A troca de cartas: um presságio para a guerra1
Neste artigo analisaremos a troca de cartas entre o imperador Justiniano e o rei vândalo Gelimero no período que antecede a chegada dos exércitos de Belisário na África. Essas cartas são raros exemplos preservados, onde os vândalos são autorrepresentados por seu rei Gelimero, elementos estes que nos ajudam a interpretar como os vândalos compreendiam seu passado, através do recorrente uso da memória do rei Genserico, e também sobre como eles avaliaram as hostilidades de Justiniano e a campanha de Belisário à África Vândala.
Inicialmente, é preciso considerar que encontramos um verdadeiro contraste entre a riqueza da produção acadêmica mais generalista sobre a obra de Procópio e o tratamento dado a certos pontos específicos. Um exemplo disso são as trocas de cartas presentes na História das Guerras, particularmente nos Livros III e IV das Guerras Vândalas, nos quais podemos encontrar: 3 cartas de Justiniano, 1 carta de Gelimero e 1 carta de Goda (governante vândalo da Sardenha).
É necessário enfatizar que essas cartas poderiam estar facilmente acessíveis a Procópio através das bibliotecas e arquivos de Constantinopla, que as mantiveram preservadas como registros diplomáticos dos imperadores com os reis bárbaros2.
A partir das discussões apresentadas por Ian Colvin3, Dariusz Brodka4 e em menor grau por Anthony Kaldellis5, tentaremos avaliar o quanto essas cartas registradas na obra de Procópio são essenciais para compreender o contexto histórico, as relações que haviam sido estabelecidas entre o Reino Vândalo e Império Romano através de políticas e tratados, ou por meio de laços sanguíneos que ligavam a aristocracia vândala à linhagem teodosiana; mas também, como a memória do rei vândalo Genserico havia sido interpretada e recorrentemente utilizada no período que se estende de 530 a 533.
Para Colvin, a narrativa de Procópio segue padrões clássicos bastante rígidos, como o registro do testemunho ocular, e uma escrita que deveria ser atestada e comprovada não apenas pelas palavras do autor. Procópio também utilizou registros, documentos e cartas oficiais que eram transmitidas entre Constantinopla e a frente de batalha. Logo, o seu cargo de conselheiro de Belisário havia sido utilizado para ter acesso a esses documentos presentes nos arquivos e bibliotecas do Império Romano em Constantinopla6.
Para Brodka, Procópio havia utilizado uma extensa e complexa rede de informações, com informantes em diferentes níveis do exército imperial, que eram compostos principalmente de Bucellarii (comandantes militares) e Doryphora (membros da guarda pessoal dos generais), mas que também envolviam membros não-romanos como Sinnion (comandante huno) e Ortajas (comandante mouro), na tentativa de buscar um retrato complexo que envolvia relatos de batalhas, eventos, e até uma tentativa de compreender os posicionamentos assumidos pelas populações locais, nos revelando uma extensa e complexa circulação de informações, e rede de contatos mantida pelo escritor.
Procópio foi um dos pioneiros na utilização de relatórios oficiais, cartas e discursos que eram mantidos nos arquivos de Constantinopla como recurso para dar credibilidade à narrativa. Essa prática parece ter se tornado bastante popular após sua utilização na História das Guerras, já que podemos encontrar a mesma característica narrativa e metódica em Agátias, Teofilacto, Malalas e Teófanes7.
De acordo com Colvin, a escrita metódica de Procópio permite que possamos avaliar algumas características como uma organização capitular ano a ano, cujo objetivo era demonstrar como os eventos presentes são impactados por eventos anteriores (antecedentes). Dessa forma, Procópio estabelece um parâmetro nas causalidades que levaram ao evento descrito na obra (a guerra entre vândalos e romanos).
Deste modo, pensar o passado para Procópio é registrar as causalidades e as motivações do presente. Portanto, avaliar a representação8 de Genserico nos discursos seria importante, pois demonstra como Gelimero balizou a imagem de rei vândalo, e também pode nos ajudar a obter um panorama sobre como os romanos, e mesmo Procópio, compreendiam o rei vândalo.
