1. Introdução
Nas últimas décadas, o debate acerca da educação inclusiva tem vindo a ganhar relevo do ponto de vista das políticas, da prática e da investigação educacional. Apesar da ideia generalizada de que as escolas e as sociedades devem pautar-se por valores de inclusão, e dos esforços no sentido de se conceberem políticas educativas, em Portugal e na Europa, alinhadas com estes princípios, as perspetivas e experiências individuais são, por vezes, contraditórias (Azorín & Ainscow, 2020; McMaster, 2012; Moya, 2019).
A educação inclusiva tem sido assumida em diversos países como o direito de todos os alunos ao acesso a educação de elevada qualidade tendo por base princípios de equidade (Aiscow et al., 2011). Ainda assim, a definição de educação inclusiva é complexa e diversa, variando entre os autores (cf. Carvalho et al., 2019). Na literatura são sugeridas diferentes definições de educação inclusiva, que traduzem conceções e orientações distintas com implicações nas políticas educativas e nas práticas das escolas (Carvalho et al., 2019).
Mais recentemente, adotam-se abordagens holísticas e compreensivas que consideram uma conceção abrangente de diversidade bem como as múltiplas dimensões dos contextos em termos de educação. Em especial, destacamos modelos abrangentes como o proposto por Azorín & Ainscow (2020) que inclui 3 dimensões distintas na conceptualização da educação inclusiva: contextos; processos; recursos. Neste sentido, a educação inclusiva deixa de estar adstrita a perspetivas centradas na deficiência ou nas necessidades educativas especiais e alarga-se a modelos com enfoque comunitário que remetem para todos (crianças e jovens), ainda que, considerando também grupos em maior risco de exclusão ou marginalização (Göransson & Nilholm, 2014).
O campo de estudo em “Educação Inclusiva” é amplo e complexo, na medida em que implica considerar múltiplos lentes e objetos de análise, diversos participantes, variados modos de recolha e de análise de dados. Implica também que a investigação seja, ela mesma, inclusiva, integrando múltiplas vozes e complexas leituras.
A grounded theory poderá ser um modelo de investigação a adotar neste âmbito, na medida em que permite explorar dados qualitativos relativos à experiência e à atribuição de significados, capazes de ilustrar dimensões pessoais, interativas e históricas da realidade pessoal (Henwood & Pidgeon, 1995, 2003; Lee et al., 1999; Pidgeon & Henwood, 1997). Especificamente, na linha de estudos relacionados com a Educação Inclusiva, apesar da grounded theory ser uma metodologia qualitativa pouco utilizada, parece-nos que poderá ser particularmente útil na construção de teoria acerca das experiências de inclusão em múltiplos contextos, potenciando o caráter empoderador de modelos e teorias dirigidas para públicos em maior risco de exclusão.
Esta metodologia qualitativa tem vindo progressivamente a ser utilizada pelos investigadores no âmbito das ciências sociais e humanas, nomeadamente em diferentes áreas da Educação e da Psicologia (Fernandes & Maia, 2001; Lee et al., 1999; Pidgeon & Henwood, 1997). Barney Glaser e Anselm Strauss, autores originais da metodologia, conceberam-na como um modelo de investigação enraizado (grounded), que combina o rigor e a sistematização com a aproximação do investigador à realidade no sentido da teorização.
A grounded theory define-se como um processo sistemático de recolha e análise de dados tendo em vista a descoberta ou construção de teoria (Bryant & Charmaz, 2007; Charmaz, 2003, 2006; Corbin & Strauss, 2008; Glaser & Strauss, 1967; Strauss & Corbin, 1990, 1998). Com efeito, a noção de teoria é central nesta metodologia. A teorização é definida como o ato de construção, a partir dos dados, de uma grelha de leitura que sistematicamente integre os diferentes conceitos em afirmações de relação. A teoria não se limita à descrição dos fenómenos, mas antes implica a explicação e predição de acontecimentos (Strauss & Corbin, 1998).
No processo específico de construção de teoria devem ser garantidas um conjunto de condições básicas, a saber: (i) o processo iterativo, baseado na interação entre a recolha e a análise de dados; (ii) a amostragem teórica, que acontece quando as categorias encontradas começam a estabilizar e os casos novos não trazem nada de novo ao investigador; (iii) a sensibilidade teórica, que informa o processo dialético constante entre os dados e os conceitos; (iv) os códigos, memorandos e conceitos necessários à análise; (v) a comparação constante; (vi) a saturação teórica; (vii) o ajustamento, funcionalidade, relevância e modificabilidade e; (viii) a teoria substantiva, uma teoria relativamente específica a um grupo e/ou lugar, que se aplica a tópicos de uma disciplina (e.g., Bryant & Charmaz, 2007; Charmaz, 2003, 2006; Corbin & Strauss, 2008; Glaser & Strauss, 1967; Strauss & Corbin, 1990, 1994, 1998). Além disso, seguem-se procedimentos específicos de codificação, onde se destacam as operações de comparação e questionamento constantes, bem como a codificação aberta, axial e seletiva (Strauss & Corbin, 1998).
2. Metodologia
Com este trabalho de caráter exploratório, pretendemos identificar de que modo a grounded theory tem vindo a ser utilizada na investigação em educação inclusiva, identificando as principais questões exploradas e opções metodológicas adotadas. Assim, pretende-se apresentar os contributos de alguns estudos de grounded theory para o estado da arte sobre Educação Inclusiva bem como discutir a respetiva utilização da metodologia.
