Introdução
Desde 2017, vem-se realizando um programa de investigação voltado para compreensão, apoio e visibilidade de pessoas e comunidades em situação de vulnerabilidade na cidade histórica de Ouro Preto, em Minas Gerais, Brasil (Assis; Prado, 2021). Esses estudos são realizados com pessoas de diferentes identidades: estudantes universitários, mulheres, pessoas com deficência, profissionais e usuários de serviços de saúde mental, pessoas e comunidades atingidas por barragens e desastres sociotecnológicos. Em diferentes contextos e posições sociais, essas pessoas compartilham um conjunto de aspectos individuais e coletivos, contextuais e territoriais, que as deixam suscetíveis aos adoecimentos e à desproteção social, e muitas vezes, com pouco ou nenhum recurso para a proteção e a cidadania (Ayres et al, 2009). Nesse contexto de vulnerabilidades, é imprescindível a presença de pessoas e comunidades para participar de grupos focais e rodas de diálogos com objetivo de produzir conhecimento sobre suas situação e necessidades de saúde. Para tanto, convites têm sido realizados para que conheçam o programa de investigação que busca produzir conhecimento dos elementos abstratos e concretos, associados e associáveis aos processos de saúde e adoecimentos, revelando os nexos e as mediações, seus determinantes e integralidade, que permitam intervir sobre a suscetibilidade das pessoas, ou seja, reduzir a vulnerabilidade delas, promovendo sua saúde e cidadania (Pinheiro et al, 2017).
Ouro Preto, cidade patrimônio da humanidade , guarda em sua história, pelo menos duas raízes fundamentais: o legado do povo negro escravizado pelo regime colinialista e a exploração mineral do território, como fontes de poder e riqueza. Dessas duas fontes históricas, a cidade tricentenária tornou-se município de aproximadamente 75 mil pessoas , distribuídas num extenso território urbano, com construções históricas e monumentos nacionais e religiosos; e rural, com distritos e comunidades que compartilham territórios e tradições de forma ancestral. A raiz histórica do povo negro é expressa demograficamente, tornando Ouro Preto a cidade com maior número de pessoas autodeclaradas pretas ou pardas do Brasil . Práticas religiosas, arte e cultura africanas são reproduzidas em celebrações e rituais (Santos, 2019). A exclusão e a resistência também são legados que marcam a ocupação negra do território e as políticas públicas na cidade, onde, apesar de ter população negra majoritária, reproduz o racismo estrutural da sociedade brasileira (Melo; Castro, 2022), dando manutenção a periferias e margens sociais marcadas pelo abandono e vulnerabilidade social, que habitam o maior número de moradores da cidade monumento (Fonseca, 2016).
Mas é a raiz histórica da exploração mineral como fonte de poder e riqueza que faz de Ouro Preto território atingido (Lana, 2015).
Desde a descoberta e a exploração de ouro, nos séculos XVIII e XIX até os dias atuais, em que o município é ladeado pelas três maiores mineradoras do mundo , o território e as comunidades da cidade histórica são continuadamente ameaçados, explorados e atingidos pela mineração industrial, que destrói e compromete o meio-ambiente e laços comunitários, produzindo, entre capital financeiro e riqueza, desterritorialização, adoecimentos e mortificação social (Freitas, et al, 2019). A exploração mineral do território de Ouro Preto produz historicamente três situações de vulnerabilidade em que sucumbem a maior parte da população da cidade: a) o comprometimento do meio-ambiente e recursos naturais vitais para comunidades e grupos; b) os adoecimentos físicos e psicológicos ligados à desterritorialização dos processos de saúde, com danos à saúde, à saúde mental e ao sistema de saúde das comunidades; c) a “mínero-dependência” nas relações sociais, de modo que toda a vida econômica e subjetiva das pessoas e comunidades passam a depender, e serem incorporadas, compulsoriamente, ao regime de exploração mineral do território (Blechler; Pereira, 2015). As condições e necessidades de saúde dos moradores e moradoras de Ouro Preto são, ao mesmo tempo, produto e processo desses determinantes históricos e sociais da ocupação, disputa e exploração mineral do território (Bezerra et al, 2017).