Antes da primeira carta enviada de Justiniano para Gelimero em maio de 530, Procópio faz uma apresentação inicial sobre Gelimero, e nos revela uma persona de grande habilidade militar, mas bastante ardiloso e oportunista, e principalmente como um invejoso do poder régio de Hilderico, que foi considerado demasiadamente próximo do imperador Justino I:
“ὃς τὰ μὲν πολέμια ἐδόκει τῶν καθ̓ αὑτὸν ἄριστος εἶναι, ἄλλως δὲ δεινός τε ἦν καὶ κακοήθης καὶ πράγμασί τε νεωτέροις καὶ χρήμασιν ἐπιτίθεσθαι ἀλλοτρίοις ἐξεπιστάμενος”9.
“Este homem (Gelimero) foi considerado o melhor guerreiro de seu tempo, embora, por outro lado, fosse inflexível, mal-humorado e completamente hábil na arte de incitar revoltas e de se apoderar das riquezas alheias”.
No entanto, Hilderico é tido como um governante fraco, tanto no aspecto militar (política externa), quanto no religioso (política interna). E ainda destaca que Hilderico era inábil como guerreiro e também como diplomata:
“ὃς τὰ μὲν ἐς τοὺς ὑπηκόους εὐπρόσοδός τε ἦν καὶ ὅλως πρᾷος, καὶ οὔτε Χριστιανοῖς οὔτε τῳ ἄλλῳ χαλεπὸς ἐγεγόνει, τὰ δὲ ἐς τὸν πόλεμον μαλθακός τε λίαν καὶ οὐδὲ ἄχρι ἐς τὰ ὦτα τὸ πρᾶγμά οἱ τοῦτο ἐθέλων ἰέναι”10.
“Ele, por outro lado, era acessível aos seus súditos e era bastante gentil, e ainda não era rude nem com os cristãos, nem com ninguém, mas, por outro lado, na guerra era muito fraco e nem queria ouvir sobre isso”.
Deste modo, Procópio nos apresenta que seu sobrinho Hoamero havia assumido espontaneamente os exércitos para a defesa das fronteiras do Reino Vândalo, que estava sendo percebido como um reino fraco devido ao seu governante.
Procópio, aliás, considera que os vândalos só não haviam sido atacados por forças externas, como os ostrogodos, devido à proximidade do rei vândalo Hilderico com Justino I e com Justiniano (antes de ser imperador), e que, devido ao poder e influência do Império, esses povos se mantiveram pacificados.
“Ἰλδέριχος δὲ φίλος ἐς τὰ μάλιστα Ἰουστινιανῷ καὶ ξένος ἐγένετο, οὔπω μὲν ἥκοντι ἐς βασιλείαν, διοικουμένῳ δὲ αὐτὴν κατ̓ ἐξουσίαν, ἐπεί οἱ ὁ θεῖος Ἰουστῖνος ὑπέργηρώς τε ὢν ἐβασίλευε καὶ τῶν κατὰ τὴν πολιτείαν πραγμάτων οὐ παντελῶς ἔμπειρος. χρήμασί τε μεγάλοις ἀλλήλους ἐδωροῦντο”11.
“Hilderico era amigo e aliado de Justiniano, que ainda não havia oficialmente assumido o poder, mas que já o administrava por sua própria vontade, já que seu tio, o imperador Justino, estava com a idade muito avançada e não tinha discernimento para lidar com questões políticas. Além disso, Hilderico e Justiniano presenteavam um ao outro com grandes riquezas”.
Observamos, assim, que essa digressão em específico tem como característica associar a ambição de Gelimero, a inabilidade de Hilderico, e ao mesmo tempo evidenciar as motivações de Justiniano para o envio de uma embaixada aos vândalos, e posteriormente, para o envio dos exércitos de Belisário12.
Deste modo, entre maio de 530 até meados de 531, Procópio nos revela 3 cartas trocadas entre o rei vândalo e o imperador do Oriente, sendo 2 cartas de Justiniano e 1 carta de Gelimero. Nas duas cartas de Justiniano, o imperador parece ter um tom moderado, principalmente na primeira carta, onde ele adverte Gelimero sobre a usurpação do trono de Hilderico. Enfatiza, ainda, que ele havia se tornado um tirano desnecessariamente, pois Hilderico estava com idade avançada, e que ele seria o próximo na linha de sucessão.
