A pandemia da COVID-19 alterou o cotidiano dos indivíduos e dos grupos sociais, especialmente de famílias com crianças na primeira infância, as quais foram afastadas da sua rotina escolar e mantidas em isolamento social como medida de contenção da doença (OMS, 2020). Estudos têm apontado que a pandemia trouxe desafios específicos para as famílias, com impactos para a relação entre os membros familiares e para a construção da parentalidade dos cuidadores (Fontanesi et al., 2020; Spinelli et al., 2020).
Faro et al. (2020) propõe a noção de períodos de crise que pode ser adotada quando se avalia um momento crítico para a população mundial, como a pandemia da COVID-19. O primeiro seria o período pré-crise, que pode se referir ao momento quando se descobriu a doença, se disseminou as principais informações sobre o problema e se deflagrou a pandemia; no segundo momento, chamado de período intra crise, definido quando houve o aumento dos casos da doença, com a constatação do problema; e o período pós-crise, que pode se referir quando houve o declínio dos números de casos e se torna necessário uma ampla reconstrução social em termos de diminuição das medidas de proteção e retorno gradual das atividades habituais.
No caso das crianças com deficiências, muitos tiveram suas aulas e tratamentos suspensos durante a pandemia, especialmente nos períodos pré e intra crise, ou ofertados de forma remota, principalmente nos períodos intra e pós crise. Além disso, as famílias dessas crianças passaram, durante os diferentes períodos da pandemia, por dificuldades financeiras devido ao fechamento de empresas, o que teve impactos familiares, inclusive, para a continuidade dos tratamentos (Shaw et al., 2022). Ainda assim, poucos estudos têm buscado entender os efeitos da pandemia da COVID-19 entre pais de crianças com deficiências, especialmente com deficiência auditiva (DA), cujas dificuldades de comunicação já representam riscos às relações familiares (OMS, 2021).
A deficiência de uma criança traz repercussões para o contexto familiar, com modos específicos de enfrentamento da deficiência (Cunha et al., 2021), inclusive com repercussões diferentes para pais e mães (Silva et al., 2016). Tudo isso traz desfechos para a parentalidade dos pais (Garbelini et al., 2022), definida por Houzel (2004) como o conjunto de processos com conteúdos psicoafetivos que se desenvolvem e se integram em uma construção processual, simbólica e psíquica da maternidade e paternidade. A parentalidade é um processo que se inicia pela criança imaginada e sonhada pelos pais antes do filho nascer, até a criança real, ou seja, o bebê que nasce e que, de fato, deverá ser aceito e cuidado pelos pais (Lebovici, 2004; Stort et al., 2018). Logo, ao descobrir a deficiência de um filho, pais compartilham momentos de ansiedade, angústia e desorganização emocional (Stort et al., 2018), desde o momento da notícia do diagnóstico do filho (Cunha et al., 2016).
Famílias com crianças com deficiências alteram sua dinâmica familiar porque passam por adaptações na sua organização, as quais são necessárias para que elas realizem as diversas tarefas relacionadas ao tratamento, além das que já faziam parte da sua rotina. Tais alterações resultam em uma situação de crise, permeada por tensão, constrangimento, fadiga, estresse, frustração, baixa autoestima, entre outros (Cunha et al., 2021; Silva et al., 2016; Stort et al., 2018). Além disso, há redução do convívio familiar, com consequentes problemas físicos, psicológicos, emocionais e sociais, que afetam o bem-estar do cuidador e, por conseguinte, da criança com deficiência (Cunha et al., 2017; Garbelini et al., 2022). Todos esses problemas têm impactos sobre a parentalidade, com particular atenção aos fatores como a saúde mental parental, a situação socioeconômica da família, a escolaridade dos pais e a disponibilidade de apoio social, que aparecem, como Hensel (2021) observaram, como determinantes da parentalidade.
