shola Lynch.

Segundo bell hooks (1992), em Black Looks: Race and Representation (Olhares Negros: Raça e Representação), quando os afro-americanos sintonizaram a televisão pela primeira vez, rapidamente perceberam que o que testemunhavam estava intrinsecamente ligado aos ideais da supremacia branca. Consequentemente, envolver-se com essas imagens e conectar-se ao cinema americano branco tornou-se um exercício de pensamento crítico, capaz de desafiar a negação da representação negra e a perpetuação de estereótipos. O conceito de “olhar oposicional” está intimamente ligado ao cultivo de um espectador crítico porque, como hooks (1992) afirma, “olhares negros, conforme foram formados no contexto de movimentos sociais para a elevação racial, eram olhares interrogativos” (p. 116). Esta abordagem deu origem a filmes impactantes como 13th e Free Angela Davis and All Political Prisoners, dirigidos por Ava DuVernay e Shola Lynch, respectivamente. Ainda segundo bell hooks (1992):

espaços de agência existem para pessoas negras, nos quais podemos tanto interrogar o olhar do Outro quanto olhar de volta, um para o outro, nomeando o que vemos. O “olhar” tem sido e é um local de resistência para pessoas negras colonizadas globalmente. Subordinados em relações de poder aprendem por experiência que há um olhar crítico, um que “olha” para documentar, um que é oposicional. Na luta de resistência, o poder dos dominados de afirmar agência, reivindicando e cultivando “consciência”, politiza as relações de “olhar” - aprende-se a olhar de certa forma para resistir. (p. 116)

O cinema negro independente americano emergiu dessa perspectiva oposicionista, enraizado no cultivo de espectadores críticos que ousam escrutinar imagens, representações e racismo. Portanto, ao adotar o conceito de um “olhar oposicional” como um paradigma fundamental não apenas para o cinema negro norte-americano, mas para as ondas de cinema negro em todo o mundo, nosso objetivo é contemplar como as mulheres negras contribuíram para o cinema no Brasil. Elas mantiveram, em vários aspectos, um olhar oposicional em relação à branquitude, ao racismo e ao sexismo, ao mesmo tempo que iluminam a perpetuação das dinâmicas coloniais.

Nosso segundo desafio gira em torno da condução de uma análise interseccional que evita equiparar formas distintas de opressão ou endossar uma perspectiva acumulativa, onde fatores como raça, classe, orientação sexual e gênero são vistos como forças independentes que simplesmente se acumulam. Uma análise interseccional não deve desconsiderar o papel da “dimensão racial”, pois é precisamente neste contexto que o conceito ganha seu significado. Simultaneamente, dissecar várias formas de opressão de forma isolada contradiz as realidades históricas, pois essas questões estão interconectadas em uma teia de relações contínuas influenciadas pelos legados duradouros de estruturas de poder patriarcais e racistas.

Ao problematizar a questão do imperialismo americano e ao entendê-lo como parte de uma estrutura na qual a supremacia branca é o pano de fundo, Angela Davis, na palestra mencionada anteriormente, “Democracy in Collapse?”, compreende a necessidade de valorizar líderes e vozes do "Sul". Portanto, como autores deste texto, fomos inicialmente influenciados por um esforço imperialista subjacente, que é supor que todo movimento deve ser analisado como tendo um vetor movendo-se do Norte para o Sul. Em outras palavras, parece evidente que Angela Davis é uma influência importante nos movimentos negros no Brasil, mas e o contrário? As feministas negras no Brasil também influenciam o Norte? O conceito do “Atlântico Negro” pode ser útil aqui, pois argumenta que as práticas culturais e políticas negras são multifacetadas e transnacionais (Gilroy, 1993). Em vez de analisar a história negra tendo o Estado-nação como principal unidade de análise, este texto adota a sugestão de Gilroy de entender a história negra tendo o Atlântico como referência central. Para analisar a imagem de Davis no cinema, em vez de centrar nossos comentários no contexto norte-americano, decidimos considerar as diferentes repercussões e trocas que essas imagens estimularam através de diferentes fronteiras.