“μήτε οὖν ἐργάσῃ περαιτέρω κακὸν μήτε τοῦ βασιλέως ὀνόματος ἀνταλλάξῃ τὴν τοῦ τυράννου προσηγορίαν, βραχεῖ προτερεύουσαν χρόνῳ. ἀλλὰ τοῦτον μέν, ἄνδρα ὅσον οὔπω τεθνηξόμενον, ἔα φέρεσθαι τῷ λόγῳ τὴν τῆς βασιλείας εἰκόνα, σὺ δὲ ἅπαντα πρᾶττε ὅσα βασιλέα πράττειν εἰκός: προσδέχου τε ἀπὸ τοῦ χρόνου καὶ τοῦ Γιζερίχου νόμου μόνον λαβεῖν τὸ τοῦ πράγματος ὄνομα. ταῦτα γάρ σοι ποιοῦντι τά τε ἀπὸ τοῦ κρείττονος εὐμενῆ ἔσται καὶ τὰ παῤ ἡμῶν φίλια”13.
“Não cometa mais nenhum erro e não troque o título de rei, que logo será seu, pelo de um tirano. E quanto a esse homem (Hilderico), cuja morte pode ser esperada a qualquer momento, devolva a ele as insígnias do poder real, e quanto a você, faça o que é esperado de um rei e espere receber o título apenas do tempo e da lei de Genserico, e somente deles. Se você fizer isso, obterá a benevolência de Deus e a nossa amizade”.
Nesta carta Justiniano adota um tom bastante moderado, e até mesmo com aspecto pacifista, no entanto, o imperador parece desconsiderar possíveis conflitos de sucessão dinástica entre os vândalos, ao evidenciar que a lei de Genserico deveria se sobrepor às vontades imediatas de Gelimero.
Assim, Justiniano foi descrito na História das Guerras como um visionário, que estava consciente de que a justiça deveria imperar contra a injustiça praticada a um governante legítimo e leal ao Império. Aliás, a perspectiva de apresentar Justiniano como um governante que esteve disposto a evitar a guerra, através da restauração da honra e do governo de Hilderico, era demonstrada como um fator determinante para que Justiniano obtivesse o apoio de parte do Senado, que era contrário ao envio de tropas romanas à África Vândala.
Nesse sentido, Andrew H. Merrills nos ajuda a construir um panorama sobre o que seriam a lei e os decretos de Genserico mencionados por Justiniano, já que apresenta que o rei vândalo Genserico, pouco antes de sua morte em 477, promulgou uma lei que definia a primogenitura agnática como princípio de sucessão régia, isto é, “o governo do homem sobrevivente mais velho da dinastia reinante”14. Dessa forma, como ele nos indica, Justiniano havia sido descrito por Procópio como um defensor da lei de Genserico.
É interessante observar que Hilderico havia sido celebrado em panegíricos escritos durante seu reinado, entre 523-530, nos quais sua ascendência romana é glorificada. É possível que Hilderico desejasse se dissociar da sua herança vândala-bárbara e reivindicar sua ancestralidade materna romana-civilizada. A figura abaixo nos ajuda a compreender essa dualidade identitária.
Dessa forma, se associarmos essa genealogia à literatura do período, vemos que em um panegírico dedicado a Hilderico por um poeta anônimo, o lado romano-materno de sua família foi exaltado, associando o rei vândalo à dinastia teodosiana, aclamando sua linhagem imperial.
“Vandalirice potens, gemini diadematis heres.
Ornasti proprium per facta ingentia nomen.
Belligeras acies domuit Thedosius ultor.
Captiuas facili reddens certamine gentes.
Aduersos placidis subiecit Honorius armis,
Cuius prosperitas melior fortissima fecit.
Ampla Valentiniani uirtus cognita mundo.
Hostibus addictis ostenditur arce nepotis”15.