Neste sentido, estudos sobre este tema são necessários para a compreensão da parentalidade dos pais de crianças com deficiência. Seabra-Santos et al. (2015) mostram que existem relações entre sentimentos de autoeficácia e/ou satisfação dos pais e o comportamento parental, quando pais que se sentem mais eficazes e satisfeitos no seu exercício parental apresentam práticas parentais mais efetivas. Sentimentos de autoeficácia e satisfação dos pais compõem o construto senso de competência parental, que pode ser analisado por medidas de avaliação psicológica, como a Escala de Sentido de Competência Parental, originalmente Parental Sense of Competence Scale (PSOC), construída por Gibaud-Wallston e Wandersman (1978) e validada no Brasil por Moura et al. (2020).
A Escala PSOC fornece indicadores para o estudo da parentalidade baseada no senso de competência parental, avaliado em duas dimensões: eficácia e satisfação. Enquanto a satisfação é uma dimensão de caráter afetiva, que reflete ora a frustração e ansiedade dos pais, a motivação para o papel parental; a eficácia é caracterizada como uma dimensão instrumental, traduzindo o grau em que os pais se sentem capazes de resolver problemas e estão familiarizados com a parentalidade (Johnston & Mash, 1989). Essa escala tem sido usada para avaliar pais de crianças sem deficiências (Freitas, 2019; Tomás, 2019) em diferentes países como Portugal (Nunes et al., 2016), Austrália (Santiago et al., 2022), China (Gao et al., 2014) e Canadá (Bedford, 2020), com raros estudos com populações infantis com deficiências (Afsaneh et al., 2019; Martins, 2013; Osmančević Katkić et al., 2017). Destaca-se que nenhum estudo usando a PSOC com pais de crianças com DA foi encontrado, o que confere relevância científica para este trabalho.
Frente ao diagnóstico de uma DA, como a surdez, muitas decisões precisam ser tomadas e esforços são mobilizados com a finalidade de garantir o melhor desenvolvimento infantil (Narigão, 2019). Com isso, identificar o senso de competência parental de pais de crianças com DA auxilia numa melhor compreensão sobre a construção da parentalidade e das práticas parentais no contexto dessa deficiência, em especial no momento em que vivemos pós pandemia da COVID-19. Dessa forma, o presente estudo tem como objetivo investigar o senso de competência parental de pais de crianças pequenas durante a pandemia de COVID-19, comparando-se pais de crianças com e sem deficiência auditiva.
Método
Trata-se de estudo quantitativo exploratório de temporalidade transversal, que adotou dados da coorte do projeto de pesquisa “Novas Realidades para Antigas Práticas: efeitos da pandemia da COVID-19 sobre o desenvolvimento infantil considerando a parentalidade e saúde mental de pais de crianças típicas e atípicas”, aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Centro de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal do Rio de Janeiro (CFCH-UFRJ), sob o Parecer número 4.536.046, o qual foi conduzido entre Março de 2021 a Abril de 2022, ou seja, durante o período intra e pós-crise da pandemia da COVID-19 (Faro et al., 2020).
Participantes
Participaram do estudo 74 pais e seus filhos, sendo 37 deles com deficiência auditiva (DA), incluídos de acordo com os seguintes critérios: a) pais de crianças com DA (grupo DA) ou pais crianças sem deficiência ou transtornos diagnosticados (grupo controle); b) crianças com idades entre três e seis anos. Foram excluídos pais que estiveram reclusos no sistema prisional durante a pandemia ou aqueles que declararam que faziam uso de substâncias psicoativas com impactos sobre a família. Ressalta-se que o grupo controle foi composto por seleção aleatória (sorteio) dos 37 pais de crianças sem deficiências. A idade média dos pais era de 35 anos (DP= 6,53), e as crianças tinham idade média de 4 anos (DP=1,58) durante o período da coleta.
Material
Protocolo de dados gerais: elaborado especificamente para coletar dados sócio demográficos, psicossociais e clínicos dos pais e suas crianças, bem como sobre a rotina familiar durante a pandemia da COVID-19. Tais dados foram coletados a fim de identificar as alterações na dinâmica, relacional e contextual das famílias, face às medidas de controle da pandemia.