A referência de Angela Davis ao conceito de “interseccionalidade”, cunhado por Kimberlé Crenshaw (1989), é chave para iluminar processos de governança, justiça e policiamento racial e propõe um entendimento do racismo em articulação com outras formas de opressão estruturada. O termo “interseccionalidade” se tornou até uma forma de classificar o feminismo, por exemplo, o feminismo interseccional. As ideias de Crenshaw articulam a interseccionalidade com uma análise do racismo institucional e como ele cria uma situação de invisibilidade para as mulheres negras.

Segundo ela, as narrativas que poderiam beneficiar mulheres brancas, estruturadas em torno da castidade, ou homens negros, estruturadas na resistência contra o linchamento, não beneficiam mulheres negras (Crenshaw, 1989). O reconhecimento de Lélia Gonzalez como uma das figuras fundadoras do conceito deva ser enfatizado e valorizado. O discurso de Davis ajuda-nos a entender como o racismo estrutural funciona e está entrelaçado com o imperialismo. A cultura jornalística que distorce e se apropria da imagem de Davis também afeta como as vozes de outras mulheres negras são introduzidas na sociedade. Portanto, uma abordagem verdadeiramente decolonial e transnacional não deve ignorar que, dentro dos movimentos sociais e da academia, as vozes são abafadas por assimetrias, reproduzidas mesmo contra a vontade daqueles que combatem a opressão. Como Almeida (2018) já apontou, o racismo estrutural (que difere do racismo institucional) não é sobre racismo individual ou intersubjetivo, é uma estrutura colonial que se impõe independentemente da ação das pessoas que compõem as instituições.

Em sua obra crítica, O que É Racismo Estrutural?, Almeida (2018) oferece uma diferenciação matizada entre as formas estruturais e as formas institucionais de racismo, enfatizando a natureza sistêmica das disparidades raciais enraizadas no arcabouço societal. Ele postula o “racismo estrutural” como uma extensa rede de opressão racial, que abrange várias instituições, encapsulando os efeitos acumulados de elementos sociais que sistematicamente favorecem uma raça em detrimento de outras. Por outro lado, o racismo institucional, segundo interpretações de Ture e Hamilton (1992), concentra-se nas práticas discriminatórias prevalentes em setores sociais específicos - como o sistema de justiça criminal, as instituições educacionais e de saúde -, destacando as formas como essas práticas sustentam desigualdades raciais. Esse conceito, embora pareça mais estreito em escopo, é fundamentalmente enraizado em uma compreensão estrutural do racismo, desafiando visões simplistas do racismo como mero preconceito interpessoal. A elaboração de Ture e Hamilton sobre racismo institucional serve como uma crítica crucial contra a concepção errada do racismo como puramente intersubjetivo, defendendo, em vez disso, um reconhecimento do racismo profundamente enraizado em estruturas, normas e contextos históricos sociais. Esta abordagem sublinha a imperatividade de transcender análises individualmente, reconhecendo a perpetuação sistêmica das disparidades raciais que o racismo estrutural e institucional ilumina.

É extremamente importante reafirmar o compromisso com o abolicionismo penal e a necessidade de engajar na “luta ideológica”. O racismo tem uma base colonial e, a menos que reconheçamos que as instituições são construídas com colonialidade e capitalismo como seus pilares estruturais, a mudança não pode ser alcançada (Ture & Hamilton, 1992). Como Davis enfatizou em seu discurso, é urgente desmantelar essas estruturas e o pensamento radical deve se concentrar na construção de novas estruturas que não sejam racistas nem patriarcais (TV Boitempo, 2019). Para buscar mudanças, precisamos de instituições que não reproduzam estruturas de colonialidade e capitalismo, que são patriarcais e racistas.