Ouro Preto é também sede da Universidade Federal que leva seu nome, a UFOP. A universidade tem sua origem nas duas primeiras escolas superiores da América Latina, a de Minas e a de Farmácia, tornando-se destino de milhares de estudantes de todo país, ao longo dos anos (UFOP, 2023). Os estudantes universitários representam um grupo de grande expressão social na cidade, marcando-a historicamente com sua organização social, as repúblicas e moradias estudantis; com suas necessidades e reinvidicações, na forma da luta política pela assistência estudantil e direito à saúde; e organização política, constituindo o movimento estudantil e sistema republicano (Machado, 2007). Os estudantes universitários integram o território de Ouro Preto como comunidade ativa na história da cidade, mas, também, como grupo em situação de vulnerabilidade social e programática, pois se situam à margem e dependentes de políticas sociais que concretizam o papel social da Universidade e também da cidadania, já que, por um período de alguns anos, torna-se um morador estável da cidade, e, nesse aspecto, a sua maior depenência é quanto à assistência da saúde pública no município (Figueiredo et al, 2014).
É nesse território de diversidade, marcado pela vulnerabilidade dos sujeitos históricos, que se tem realizado investigação qualitativa para produção de conhecimento que possa contribuir com a superação dessas sucetibilidades, na forma de uma resposta social aos problemas que marcam a vida das pessoas em Ouro Preto. Busca-se conhecer interesses, limites e peso dos diferentes contextos sociais como determinante de diversas suscetibilidades e criar alternativas técnicas sensíveis a essas diferenças, capazes de serem efetivas na direção da mudança de sua condição de saúde e vida (Prado; Assis, 2021).
O objetivo desse ensaio é refletir sobre o uso das práticas grupais, especialmente o grupo focal e as rodas de diálogo, na realização do programa de investigação com pessoas e comunidades em situação de vulnerabilidade em Ouro Preto. Para além da descrição e análise das técnicas e dos processo grupais, há uma necessidade intensa de discutir como as práticas grupais e a própria investigação qualitativa são, ao mesmo tempo, produto e processo de intervenção social (Minayo, 2010). Para isso, utilizam-se “os sentidos da roda”, expressão que aponta para circularidade e integralidade entre pesquisa e ação social para promoção e construção da saúde coletiva, em sua forma política, do direito à saude, e assistencial, no cuidado às pessoas e suas necessidades.
Enquanto ensaio, o trabalho pretende uma conversa pela qual conhecimentos ancestrais e coletivos são convocados para expressar resistência e atualização epismológica, numa modalidade de escrita capaz de reformar os modos de “produção” e “distribuição” do conhecimento, superando a hegemonia de um modelo homogeneizante e suas respectivas estandardizações mortificantes do pensamento genuinamente crítico (Mendonça, 2017). Ou seja, é um convite e manifesto à produção de conhecimento que, dialeticamente, una ética, estética, ciência e política. Em síntese, um convite para a escrita e reflexão que recria e transforma a investigação qualitativa em saúde.
A construção da roda: vínculo e cuidado na investigação qualitativa
O programa de investigação toma como fundamento prático as contribuições téoricas, e vivas, dos autores latino-americanos, especialmente Pichon-Riviérie (1982), Baremblitt (1986) e Lancetii (1993), para construção e análise de grupos e coletivos como potências transformadoras; e de Paulo Freire (2018) no uso de técnicas e práticas grupais, as rodas de diálogo, que desolcultam pedaços ocultados do mundo pela ideologia dominante, intensificando a luta política por reconhecimento e direitos dos atingidos e oprimidos.
Com esses fundamentos, a histórica contribuição dos pesquisadores e pesquisadoras brasileiros no desenvolvimento da investigação qualitativa em saúde com uso das práticas grupais (Westphal et al, 1996; Zimmermann; Martins, 2008; Kinalski, 2017) é acionada constantemente, para atualizar, sustentar e legar conhecimentos com consistência científica e implicação social.