Escala de Sentido de Competência Parental (PSOC): foi usada a versão brasileira (Moura et al., 2020) para avaliar a autopercepção de competência parental. Trata-se de uma medida de autorrelato composta por 17 afirmações que se distribuem em duas dimensões do constructo: 1) Satisfação Parental (itens 2, 3, 5, 7, 8, 9, 12, 14 e 15); e 2) Eficácia Parental (itens 1, 4, 6, 10, 11, 13 e 16). Após inversão dos itens negativos, os escores são obtidos pelo somatório das respostas em uma escala do tipo Likert de seis pontos, que variam entre "Concordo totalmente" e "Discordo totalmente". O senso de competência parental é diretamente proporcional aos valores da pontuação, ou seja, quanto mais alta a pontuação, maior é o senso de competência parental. A versão brasileira da PSOC obteve propriedades psicométricas satisfatórias, com valores do alfa de Cronbach de 0,75 para o fator Satisfação, 0,70 para o fator Eficácia e 0,80 para o total (Moura et al., 2020).
Procedimentos
Os dados foram coletados de maneira presencial e online, quando os participantes eram convidados a participar da pesquisa, quer seja por busca ativa em unidades hospitalares no Estado do Rio de Janeiro, quer seja por convites digitais enviados por e-mails, WhatsApp e/ou por divulgação em redes sociais (e.g., Facebook e Instagram). Adotou-se também a técnica de amostragem “bola de neve” (Vinuto, 2014) para compor a amostra, quando os próprios participantes divulgavam a pesquisa e indicavam outros possíveis respondentes. A coleta de dados foi realizada via Google Form com duração média de preenchimento dos instrumentos de cerca de 60 minutos.
O processamento dos dados do Protocolo de dados gerais foi feito calculando-se a frequência de ocorrência das variáveis sociodemográficas e clínicas das famílias e das crianças, além das variáveis relacionadas ao contexto na pandemia, como alterações na rotina familiar e sintomas e diagnóstico de COVID-19. Para os dados da PSOC, o processamento foi realizado de acordo com as instruções da escala. Os dados foram analisados de forma descritiva, por médias e desvios-padrão, e inferencial, por meio do Teste T de Student, conforme pré-análise da normalidade e homogeneidade da distribuição dos dados. Foi considerado o coeficiente de significância p<0,05 e todos dados foram processados no programa Statistical Package for Social Sciences (SPSS), versão 23.0.
Resultados
A idade dos pais variou de 25 a 47 anos (M=35; DP= 6,53 anos). Nota-se um predomínio de mulheres, ou seja, de mães (91,8%), que, além do cuidado com os filhos, exerciam algum tipo de trabalho remunerado (64,86 %). A maior parte da amostra possuía, no mínimo, ensino superior completo (68,91%). Os dados descritivos dos participantes, comparando-se pais com e sem DA, estão sumarizados no Quadro 1.