Portanto, a análise da imagem de Angela Davis no cinema não deve ignorar como a "política de libertação" pode ser transformada em "política de moda", conforme explicado no artigo "Afro Images: Politics, Fashion, and Nostalgia" (Imagens Afro: Política, Moda e Nostalgia; Davis, 1993). Neste texto, Davis narra uma situação em que alguém é "repreendido" por não a conhecer; quando a pessoa se dá conta, ao lembrar seu nome, a lembrança vem acompanhada das palavras: "ah, ( ... ) Angela Davis, o Afro". Sua imagem tornou-se parte de uma "cultura jornalística dominante", parte de uma "economia de imagens jornalísticas" (Davis, 1993, p. 37). Davis menciona que seu nome foi listado na New York Times Magazine entre os "cinquenta influenciadores de moda (leia-se: penteado) mais influentes do último século" (p. 37). Em suas palavras, o "poder invasivo e transformador da câmera" e a "contextualização ideológica de minhas imagens" deixaram-na com "pouca ou nenhuma agência" (p. 39). Ainda segundo Angela Davis (1993), uma das razões para suas imagens entrarem neste sistema imagético hegemônico foi sua "criminalidade presumida" (p. 38).

O propósito deste texto deve recuperar algumas considerações de Angela Davis (1993) sobre suas imagens e como essas imagens podem se tornar "ahistóricas e apolíticas" quando apropriadas pela cultura jornalística. Portanto, não se pode pensar nas imagens de Davis sem refletir sobre sua apropriação. Por exemplo, como fotografias de uma modelo representando-a em cenas de tribunal ou imitando a fotografia em seu cartaz de procurada foram usadas para vender roupas. As "imagens afro" são ambíguas quando incorporadas numa estrutura hegemônica, pois são comumente usadas como parte de um estabelecimento anti-negro para sustentar a criminalização dos negros (por exemplo, o cartaz de procurada de Davis produzido pelo FBI) e apropriadas pela indústria da moda. No entanto, as imagens de Davis também fazem parte de uma iconografia de resistência que perdurará e inspirará futuras gerações.

3. Angela Davis e L.A. Rebellion

O filme de 1970, Jean Genet Parle d'Angela Davis (Jean Genet Fala Sobre Angela Davis), destaca a participação do renomado escritor existencialista Jean-Paul Sartre na leitura de um manifesto que denuncia a polícia racista americana, em defesa dos Panteras Negras e exigindo a liberação imediata de Angela Davis. Realizado pelo grupo Video Out, formado por Carole e Paul Roussopoulos, em 16 de outubro de 1970, no Hotel Cêcil em Paris, a participação de Jean Genet ocorreu a convite do escritor Rezvani, que dialogou, entre vários intelectuais, com Jean Genet no programa de televisão L’Invité du Dimanche (O Convidado de Domingo), o qual acabou sendo censurado e não foi ao ar. Em um trecho de Jean Genet Parle d’Angela Davis, o escritor comenta:

Angela Davis agora está sob seu controle. Tudo está no lugar. Seus policiais - que já atiraram em um juiz, melhor para matar três negros - seus policiais, sua administração, seus juízes estão treinando todos os dias, seus cientistas também, para massacrar os negros. Primeiro, os negros. Todos eles. Depois, os índios que sobreviveram até agora. Depois, os chicanos. Depois, os brancos radicais. Depois, espero, os brancos liberais. Depois, a administração branca. Então, vocês mesmos. O mundo então será livre. Após sua passagem, a memória, a filosofia e as ideias de Angela Davis e dos Panteras Negras permanecerão. (Ferrer, 2020, para. 7)

O material que deu origem ao filme de Carole estava disponível na base de dados do Institut National d’Audiovisuel e atualmente faz parte do acervo do Centre Pompidou, em Paris. Antecipando a censura pelo Office de Radiodiffusion Télévision Française (a organização governamental encarregada de rádio e televisão na França de 1964 a 1974), Genet pediu pessoalmente a Carole Roussopoulos para gravá-lo lendo um panfleto em defesa de Angela Davis.