Para a seleção dos estudos, foi realizada uma pesquisa na Education Resources Information Center (ERIC), base de dados eletrónica de revistas indexadas em Educação. Esta base de dados foi escolhida por ser uma base de dados orientada para trabalhos na área da Educação, âmbito deste estudo exploratório. Foi realizada pesquisa de textos usando as palavras-chave “grounded theory AND inclusive education” e considerado o período de 2010-2021. Considerando estes critérios, foram encontrados 12 artigos, conforme tabela 1. Exploramos (1) as questões da educação inclusiva trabalhadas em cada estudo com recurso à grounded theory bem como (2) os procedimentos metodológicos adotados nestes mesmos estudos. Com efeito, procedeu-se (1) à codificação temática considerando o tópico/problema de investigação de cada estudo e (2) à codificação categorial dos procedimentos metodológicos adotados considerando as condições de aplicação da metodológica descritos na introdução deste trabalho.
3. Resultados
Na tabela 1 apresentam-se os estudos considerados, identificando-se as palavras-chave para melhor análise do conteúdo dos mesmos, bem como a referência ao excerto onde se refere o uso da grounded theory para melhor compreensão das opções metodológicas.
A apreciação dos estudos selecionados revela um certo interesse pela utilização da metodologia para explorar aspetos específicos da educação inclusiva. Uma parte dos estudos selecionados refere-se a condições relacionadas com a participação de crianças, adolescentes e jovens adultos em contextos escolares ou de pares (n=6). Destacamos, por exemplo, o trabalho de Leeuw et al (2018) relacionado com as estratégias utilizadas pelos professores para facilitar a participação em sala de aula de alunos com problemas comportamentais ou o trabalho de Strnadová et al (2015) acerca da inclusão de alunos com deficiência no ensino superior. Alguns estudos assinalam aspetos relacionados com a identidade e especificidades associadas ao ser professor em contextos que se esperam inclusivos (Suc et al, 2017; Thorius, 2016; Waitoller, 2016). Outros estudos centram-se nas políticas educativas, identificando criticamente questões relacionadas com a implementação de modelos e práticas de educação inclusiva (n=2) (Engelbrecht et al, 2016; Hodkinson, 2013). Finalmente, um dos estudos centra-se no uso de metodologias de investigação participativas e no seu papel em educação inclusiva (Eldera & Odoyob, 2018). Se por um lado, esta diversidade de problemas de investigação põe em evidência a complexidade do campo de estudo, por outro lado, aponta para a necessidade de alguma sistematização e articulação dos resultados dos diferentes estudos.
Foi, também, objetivo deste trabalho explorar as características metodológicas dos estudos de grounded theory aqui incluídos. Ainda assim, tratando-se de um estudo exploratório, optamos por uma análise global do uso da metodologia nestes estudos. A maioria dos estudos aqui incluídos refere-se à grounded theory na secção de análise de dados, assinalando essencialmente aspetos relacionados com o processo de codificação para explicitar o uso desta metodologia (e.g. Sempowicz et al., 2018; Waitoller, 2016). Em alguns casos, há referência ao modelo de grounded theory adotado (e.g. Eldera & Odoyob, 2018). Outras características da grounded theory, como a amostragem teórica, a saturação teórica ou a teoria substantiva, não são referenciadas nos estudos aqui incluídos. Há, ainda, a referir a existência de dois estudos que não referem explicitamente a grounded theory como metodologia, mas adotam a referência “comparação constante” como equivalente, pelo que foram aqui considerados (e.g. Engelbrecht et al., 2016).
Parece, então, que os estudos aqui apresentados consideram alguns elementos que constituem as condições básicas da grounded theory, mas não a sua totalidade. Reconhecem-se algumas dificuldades na operacionalização da amostragem e saturação teóricas bem como a ausência de referências aos critérios e formas de avaliação da teoria e do processo de investigação qualitativa.
4. Conclusões
A grounded theory é uma metodologia de investigação qualitativa que progressivamente tem vindo a ganhar adeptos, nomeadamente na Educação (Charmaz, 2003, 2006; Pidgeon & Henwood, 1997). O seu objetivo último é gerar teoria e, deste modo, contribuir para leituras integradas acerca dos fenómenos em estudo. Por este motivo, parece-nos ser uma metodologia capaz de potenciar a investigação sobre a Educação Inclusiva.
Com este trabalho, procuramos explorar de que modo a grounded theory tem sido utilizada em estudos sobre educação inclusiva e os contributos destes mesmos estudos para o campo em análise. Sendo um estudo exploratório, justifica desenvolvimentos futuros com recurso a estudos mais aprofundados de revisão de literatura.
Os estudos realizados na Educação Inclusiva, e aqui apresentados, descrevem pontos essenciais de aplicação da metodologia. Ainda assim, mantém-se a questão da garantia das condições básicas propostas pelos autores originais (e.g. procedimentos específicos de codificação ou de amostragem teórica). A análise exploratória dos estudos aqui incluídos traduz a necessidade de um maior aperfeiçoamento no uso da metodologia no sentido da construção de teoria em educação inclusiva, por considerarmos a relevância da mesma na exploração de dimensões específicas que se prendem com as experiências subjetivas das pessoas nos múltiplos contextos de vida.