Variáveis | Família N=74 | Com DA N=37 | Sem DA N=37 | X2 | |||
N | % | N | % | N | % | p-valor | |
Sexo¹ | 0,355 | ||||||
Feminino | 68 | 91,8 | 34 | 91,9 | 32 | 86,49 | |
Masculino | 8 | 8,2 | 3 | 8,1 | 5 | 13,51 | |
Idade* | 35 ± 6,53 | 33,8 ± 5,9 | 35,6 ± 6,97 | 0,244 | |||
Escolaridade¹ | 0,099 | ||||||
Ensino Fundamental Completo | 1 | 1,35 | 0 | 0,00 | 1 | 2,70 | |
Médio Ensino Completo | 18 | 24,32 | 10 | 27,03 | 8 | 21,62 | |
Ensino Superior Completo | 25 | 33,78 | 12 | 32,43 | 13 | 35,14 | |
Ensino Superior Incompleto | 4 | 5,4 | 4 | 10,81 | 0 | 0,00 | |
Pós-graduação | 26 | 35,13 | 11 | 29,73 | 15 | 40,54 | |
Renda Familiar | 0,365 | ||||||
Menos de um Salário mínimo | 4 | 5,40 | 2 | 5,41 | 2 | 5,41 | |
Um a Três Salários mínimos | 33 | 44,59 | 20 | 54,05 | 13 | 35,14 | |
Três a Cinco Salários mínimos | 12 | 16,21 | 4 | 10,81 | 8 | 21,62 | |
Cinco Salários mínimos ou mais | 25 | 33,78 | 11 | 29,73 | 14 | 37,84 | |
Exerce trabalho remunerado¹ | 0,049* | ||||||
Sim | 48 | 64,86 | 20 | 54,05 | 28 | 76,84 | |
Não | 26 | 35,14 | 17 | 45,95 | 9 | 24,32 | |
Alterações no cotidiano pela pandemia? | 0,068 | ||||||
Sim | 64 | 76,49 | 30 | 81,08 | 34 | 91,89 | |
Não | 10 | 13,51 | 7 | 18,92 | 3 | 8,11 | |
Períodos prolongados (mais de 3 meses) ou excessivo de tristeza, medo, ansiedade | 0,158 | ||||||
Sim | 31 | 41,89 | 13 | 35,14 | 18 | 48,65 | |
Não | 43 | 58,11 | 24 | 64,86 | 19 | 51,35 | |
Conflitos com possível separação conjugal | 0,009* | ||||||
Sim | 15 | 20,28 | 3 | 8,11 | 12 | 32,43 | |
Não | 59 | 79,72 | 34 | 91,89 | 25 | 67,57 | |
Problemas financeiros familiares | 0,816 | ||||||
Sim | 37 | 50 | 19 | 51,35 | 18 | 48,65 | |
Não | 37 | 50 | 18 | 48,65 | 19 | 51,35 | |
Presença de sintomas relacionados à COVID-19 nos pais | 0,143 | ||||||
Sim | 49 | 66,22 | 27 | 72,97 | 22 | 59,46 | |
Não | 25 | 33,78 | 10 | 27,03 | 15 | 40,54 | |
Diagnóstico confirmado de COVID-19 nos pais | 0,238 | ||||||
Sim | 28 | 45,60 | 18 | 48,65 | 15 | 40,54 | |
Não | 41 | 55,40 | 19 | 51,35 | 22 | 59,46 | |
Presença de sintomas relacionados à COVID na criança | 0,029* | ||||||
Sim | 27 | 36,49 | 18 | 48,65 | 9 | 24,32 | |
Não | 47 | 65,51 | 19 | 51,35 | 28 | 75,68 | |
Diagnóstico de COVID-19 na criança | 0,018* | ||||||
Sim | 12 | 16,21 | 9 | 24,32 | 3 | 8,11 | |
Não | 62 | 83,79 | 28 | 75,68 | 34 | 91,89 |
Nota. *M=Média; DP=Desvio Padrão; ¹Frequência absoluta e relativa. O Quadro 2 apresenta os dados clínicos das crianças com DA, ou seja, informações sobre seu acompanhamento terapêutico especializado a fim de se avaliar as mudanças no tratamento da criança devido às alterações do contexto familiar pela pandemia da COVID-19.