É importante destacar a participação e envolvimento do escritor Jean Genet com o partido dos Panteras Negras e com o movimento dos direitos civis nos Estados Unidos durante o final dos anos 1960 e início dos anos 1970. Antes da prisão de Angela Davis, Jean Genet viajou clandestinamente para os Estados Unidos, em março de 1970, e proferiu palestras em várias universidades americanas - City College de Nova York, Massachusetts Institute of Technology, Yale, UCLA, Stanford - em defesa dos Panteras Negras, que o escritor apontava como a revolução marxista que a juventude branca americana precisava de apoiar para fazer avançar a mudança estrutural fundamental no campo político progressista. Como aponta Robert Sandarg (1986) no artigo “Jean Genet and The Black Panther Party” (Jean Genet e o Partido dos Panteras Negras):

no início de março de 1970, Connie Mathews, Coordenadora Internacional dos Panteras Negras, abordou Genet em Paris e solicitou sua ajuda. Por várias razões, Genet concordou em ajudar. Ele se identificava com pessoas oprimidas e havia escrito duas peças lidando com o colonialismo francês: The Blacks [Os Negros] (1959) e The Screens [Os Ecrãs] (1966), ambientadas na África. Genet havia subsequentemente abandonado a literatura e voltado diretamente para a política radical. (p. 270)

Como observado no documentário de Shola Lynch, a prisão de Angela Davis conseguiu mobilizar grande atenção internacional para o caso. Sua prisão foi celebrada pelo ex-Presidente dos Estados Unidos Richard Nixon, que parabenizou o FBI, tendo listado Angela Davis como uma das 10 figuras mais perigosas da nação. O trabalho incansável de Shola Lynch em seu documentário foi recentemente reconhecido até mesmo por Angela Davis - que menciona o fato do filme de Lynch ter recuperado elementos e sentimentos até então pouco claros sobre sua prisão em 1972. Davis revelou esse fato no debate organizado pela Professora Gaye Theresa Johnson na Universidade de Santa Barbara, Califórnia, em 2014:

e, então, quando vi pela primeira vez o corte inicial do filme, percebi que havia aspectos dessa história que eu desconhecia. Na verdade, eu nunca soube como foi que o FBI realmente me capturou. Tudo o que sabia era que eles me encontraram e me prenderam, mas não conhecia a história até Shola entrevistar um dos agentes do FBI que me prendeu. (University of California Television (UCTV), 2014, 00:06:02)

Além da prisão, o fato de a filósofa americana ter sido demitida da UCLA por admitir sua filiação ao Partido Comunista Americano provocou um forte tumulto social não apenas no campus da UCLA - com o envolvimento direto de vários professores em defesa de Angela Davis -, mas na sociedade em geral. Esse movimento ajudou a tornar Angela Davis num dos nomes mais importantes do movimento negro e da luta por direitos civis e justiça social ao redor do mundo. Portanto, uma das hipóteses centrais que gostaríamos de propor neste ensaio é a possível influência de Angela Davis na formação do movimento cinematográfico L.A. Rebellion - protagonizado por estudantes de cinema da UCLA na década de 1970 - e na constituição de um novo cinema negro, conforme apontado por Clyde Taylor (2015) em Once Upon a Time in the West... L.A. Rebellion (Era uma Vez no Oeste... L.A. Rebellion): "meses antes de eu ver Harvest pela primeira vez, Roy Thomas, outro colega provocativo de Estudos Negros na UC Berkeley, organizou uma exibição de Child of Resistance (1973) de Gerima, que examina de forma parabólica uma armação contra Angela Davis" (p. 17). Além disso, segundo o crítico de cinema Clyde Taylor, a presença de Ousmane Sembène e de Angela Davis na década de 1980 trouxe reconhecimento internacional à Sociedade Africana de Cinema, criada na UCLA por estudantes de cinema.