Essa trama ancestral de técnicas e análise grupal é a base téorica e prática que sustenta a realização de estudos aprofundados sobre a saúde e mais especificamente a saúde mental de pessoas e comunidades em situação de vulnerabilidade no território de Ouro Preto. Respeitando, antes de tudo, a ancestralidade do território e de seus viventes, foram-se construindo encontros e aproximações desde 2017, quando estudantes univeristários, mulheres, pessoas com deficência, moradores e moradoras de comunidades atingidas por barragens e desastres sociotecnológicos pudessem se apresentar, falar, escutar, conversar suas histórias e identidades. Iniciou-se, então, a construção de rodas de diálogo e grupos focais com essas pessoas, a fim de compreender suas situação e necessidades de saúde.
Sentar-se de modo a fomar um círculo, demonstrando segurança e acolhimento, construir uma roda de diálogos, onde todos possam se expressar com liberdade, foi o modo de iniciar a produção de conhecimento que contribua com promoção da saúde coletiva dessas pessoas.
Os grupos e rodas são construídos pelo convite, agendamento e preparação do lugar onde será o encontro. O acolhimento, como política e postura (Chauchard, 1973), é fundamental nessa construção, materializando-se na oferta de espaços traquilos, aprazíveis, seguros e acessíveis para o encontro das pessoas. Essas são recebidas e acolhidas, de modo a se sentirem seguras para participar da prática grupal. O círculo precisa ser construído pelos próprios participantes, pois nunca se faz a roda antes deles. Cada um pode escolher seu lugar de fala, mobilizar-se pelo/no grupo, assentar-se como pessoa, mas também como sujeito na roda. Dessa forma, a construção da roda é o primeiro momento da produção de conhecimento, pois revela como cada participante chega, se mobiliza e entra na prática grupal (Rogers, 2009).
Tendo construído a roda, o grupo se realiza por meio de técnicas grupais, cujo objetivo é o estabelecimento de vínculo entre os participantes, e nessa relação humanizadora e crítica (Barbossa; Bosi, 2017), possa realizar a tarefa grupal de produzir conhecimento sobre suas vidas e saúde (Dall’agnol, 2012). O vínculo enquanto unidade grupal não se estabelece somente pelo compartilhamento das experiências e conversas. Ao promover o reconhecimento, enquanto ética do encontro entre sujeitos, as rodas de diálogo e grupos focais intensificam a correspondência de potenciais, elaborando intersubjetividades que afetam os participantes. Esse “despertar para o outro” (Freire, 1976) ou “encontros do cuidado” (Cecílio, 2009) possibilitam a elaboração de relações de amizade, solidariedade e apoio mútuo, aumentando poder e autonomia dos sujeitos, os empoderandos (Vasconcelos, 2003).
Ao chegar e participar do grupo focal e roda de diálogo, os sujeitos acabam por elaborar vínculo, compartilhando, inclusive com os pesquisadores, identidades, histórias, sofrimentos, emoções. Essa torrencial experiência grupal dinamiza as diferentes expressões dos sujeitos: a conversa dá conta das histórias; o choro, sorrisos e abraços dão conta das emoções, a narrativa e o processo grupal dão conta da produção de conhecimento. É assim que estudantes universitários compartilham suas práticas e redes de cuidado de modo a garantir sua saúde (Ferreira; Assis, 2021); mulheres lamentam e enfrentam a misogenia das práticas machistas (Gonçalves, 2021; Ferreira, 2021); atingidos e atingidas acolhem o sofrimento e insegurança de viver em território ameaçado pela exploração mineral (Assis et al, 2020). Ou seja, nas práticas grupais utilizadas no programa de investigação, o vínculo enquanto relação de reconhecimento é sustentado e produzido pelo cuidado compartilhado pelos participantes da roda. O cuidado é assim, produto e meio pelo qual os participantes relacionam-se nas práticas grupais. O cuidado é o horizonte que os sujeitos estabelecem ao se encontrar e realizar o grupo (Ayres, 2004).
Cuidado e vínculo são elementos fundamentais para análise e uso das práticas grupais na investigação qualitativa, em sentido amplo, por questionar a suposta imparcialidade da razão científica, reorganizando sujeitos e produção do conhecimento (Barbour, 2009); e em sentido estrito, por deslocar, dos pesquisadores e dos próprios participantes, a centralidade na produção do conhecimento, passando-a ao próprio grupo, ao coletivo de histórias e saberes que formam, centra-se então na intersubjetividade, como ação coletiva transformadora (Lane, 1989).