Variáveis | Crianças com DA | ||
N | % | ||
Realiza tratamentos especializados | |||
Não faz | 1 | 2,70 | |
Um | 19 | 51,35 | |
Dois | 8 | 21,62 | |
Três ou mais | 9 | 24,33 | |
Tratamento especializado suspenso pela pandemia | |||
Sim | 27 | 72,97 | |
Não | 10 | 27,03 | |
Quantos? | |||
Todos | 20 | 56,76 | |
Pelo menos um | 7 | 18,92 | |
Não se aplica | 10 | 24,32 | |
Tratamento especializado no formato remoto (online) durante a pandemia | |||
Sim | 20 | 54,05 | |
Não | 7 | 18,91 | |
Manteve atendimento presencial | 10 | 27,02 | |
Foi solicitado a realizar os tratamentos da criança em casa? | |||
Sim | 26 | 70,27 | |
Não | 11 | 29,73 | |
Quais? | |||
Fonoterapia | 11 | 24,32 | |
Fonoterapia e outro | 8 | 21,62 | |
Outros | 5 | 13,51 | |
Não informado | 1 | 2,7 | |
Sentia-se preparado para realizar os tratamentos da criança em casa? | |||
Um pouco | 8 | 21,62 | |
Mais ou menos | 11 | 29,73 | |
Muito | 3 | 8,11 | |
Nem um pouco | 4 | 10,81 | |
Com avaliou a frequência/quantidade dos tratamentos em casa? | |||
Pouco | 9 | 24,32 | |
Adequada | 17 | 45,95 |
Nota. ¹Frequência relativa (%)
No Quadro 3 observam-se as diferenças entre as médias dos escores da escala PSOC analisadas pelo Teste T de Student, comparando os pais de crianças com e sem DA. Os resultados demonstraram que os pais de crianças sem deficiência tiveram escores maiores (M= 46,40; DP = 8,58) do que pais de crianças com DA (M = 38,29; DP = 3,14; t(72) = -5,39, p < 0,05). O mesmo ocorreu para os resultados das subescalas Satisfação (t(72) =-5,95, p<0,05) e Eficácia (t(72) =-4,21, p < 0,05).
Discussão
As medidas de contenção da pandemia da COVID-19 afetaram diretamente a rotina das famílias, bem como o exercício da parentalidade e as práticas parentais dos pais, especialmente daqueles de crianças com deficiências (He et al., 2021; Polizzi et al., 2022; Vilela, 2020). Os resultados descritos neste trabalho confirmam a hipótese inicial de que pais de crianças com Deficiência Auditiva (DA) sentiram-se, durante a pandemia, menos competentes no exercício da sua parentalidade, tanto do ponto de vista da satisfação quanto da eficácia parental. Nossos achados sugerem que tais diferenças poderiam ser explicadas pela diversidade nas rotinas familiares e vivências destes dois grupos durante a pandemia, quando os pais de crianças com DA declararam alterações no acompanhamento e tratamento especializados de seus filhos. Das 36 famílias, cujas crianças seguiam em tratamento especializado com um até três atendimentos antes da pandemia da COVID-19, 75,68% tiveram os atendimentos inicialmente suspensos. Suas dinâmicas familiares também foram afetadas pela pandemia, uma vez que 70,27% deles foram solicitados a realizar os tratamentos com a criança em casa, com apenas 8,11% deles se sentindo muito preparados para tal.
Os efeitos da pandemia da COVID-19 repercutiram de forma diferente para os grupos estudados, considerando que houve alteração na rotina do tratamento especializado das crianças com DA. Para ambas as famílias, entretanto, desfechos diferentes podem ter ocorrido segundo a origem socioeconômica familiar. Destaca-se que os dois grupos estudados, pais e filhos com e sem DA, tinham perfis socioeconômicos (renda e escolaridade) semelhantes, embora tenha participado um maior número de pais de crianças com desenvolvimento típico que possuíam trabalho remunerado. Decerto, essas características, embora semelhantes, influenciaram suas estratégias de lidar com os efeitos da pandemia sob a dinâmica familiar, desde suas práticas parentais até os atendimentos especializados, como no caso das crianças com DA. Além disso, as crianças com DA tiveram mais sintomas e foram mais diagnosticadas com COVID-19 do que as crianças típicas. O medo dos agravos e sequelas da COVID-19, a falta de informação sobre esse vírus, as dificuldades com o sistema de saúde, e o desconhecimento sobre a evolução e prognóstico da doença para uma criança que já possuía deficiência, são alguns dos fatores que podem ter aumentado o nível de estresse e de ansiedade dos pais. Assim, supõem-se que essas diferenças entre os grupos podem ter influenciado no cuidado e na atenção dispensada às crianças com DA durante a pandemia e, consequentemente, no exercício da parentalidade de seus pais.