Tivemos um lampejo de reconhecimento por volta de 1980 quando a Sociedade Africana de Cinema organizou uma recepção para Ousmane Sembène na Bay Area. Tivemos a satisfação de assistir à admiração mútua entre Sembène, amplamente reconhecido como um grande diretor de cinema internacional, e Angela Davis, livre e não mais perseguida, ambos conectados de diferentes maneiras à insurgência cinematográfica na UCLA. (Taylor, 2015, p. 17)

O filme Child of Resistance (1973), de Haile Gerima, um cineasta etíope que vive e trabalha nos Estados Unidos desde 1968, mostrou um dos líderes do movimento L.A. Rebellion. Revelou a influência e afinidade estética com o filme de Ousmane Sembène, Borom Sarret - uma curta-metragem lançada em 1963 -, frequentemente considerado o primeiro filme feito na África por um africano negro - e La Noire de (A Rapariga Negra; 1966). Tanto nos filmes de Sembène quanto no Child of Resistance de Haile Gerima, o personagem principal é marcado por uma intensa introspecção, expressa pela presença de uma voz interior expondo sentimentos, desejos, medos e sonhos ao espectador, que não está acostumado a lidar com personagens negras humanizadas no cinema.

O cinema latino-americano, como o movimento cinema novo do Brasil, iniciado em 1952, também pode ter influenciado o movimento L.A. Rebellion (Guimarães, 2020). É importante lembrar que Adélia Sampaio, a primeira mulher a dirigir um filme de ficção comercial no Brasil, participou desse movimento. Conforme comenta Clyde Taylor (2015): “cada filme ou cineasta descoberto adicionava um traço ao autorretrato em desenvolvimento de pessoas outrora invisíveis. Todo novo filme de Sembène ou de Cuba, Brasil ou Filipinas, filmes antigos da China, tornaram-se blocos de construção do autoconhecimento” (p. 15).

4. 13th, 2016: "Don't Believe the Hype"

O documentário 13th, de Ava DuVernay, apresenta uma análise da interseção entre raça, justiça e encarceramento em massa nos Estados Unidos, enquadrada no contexto histórico da 13.ª Emenda. Essa emenda, embora tenha abolido a escravidão, deixou uma brecha constitucional que tem sido explorada para perpetuar a escravização dos negros americanos por meio da criminalização e do trabalho penal. DuVernay traça a evolução dos mecanismos de controle racial desde a era pós-Guerra Civil do arrendamento de condenados até o complexo prisional-industrial moderno, destacando os incentivos econômicos por trás do encarceramento em massa e seu impacto devastador nas comunidades de cor.

O documentário examina como cada período na história americana encontrou novas maneiras de oprimir indivíduos negros, desde as leis de Jim Crow até à guerra às drogas e ao sistema prisional com fins lucrativos atual. Um pontochave discutido é a criminalização estratégica de delitos menores, que atinge desproporcionalmente os afro-americanos, levando ao trabalho forçado, à privação de direitos e à exclusão do sistema político. Esse problema sistêmico é ainda agravado pela retórica política e pelas políticas que historicamente reforçaram estereótipos raciais, contribuindo para um ciclo de violência e encarceramento que impacta gerações.

DuVernay critica tanto os republicanos quanto os democratas por sua cumplicidade no crescimento do complexo prisional-industrial, ao mesmo tempo em que reconhece as divisões internas dentro da comunidade afro-americana em relação às políticas de crime e punição. O documentário culmina em uma discussão pungente sobre a normalização da violência contra os afro-americanos, justaposta a uma mensagem de esperança e resiliência, lembrando os espectadores da alegria e humanidade que persistem apesar da opressão sistêmica.