De forma intensiva e transcendente, as práticas grupais podem, então, promover o encontro entre sujeitos históricos, que, juntos, podem despertar e construir o cuidado que precisam e merecem, em outras palavras, formar grupos operativos de saúde coletiva (Assis et al, 2010).
A investigação qualitativa é assim, canal e possibilidade, de integrar a participação de todos os agentes sociais envolvidos nos problemas em análise, seja porque realizam, seja porque sofrem com as intervenções ambientais e sociais que repercutem na saúde e que, a partir da saúde coletiva, produzem efeitos recursivos, que podem transformar ou manter suas realidades (Minayo, 2010).
A construção da roda simboliza o encontro entre sujeitos, histórias e posições sociais, que ensejados pelo compartilhamento de suas identidades, produzem conhecimento contextualizado, que leva em conta a origem e a historicidade, os consensos e os conflitos que marcam suas relações socias. É assim que o vínculo que estabelecem é sustentado pelo cuidado entre os sujeitos do grupo, que, ao se sentarem na roda, acabam por se ligar pelo acolhimento e apoio mútuo.
Construir uma roda de diálogo ou grupo focal tem sido assim construir espaços de encontros entre sujeitos, com o objetivo de intensificar o máximo possível esse encontro, potencializando o processo grupal como resultado do encontro de potenciais e subjetividades, na direção da produção de conhecimento vivo, coletivo e transformador.
Os giros da roda: técnica e processo grupal
Ao longo do tempo, foi-se incorporando e desenvolvendo técnicas que favorecessem o uso das práticas grupais na realização do programa de investigação. Esse aprendizado e atualização são responsáveis pela perspicácia de utilizar diferentes modos e formas de promover, com segurança e qualidade, a coleta de informações e narrativas. De modo a ser capaz de, ao analisar os grupos e rodas, possa-se revelar os saberes e histórias que fazem, do encontro e seus participantes, autores e responsáveis pelo conhecimento que produzem. Esse engajamento e autonomia na produção do conhecimento é, sem dúvida, o destaque que se tem na realização de investigação com uso de práticas grupais. Ou seja, os grupos e rodas podem propiciar a “reconstrução” da vivência coletiva e levar a emergência de novas configurações sociais (Bohnsack, 2020).
Para isso, há necessariamente que formar uma “caixa de ferramentas” (Abraão; Mehry, 2014), contendo conceitos, técnicas, experiências e afetos que possam ajudar na construção e na realização das práticas grupais na investigação qualitativa em saúde.
Estar pronto e preparado para “lidar com as tensões”, “acolher e escutar o outro, do jeito que o encontra”, estar aberto ao “devir” do trabalho vivido são algumas das “intersessões” necessárias ao pesquisador que se debruça sobre os agenciamentos dos sujeitos na vida social.
Com este desafio, passou-se a utilizar o grupo focal, enquanto técnica estruturada da investigação qualitativa, para “encurtar” ou ainda “combinar” as lacunas e distâncias entre agência e estrutura que definem os sujeitos participantes, localizando as subjetividades dentro dos contextos sociais, um empreendimento criativo (Barbour, 2009).
Em outra via, a roda de diálogo é utilizada em suas funções “restaurativa” e “formativa”, como nos “círculos de cultura”, de Paulo Freire (1991), para acolher e (in)formar os participantes de modo integral, rompendo com a fragmentação social, promovendo uma tomada de posição perante os problemas vivenciados em determinados contextos.
Como ponto de flexão e junção no uso das duas modalidades há a necessidade de fazer do empreendimento da investigação a construção de uma prática dialógica em pesquisa, que possibilita o exercício de pensar compartilhado, com intencionalidade “clínica”, na medida que toda prática grupal, envolve necessariamente, aspectos “curativos” e “reconstrutores” (Figueirêdo; Queiroz, 2013).
Munidos dessas “ferramentas” sensíveis, estão sendo elaboradas duas técnicas para realização de grupos focais e rodas de diálogo com pessoas e comunidades em situação de vulnerabilidade: os três giros da roda e as três rodas de pesquisa.