Relativamente à parentalidade, estudos anteriores à pandemia já destacavam diferenças parentais entre famílias de crianças com e sem deficiências, uma vez que os pais de crianças com algum tipo de deficiência tendem a apresentar menor senso de competência parental, quando comparados com os de crianças com desenvolvimento típico, considerando-se tanto fatores pessoais, como as características da criança (Afsaneh et al., 2019; Martins, 2013), quanto fatores contextuais, como o suporte social (Martins, 2013), econômico (Osmančević Katkić et al., 2017) e familiar (Afsaneh et al., 2019; Osmančević Katkić et al., 2017). Estudos como os de Polizzi et al (2022) e He et al. (2021) apontam que as alterações no cotidiano causadas pela pandemia da COVID-19 podem ter tido repercussões diferentes para as famílias de crianças com deficiências, podendo ocasionar, por exemplo, o que se chama de burnout materno (Polizzi et al., 2022).
Com a saúde mental mundial afetada pelo medo de contágio da doença (OMS, 2020), os pais de crianças pequenas se sentiram ainda mais inseguros, tanto pela sua saúde como a dos seus filhos, o que repercutiu em sobrecarga emocional, com consequências para suas práticas parentais, especialmente para os pais de crianças com DA, cujas famílias apresentam peculiaridades. Tais peculiaridades precisam ser consideradas ao se estudar a parentalidade e as diferenças no senso de competência parental entre as famílias do estudo. Pode-se observar, por exemplo, que as famílias das crianças com DA tiveram que lidar com os impactos da pandemia na sua parentalidade, quando tiveram, por exemplo, que adaptar suas práticas parentais para realizar os tratamentos especializados das suas crianças de forma remota, mas sem o devido apoio ou preparação para enfrentar mais essa dificuldade no seu cotidiano parental e familiar.
Considerando as dificuldades de comunicação entre pais e crianças com DA (Narigão, 2019), estes impactos podem ter efeitos sobre seu senso de competência parental, como observado neste estudo. Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS, 2021), 90% das crianças com DA nascem de pais ouvintes. Pesquisas com estas famílias demonstram, ainda, que pais ouvintes têm dificuldades em desenvolver uma comunicação significativa com filhos com perda auditiva, o que impacta na gestão do comportamento da criança (Narigão, 2019). Neste estudo, a amostra de famílias de crianças com DA era composta somente por pais ouvintes de crianças menores de seis anos de idade, o que pode interferir sobremaneira na comunicação deles com seus filhos e, consequentemente, na sua autopercepção da eficácia parental. Ademais, estudos recentes verificaram significativa correlação entre a dificuldade na comunicação e/ou o comportamento das crianças e o senso de competência parental (He et al., 2021; Tomás, 2019).
Destaca-se que novos desafios foram enfrentados por pais de crianças com DA em relação ao acompanhamento terapêutico infantil durante os períodos mais críticos da pandemia. Como mencionado, 75,68% das crianças tiveram seus tratamentos suspensos, 54% receberam atendimento de forma remota, 70,27% tiveram que realizar atividades de reabilitação em domicílio, sendo que apenas 8,11% se sentiam bem preparados para realizar essas atividades. Lima et. al. (2019) apontam que o acolhimento e as orientações às famílias, em especial de crianças com DA, são pontos-chave para a adesão ao processo de intervenção terapêutica, salientando a importância da família no acompanhamento infantil. Relatório Mundial sobre Audição da OMS (2021) afirma, ainda, que a participação dos pais e suas famílias nos cuidados de uma criança surda é um forte preditor de resultados positivos no tratamento infantil. Com isso, ressalta-se a importância das famílias estarem envolvidas desde o início do tratamento e fazerem parte de toda tomada de decisões (OMS, 2021).