O documentário também enfatiza o papel da mídia e do discurso político na formação das percepções públicas sobre a criminalidade negra, traçando uma linha desde The Birth of a Nation (O Nascimento de uma Nação; 1915) de D. W. Griffith até à cobertura de notícias contemporânea. Em "Black American Cinema: The New Realism” (Cinema Negro Americano: O Novo Realismo), Diawara (1993) analisa o impacto profundo do filme de Griffith na paisagem cinematográfica e cultural americana, destacando seu papel crucial na criação de uma narrativa conturbada sobre a raça. Esse filme, como Diawara aponta, não apenas consolidou a postura de Hollywood sobre a representação dos afroamericanos, mas também enraizou estereótipos prejudiciais que persistem por décadas:

com The Birth of a Nation ocorreu a proibição da participação dos negros no humanismo burguês nas telas de Hollywood. Em outras palavras, não há histórias simples sobre pessoas negras amandose, odiando-se ou desfrutando de seus bens privados sem referência ao mundo branco, porque os espaços dessas histórias são ocupados por formas mais novas de histórias de relações raciais que foram sobredeterminadas pelo texto mestre de Griffith. (Diawara, 1993, p. 3)

Ao glorificar a Ku Klux Klan e demonizar personagens negros, a obra de Griffith lançou as bases para um legado de viés racial na mídia, influenciando gerações subsequentes de cineastas e públicos. Esse legado é destacado em 13th, onde Ava DuVernay conecta o cinema histórico à perpetuação de estereótipos raciais e injustiças sistêmicas enfrentadas por afro-americanos hoje. A análise de Diawara (1993) revela as consequências duradouras do filme de Griffith, servindo como um ponto de referência crítico para entender a relação entrelaçada entre raça, representação midiática e desigualdade sistêmica.

A obra de DuVernay destaca a poderosa influência das organizações de lobby na elaboração de legislação que beneficia a indústria prisional, sublinhando as motivações financeiras profundas por trás do encarceramento de milhões de americanos. O documentário argumenta que o filme The Birth of a Nation criou a iconografia posteriormente utilizada pela Ku Klux Klan, um caso de vida imitando a ficção. Conforme argumentado no documentário, The Birth of a Nation também serve para criar uma representação heroica da Ku Klux Klan. Mais tarde, no século XX, o cinema e as campanhas de marketing apropriaram-se da iconografia negra, como o julgamento de Angela Davis e o fato do afro se ter tornado um penteado da moda. O afro de Angela e seu julgamento também são mencionados no filme de Ava DuVernay.

Durante o filme, Van Jones, advogado e fundador da organização sem fins lucrativos Dream Corps, diz que Angela aparecer com um afro no julgamento não foi exatamente uma declaração política, mas resultou do fato de ela "enfrentar um tempo considerável" (00:48:30), e, portanto, "ela não foi a correr alisar o cabelo" (00:48:35), enquanto "a maioria das pessoas" estaria "lá com pequenas luvas brancas, orando a Jesus. Ela entrou assim. E devastou a acusação e saiu livre" (00:48:40). Ainda segundo suas palavras no filme, "o sistema tentou colocar a irmã em julgamento, e a irmã disse, 'Não, estamos colocando vocês em julgamento’” (00:48:00).

Outra ativista submetida a uma busca foi Assata Shakur. Como Angela Davis aponta, a imagem de Shakur (com cabelo afro) também foi usada "pela mídia para a representar como uma criminosa perigosa" (00:47:32). A imagem de Angela Davis durante seu julgamento ganhou vida própria, incluindo a apropriação comercial. Neste contexto, enquanto hoje o julgamento de uma mulher negra pode ser estetizado como uma forma de marketing, ter um afro ainda pode levar à criminalização. Por exemplo, em Salvador, o estado com o maior percentual de negros no Brasil, um adolescente negro com um afro (o nome da vítima foi ocultado no artigo) foi brutalizado por um policial em fevereiro de 2020. O policial foi flagrado em câmera dizendo: "para mim, você é um ladrão, olha esse cabelo" (Moradores Filmam Agressão Policial a Adolescente em Salvador: 'Você Para Mim É Ladrão, Olha Esse Cabelo', diz PM, 2020).