A técnica dos três giros é utilizada para realização de grupos focais com participantes que são reunidos apenas uma única vez. A sessão grupal é iniciada com a construção da roda, seguida da técnica grupal dos três giros, no qual, no primeiro giro, uma técnica grupal leve e divertida é utilizada para possibilitar aos participantes que se apresentem, da forma que preferirem, e possam, ao seu jeito e modo, ir se aproximando e se ligando aos demais participantes. Seguir a circularidade da roda ou estimulá-los que convidem e se interessem pelo “outro” do lado é um modo fácil de propriciar o encontro grupal.
No segundo giro, os participantes são convidados a discutir o tema ou objetivos da prática grupal. Os problemas de saúde, os modos de tocar a vida, as resistências e afirmações são acionados pela fala livre, pela escuta atenta e participação ativa de todos na roda. É comum que, nesse giro, a roda se dinamize. Os participantes se engajam em debates, acontece por vezes a emergência das emoções e suas expressões, como o choro. Nesse giro, o acolhimento é a política que garante que circule na roda a energia catalizadora do processo grupal.
O terceiro giro busca dar conta de finalizar a roda de modo a ajudar os participantes a sintetizar o conhecimento produzido, reunir e recompor a individualidade e histórias compartilhados, e especialmente, garantir que o vínculo elaborado na prática grupal, seja sustentado na forma de novas relações. É assim que o “giro do abraço” ou apenas, dizer “o que estou levando da roda”, enseja a finalização da roda como forma de acolhimento e restauração grupal. As sessões duram em média de 120 a 180 minutos, tendo como ponto de saturação limite a própria dinâmica da roda, pois é perceptível quando os giros e paradas da roda se estabelecem. Abaixo, apresenta-se ilustração que resume a técnica grupal dos três giros para realização do grupo focal ou roda de diálogo:
Quando a investigação carece de incursões mais longas, convivência estendidas entre os participantes e aprofundamento dessa vivência e conhecimentos, utiliza-se a realização de três sessões, intercaladas. Utiliza-se a técnica das três rodas como guia para esse aprofundamento grupal.
A primeira roda acolhe e recebe os participantes que são convidados a se apresentarem, criar e estabelecer o vínculo como ligação e pertencimento ao grupo. São estimulados a realizar as primeiras discussões sobre os temas da investigação. Na segunda roda, é discutido o tema principal da investigação de forma aprofundada. Os participantes são convocados a produzir conhecimento consistente, enfrentando desconhecimentos e preconceitos para elaborar a conciência grupal sobre o tema.
A terceira e última roda traz o desafio da construção do conhecimento em sua forma mais acabada, atualizada e elaborada coletivamente. Nessa terceira sessão os participantes estão plenamente vinculados e o processo grupal é capaz de ascender a roda a uma elaboração consciente da grupalidade, forçando e reforçando os deslocamentos subjetivos que a prática grupal possibilita. Como resultados tem-se pelo menos dois desfechos: a elaboração de vínculos suficientemente fortes para se sustentar para além da prática grupal, e uma genuína e inédita obra coletiva de saberes compartilhados.
Dessas rodas e grupos, sempre se espera resultados que transcendam os objetivos da insvestigação. Abaixo, ilustra-se a técnica das três rodas para utililização na investigação qualitativa em saúde:
Ao que se refere às técnicas grupais, chama-se atenção de que são esses dispositivos que promovem a circularidade e o vínculo entre os participantes. São práticas que envolvem o corpo, as emoções e os afetos dos sujeitos. Enquanto técnicas, precisam estar focadas no objetivo da prática grupal, que é o estabelecimento e a vivência do processo grupal, entendido não como a superação das individualidades, mas sim a ligação profícua dessas, uma identidade grupal capaz de produzir transformação e conhecimento dos e para os participantes. Em outras palavras, as técnicas grupais devem propiciar a superação da fragmentação social que impele ao individualismo e ao isolamento, na direção de não somente executar “a tarefa” grupal, mas de entrar em processo grupal, agindo de modo a não se “re-ajustar”, mas de fazer a transformação, passar de agrupamento a grupo-sujeito (LANE, 1989).