Por sua vez, este envolvimento da família se relaciona diretamente ao senso de competência parental, tendo melhora desse indicador quando os pais participam de grupos de apoio (Tomás, 2019). Pesquisas recentes apontam, ainda, que a percepção dos pais sobre as dificuldades dos filhos no cotidiano pode estar relacionada ao funcionamento familiar, ao estresse e ao senso de competência parental em casos de pais de crianças com transtornos do neurodesenvolvimento (Auriemma et. al., 2021; Schiltz et. al., 2022). Da mesma forma, as mudanças sentidas pelas famílias de crianças pequenas com DA, e as dificuldades enfrentadas por estas durante a pandemia da COVID-19, podem ter sido fatores que repercutiram negativamente na autopercepção de eficácia e na satisfação parental daqueles pais.
Outro ponto observado pela OMS é que a tomada de decisão e o cuidado parental podem fazer com que pais de crianças com DA geralmente experimentem níveis mais altos de tensão emocional e sobrecarga física, do que pais de crianças com desenvolvimento típico (OMS, 2021). Ademais, a carreira profissional destes pais pode ficar comprometida pela sobrecarga de cuidados ao filho surdo ou com DA, o qual exige dedicação em tempo integral e altera sua rotina pessoal, já que, às vezes, eles precisam se mudar para próximo dos serviços necessários à criança (OMS, 2021). No presente estudo, 49% dos pais de crianças com DA não exerciam trabalho remunerado, com apenas 24% do grupo controle sem trabalhar. Assim, as questões que envolvem esse tipo de trabalho podem impactar o senso de competência parental, como já demonstrado em estudos como o de Martins (2013).
Nossos achados confirmam que pais de crianças com DA apresentam menor senso de competência parental quando comparado aos pais de crianças sem deficiências, em especial durante a pandemia de COVID-19. Todavia, é importante discutir algumas limitações do estudo, dentre elas o tipo de público participante da pesquisa. Os participantes do estudo eram, em sua maioria, com alta escolaridade, o que não retrata a realidade de muitas famílias brasileiras. Tal limitação é frequente em pesquisas no formato online, que permitem apenas a participação de pessoas que têm acesso à Internet, com um mínimo de experiência em tecnologias digitais e que possuem interesse no tema da pesquisa (Brom et al, 2020). Embora tenha tido pouca representatividade amostral das famílias de baixa renda e/ou com baixo nível de escolaridade, a pesquisa no formato online possibilitou a realização do estudo com um grupo de risco, no caso famílias de crianças com DA, mesmo durante o período de isolamento social.
Por fim, salienta-se a relevância científica e social do presente trabalho, visto que o bem-estar dos pais, e sua forma de exercer a parentalidade, tem influência significativa em termos audiológico, cognitivo e socioemocional para os desfechos desenvolvimentais da criança com perda auditiva (OMS, 2021). Logo, o conhecimento dos prejuízos no senso de competência parental de pais de crianças com DA durante a pandemia, objeto deste trabalho, pode auxiliar no melhor manejo do atendimento à essa população, bem como na formulação de políticas públicas que possam mitigar os prejuízos do contexto pandêmico para estas e outras populações da Primeira Infância, período considerado uma “janela de oportunidades” para a prevenção aos riscos de atrasos no desenvolvimento (Polo & Santos, 2018). Destaca-se, por fim, a necessidade de ampliar os estudos sobre a parentalidade de pais de crianças com surdez, incluindo discutir como a língua promovida pela família, quer seja, a fala, a língua de sinais e/ou o uso de tecnologias assistivas, têm impactos para a parentalidade.
Contribuição dos autores
Carolline Lopes: Concetualização, Investigação, Metodologia e Redação do rascunho original
Ana Cunha: Concetualização, Investigação, Administração do Projeto, Metodologia, Redação do rascunho original; Supervisão; Redação (revisão e edição)
Julia Campos: Curadoria dos dados
Karolina Albuquerque: Concetualização, Administração do Projeto, Metodologia, Redação do rascunho original; Redação (revisão e edição)