Uma das ambiguidades subjacentes à apropriação do imaginário negro para analisar a produção cinematográfica é que a imagem de pessoas negras pode ser usada para obter lucro e, ao mesmo tempo, ser mobilizada como símbolo de criminalidade. Portanto, mais do que analisar as imagens de Angela Davis e seu legado, suas reflexões sobre o uso de suas próprias imagens poderiam ser usadas para analisar a produção cinematográfica no Brasil e no mundo, por exemplo, de como imagens hegemônicas ainda representam pessoas negras como criminosos perigosos, enquanto imagens contra-hegemônicas, produzidas por mulheres negras, representam pessoas brancas como invasivas e violentas (Sales & Muniz, 2020). O artigo “Black Women's Oppositional Gaze Making Images" (O Olhar Oposicionista das Mulheres Negras Criando Imagens; Sales & Muniz, 2020) mostra como o cabelo das mulheres negras é tema de muitas produções cinematográficas, usando o estilo de cabelo afro como um símbolo de empoderamento e de iniciativas contra-hegemônicas. Diretores brasileiros, a maioria brancos, frequentemente usaram a imagem de pessoas negras para representar criminalidade. Este fato mostra como o racismo estrutural deve ser combatido através de uma luta ideológica, incluindo a produção cinematográfica. Felizmente, diretores negros têm questionado a antinegritude e as narrativas hegemônicas no Brasil há décadas, incluindo a apropriação comercial e antinegra das práticas culturais negras.

A representação estratégica de penteados afro no cinema sublinha essa luta ideológica, simbolizando uma reivindicação dos padrões de beleza negra e da identidade cultural. Exemplifica-se como o cinema pode transcender o mero entretenimento para se tornar um local de resistência contra as narrativas culturais dominantes. Os esforços de diretores negros para navegar e subverter a comercialização e a má representação da negritude ilustram ainda mais o papel do cinema na luta ideológica contra o racismo. Por meio desses atos de desafio criativo, o cinema emerge não apenas como um reflexo das dinâmicas raciais da sociedade, mas como um participante ativo na modelagem do discurso sobre raça e identidade, oferecendo uma visão para uma representação mais inclusiva e equitativa nas artes.

5. Comentários Finais

No âmbito cinematográfico, a representação das identidades negras frequentemente oscila entre a exploração comercial e o reforço de estereótipos criminais, apresentando um campo de batalha ideológico complexo. Essa dualidade convida a uma análise crítica através da perspectiva de Angela Davis, particularmente suas percepções sobre a dinâmica de poder no uso de imagens no cinema. Contranarrativas, especialmente aquelas criadas por mulheres negras, interrompem as representações tradicionais, oferecendo uma crítica à violência racializada e desafiando as percepções do espectador. Esses filmes não apenas contrariam estereótipos, também servem como meio de resistência ideológica, destacando o potencial transformador do cinema no enfrentamento das injustiças raciais.

O legado de Angela Davis pode ser compreendido como parte de um movimento transatlântico que inclui muitas outras mulheres negras e grupos racializados do Sul Global, incluindo aquelas que trabalham na produção cinematográfica. Embora “interseccionalidade” seja um conceito importante, os trechos e imagens analisados neste texto mostram que Davis propôs uma forma de política que transcendeu o feminismo interseccional, desafiando estruturas e narrativas hegemônicas através do cinema, do protesto político e do trabalho acadêmico, além de desafiar o próprio sistema - questionando-o e desafiando-o nos tribunais. A interseccionalidade é um instrumento importante para analisar como as narrativas hegemônicas, incluindo a produção cinematográfica e jornalística, nunca servem para proteger as mulheres negras. Esta observação também é verdadeira no Brasil; no entanto, o funcionamento específico das narrativas hegemônicas exige uma consideração minuciosa da produção intelectual e artística de mulheres negras vivendo em contextos específicos de segregação e opressão.

Ao examinar a intersecção das demandas de opressão e considerando as condições geopolíticas que afetam as políticas de raça e classe, este trabalho analisa as trocas transatlânticas que ocorrem através do cinema e do ativismo no Atlântico Negro (Gilroy, 1993), enfatizando como o legado intelectual de Angela Davis (e suas representações) é crucial para a causa antirracista, nos Estados Unidos e no exterior, numa perspectiva decolonial.