Uma rede de rodas: pesquisa e ação social
Parte-se da convicção de que o processo grupal é condição necessária para conhecer os determinantes sociais que agem sobre as pessoas, mas é também com sua constituição e dinâmica, na forma dos sujeitos coletivos, que é possível realizar a transformação ou manutenção dessa determinação. Ou seja, quando os sujeitos históricos agrupam-se, tem-se uma ação transformadora desses sujeitos e do espaço social que compartilham. Todo grupo é, por assim dizer, precursor da função histórica de manter ou transformar a realidade social (Lane, 1989).
Ante isso, questiona-se: qual função teria o processo grupal num programa de investigação? Se “a tarefa grupal” não se esgota na coleta de dados nem nos objetivos e objetos da investigação, qual destino damos aos “inéditos viáveis” que produzimos em cada grupo focal ou roda de diálogos que realizamos? Pesquisa ou revolução? Pode a investigação qualitativa ser também ação social transformadora?
A busca da integralidade, como princípio e valor da investigação qualitativa em saúde tem sido o caminho para responder a essas questões, sempre abrindo outras, na forma de uma ação política que une engajamento e pesquisa científica (Assis, 2019).
Passa-se pela construção de redes de relações e coalizões (Boissevain, 1976), que dão sustentabilidade à prática investigativa, na medida em que essa se articula, integralmente, à ação política dos sujeitos participantes das práticas grupais. Ou seja, busca-se, com a prática investigativa, construir uma rede de rodas e grupos que fomente, integre e ligue diferentes pessoas e comunidades, num processo grupal que se dirige para a produção de conhecimento e subjetividades, para a construção e a transformação da realidade de forma coletiva. Unir definitivamente pesquisa científica e ação política como afirmação prático-teórica da investigação qualitativa em saúde, em síntese, é sempre realizar uma pesquisa-ação (Tripp, 2005).
A mesma rede que se forma em cada roda estende-se para outras formas de interação entre os participantes. A inter-relação entre várias rodas, pela existência de identidades, histórias e sofrimentos compartilhados, estabele uma rede afetiva mais complexa, cuja estrutura está sempre aberta. Descrever essas redes, ao mesmo tempo que as percorrer na investigação em saúde, é sempre uma forma de forjar e contar uma história (Warschauer, 2001).
Essa rede de rodas que se formou com a realização do programa de investigação integra pessoas e comunidades, que, apesar dos diferentes contextos sociais que os abarcam, compartilham condições particulares de saúde. São jovens e adultos que, vivenciando a experiência universitária, enfrentam e aproveitam regimes de sociabilidade e confronto social intensos, compartilhando a identidade de “estudante morador de república”. Mulheres de todas as idades analisam e transformam os sentidos de “ser mulher” em espaços sociais marcados pelo machismo institucionalizado. Ao compartilhar suas resistências, as mulheres acabam por criar espaços onde se pode ser e fazer o que quiser. Quando essas mulheres vivem a condição de “atingidas” por barragem ou pela exploração mineral, o grupo exerce sua função terapêutica, acolhendo e empoderando aquelas que seguem “lutando”. Ou seja, a rede de rodas une as vozes, histórias e ações de sujeitos historicamente desconectados, porém infinitamente ligados à mesma condição histórica de “oprimidos”, de “atingidos”. Essa “jardinagem das subjetividades” parece ser o território comum que as rodas encejam aos sujeitos participantes (Dutra; 2022).
A principal contribuição do processo grupal, a investigação qualitativa em saúde, pode ser assim apontada pela constituição de uma rede de sujeitos e práticas que podem se identificar, compartilhar suas histórias e saberes, sentar juntos, e, a partir de então, transformar sua realidade, primeiramente produzindo conhecimento sobre ela, ou ainda, elaborando novas formas de habitá-la, de recriá-la. Muda também a própria investigação, passando-a a estratégia de articulação do conhecimento produzido com a ação social do grupo. Enquanto rede de sujeitos históricos, as rodas e grupos focais podem obter a dinâmica de um movimento social (Westphal, 1992).
Esse movimento em rede concerne à investigação qualitativa novas formas de produção de conhecimento, integrando e transformando a relação dos pesquisadores com os sujeitos no processo grupal.
É assim que se rompe com a estruturação que separa sujeito-estrutura, sujeito-objeto, sujeito-conhecimento, para se lançar numa prática investigativa que se permite parelhar-se às redes, sentar-se junto aos sujeitos, quando o agir científico, investigativo se une e se movimenta juntamente com o agir social, o agir grupal, coletivo.