O exame do legado intelectual e cultural de Angela Davis revela uma influência profunda no discurso sobre justiça racial, igualdade de gênero e o movimento decolonial. No entanto, o alcance de seu impacto estende-se muito além dos Estados Unidos e do Brasil, tocando diversos cantos do Sul Global. A defesa e o trabalho acadêmico de Davis ressoam com as lutas globais contra os legados coloniais e a opressão racial, sublinhando a interconexão dos movimentos de libertação em todo o mundo.

Seu papel na formação do pensamento e prática feminista negra oferece percepções valiosas sobre as complexidades de navegar identidades interseccionais em meio a estruturas coloniais pervasivas. Ao envolver-se com o trabalho de Davis, acadêmicos e ativistas podem descobrir estratégias para desmantelar barreiras sistêmicas à igualdade, aproveitando sua rica combinação de teoria e praxis. Esta perspectiva mais ampla enriquece o entendimento de seu legado, destacando a relevância universal de suas contribuições para os movimentos globais por justiça e igualdade.

Além disso, a ênfase de Davis na solidariedade além fronteiras e sua crítica ao capitalismo neoliberal oferecem um arcabouço para abordar os desafios contemporâneos enfrentados pelas comunidades marginalizadas ao redor do mundo. Sua visão de uma sociedade mais equitativa, livre das amarras da opressão, serve como uma luz orientadora para as lutas contínuas contra injustiças raciais, de gênero e econômicas. Ao expandir o discurso para incluir o impacto de Davis em uma escala internacional mais ampla, podemos melhor apreciar a importância duradoura de seu trabalho na luta por um mundo verdadeiramente decolonizado e justo.

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Recebido: 04 de Dezembro de 2023; Revisado: 15 de Janeiro de 2024; Aceito: 15 de Janeiro de 2024

Tradução: Bruno Muniz

Michelle Sales é investigadora, professora e curadora independente. É professora associada na Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro (2010) e colabora no Programa de Pós-Graduação em Multimédia na Universidade Estadual de Campinas. Michelle coordenada a rede de pesquisa Cinemas Pós-Coloniais e Periféricos, no Brasil e em Portugal, e o projeto As Práticas Artísticas Contemporâneas e o Pensamento Pós-Colonial e Decolonial. É doutorada em Estudos Contemporâneos pela Pontifícia Universidade do Rio de Janeiro e pela Universidade de Coimbra (2018-2020). Entre 2014 e 2020, integrou o Centro de Estudos Interdisciplinares da Universidade de Coimbra, onde coordenou o projeto À Margem do Cinema Português (2020), financiado pela Fundação Calouste Gulbenkian. Foi bolseira da Fundação Calouste Gulbenkian no programa Investigadores Estrangeiros (2013-2014). Trabalha nas seguintes áreas: estudos pós-coloniais, feminismo interseccional e estudos fílmicos. Email: sales.michelle@gmail.com Morada: Av. Pedro Calmon, 550 - Cidade Universitária, Rio de Janeiro - RJ, 21941-901, Brasil

Bruno Muniz é doutor em Ciências Sociais pela London School of Economics and Political Science, onde estudou o movimento social Funk É Cultura no Rio de Janeiro sob a orientação de Juan Pablo Pardo-Guerra, Mike Savage e Paul Gilroy. Sua tese utilizou teorias pós-coloniais e análise crítica bourdieusiana, empregando entrevistas semiestruturadas e etnografia multissituada. Bruno foi investigador de pós-doutoramento no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, envolvido no projeto POLITICS, que examina as políticas antirracismo na Europa e na América Latina, centrando-se nas taxas de encarceramento por autodeclaração étnica no Peru e no Brasil. Tem grande experiência na angariação de fundos e gestão de projetos, trabalhando com várias agências internacionais e governamentais. Email: bmuniz@gmail.com Morada: Rua Humberto Machado, 11 - Piata, Salvador - BA, 41.650-096

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