Realizar o programa de investigação qualitativa utilizando o grupo focal e as rodas de diálogo tem sido, assim, uma forma de se apropriar e se integrar ao movimento social de transformação e superação das suscetibilidades das pessoas, que buscam sair da condição de vulnerabilidade para a de sujeitos do conhecimento e, por isso, sujeitos coletivos. Essa grupalidade tem sido a primeira expressão da mudança social dessa pessoas.
Nessa jornada de pesquisa e aprendizado, tem-se conseguido produzir conhecimento, ao mesmo tempo que o devolve imediatamente aos seus autores e à comunidade acadêmica. Convocando e sustentando o processo grupal que dinamiza, expande e transcende participantes e pesquisadores, na direção de se aproveitar ao máximo todos “os sentidos da roda” na investigação qualitativa em saúde.
Considerações Finais
Ao finalizar esse texto, esse ensaio, o objetivo é sintetizar as experiências aqui analisadas, integrando-as em três grandes aprendizados:
A investigação qualitativa é um processo de produção do conhecimento que transcende o campo científico, localizando-se em toda ação social de apropriação e de criação do mundo. Por isso, seus pesquisadores são defensores de uma sociedade democrática e livre, que se recusa a se cristalizar e a se definir por idealizações e poderes. É, por assim dizer, uma forma expressa de informar e produzir a própria realidade social, quando se debruça, estuda e investiga sua complexidade e formas. Toda investigação é assim, uma ação que contribui com o processo social.
As práticas grupais, em todas as suas técnicas e usos, são potentes e expansivas formas de produzir conhecimento, e por isso, ferramentas valiosas na investigação qualitativa em saúde. Isso porque, por um lado, possibilitam o encontro de sujeitos, detentores e produtores de saberes e práticas, com suas identidades e histórias, podendo, nesse encontro, vincular-se, compartilhar sofrimentos e resistências, instituir-se num processo grupal, que os passam a sujeito coletivo, capazes de se apropriar e transformar sua realidade. De outro lado, os grupos focais e rodas de diálogo podem transcender à investigação e servir de articulação, construir redes de sujeitos e práticas, capazes de acionar diferentes recursos subjetivos e territoriais para modificar suscetibilidades, num apoio mútuo e empoderados, construir novas formas de sociabilidade, cuidado e saúde coletiva. São assim potentes formas de investigação e ação social.
Ao realizar grupos focais e rodas de diálogo, é preciso ter consciência de que as técnicas, procedimentos e objetos da investigação não são capazes, por si mesmos, de garantir a produção do conhecimento.
São os sujeitos, entre eles os pesquisadores, que, ao se apropriar da realidade e elaborar suas identidades e vínculos, têm a chance de se afetar, de modificar suas próprias subjetividades, forjando o processo grupal. Sendo assim, as rodas de diálogo, os grupos focais, o encontro da pesquisa serão sempre um devir que se presentifica na ligação estabelecida entre os participantes, mas, fundamentalmente, na tomada de ação e consciência do conhecimento, coletivamente. É nesse instante, durante os giros da roda, é que se tem a forma mais elaborada do encontro entre ciência e política, entre saber e sentir. As práticas grupais são assim, dispositivos de conhecimento, mas também de acolhimento e empoderamento dos sujeitos.
Com essas reflexões, busca-se demonstrar as potencialidades das práticas grupais na investigação qualitativa com grupos e populações vulneráveis, apontando suas reverberações e indigência social, que aponta para processos grupais de vinculação e mobilização social. Dessa forma, as práticas grupais podem revelar e instituir formas inéditas de acolher e empoderar pessoas, grupos e comunidades em situação de vulnerabilidade.
Finalmente, o que se quis foi apresentar essas potencialidades e reflexões com base na experiência e vivência no território vivo e histórico de Ouro Preto, que corresponde a tantos territórios, grupos e comunidades de outros lugares, que podem, por meio do processo grupal, produzir conhecimentos, saberes e práticas para a mudança social
Agradecimento a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais - FAPEMIG, pelo financiamento do programa de extensão e pesquisa “De mãos dadas com Antônio Pereira” (APQ-03101-22).