“Poderoso rei dos vândalos, herdeiro de uma coroa dupla
Você adornou seu próprio nome com seus grandes feitos notáveis
Teodósio, o vingador, conquistou os exércitos [inimigos]
Rendeu e aprisionou com facilidade os bárbaros
Honório subordinou seus inimigos com armas pacíficas
que foi o sucesso mais valioso e poderoso feito por ele
A virtude de Valentiniano foi reconhecida em todo o mundo
com seus inimigos escravizados, seu neto se mostra invulnerável”.
Fica nítido, para nós, que os romanos o reconheciam como um descendente direto de Teodósio. Merrills16 ainda considera que a representação de Hilderico como um governante de uma coroa dupla (gemini diadematis heres) demonstra uma tentativa de unificação das coroas do Reino Vândalo ao Império Romano no Oriente. Logo, a História das Guerras de Procópio encontra eco na tradição poética e manuscrita secular romana, que também legitimava a ancestralidade de Hilderico como um nobre romano, em detrimento de sua origem bárbara.
Portanto, para Rodolfi, quando Procópio refere as relações diplomáticas entre o Reino Vândalo e o Império do Oriente através da ‘amizade’, ele colabora para manter a honra romana17. Como considera Yves Modéran:
“Mas essa independência também foi disfarçada, reconvertida em uma categoria jurídica clássica, a do protetorado, materializada por tratados de amizade e aliança. Isso salvou a honra romana e ajudou a lidar com o futuro, mas de uma forma puramente formal”18.
Deste modo, preservar a autonomia do Reinado Vândalo sobre as províncias africanas e intervir militarmente na África através de uma justificativa pautada na herança de Genserico, mantinha a dignidade romana, que se acreditava estar regularizada na legitimidade de Hilderico sobre a herança de seus avós. Isto é, havia a compreensão de que os vândalos haviam conquistado um direito legal de possuírem e de estarem naqueles territórios, e que não necessariamente expressava ou considerava uma derrota ou perda de territórios do Império para esse povo.
Yves Modéran ainda considerou que os vândalos haviam sido reconhecidos nos termos socius et amicus, mas isso não necessariamente significava que o Império reconhecia a soberania vândala. O termo poderia se adaptar aos discursos do imperador Justiniano conforme desejasse, fosse em relação a compreender o Reino Vândalo como um estado-cliente subordinado ao imperador, ou ainda, como já demonstrado, um Reino que havia conquistado seu direito de governar através da herança de Valentiniano III, que colocava os reis vândalos (Hunerico e Hilderico) como membros da Dinastia Teodosiana e, portanto, a usurpação de Gelimero ao trono de Hilderico deveria ser avaliada como uma ameaça ao próprio Império Romano no Oriente. De uma forma ou de outra, Justiniano havia conseguido justificar a necessidade de suas campanhas contra os vândalos, ao mesmo tempo que mantinha a dignidade romana19.
Frank Clover20 demonstra que, em Merobaudes, encontramos o primeiro registro de um romano que reconheceu os vândalos nos termos de socius (aliado) em 443, pouco após o tratado de paz entre vândalos e romanos em 442. E estabelece que Merobaudes havia sido uma fonte importante para Procópio, que atualizou os termos latinos socius et amicus para o grego: “φίλῳ τε καὶ ξυμμάχῳ”21.
Jonathan Conant22 também revela que Procópio havia utilizado os termos ‘amigo e aliado’, não apenas para descrever a relação de Genserico com a família de Valentiniano, mas também como referência para descrever as relações diplomáticas que se seguiram nos reinados posteriores até Hilderico, que também foi tratado nos mesmos termos: “Hilderico era um amigo próximo (ξένος) e aliado de Justiniano”23.
Procópio apresenta ainda Gelimero como um usurpador ilegítimo, a fim de justificar as campanhas dos exércitos imperiais na África. É possível encontrar evidências em seu texto de que, em verdade, o novo rei havia sido eleito entre a aristocracia vândala, por ser considerado apto a reivindicar novamente a soberania do Reino Vândalo.
“ἀλλὰ Βανδίλων ἑταιρισάμενος εἴ τι ἄριστον ἦν, ἀναπείθει ἀφελέσθαι μὲν Ἰλδέριχον τὴν βασιλείαν, ὡς ἀπόλεμόν τε καὶ ἡσσημένον πρὸς Μαυρουσίων, καὶ Ἰουστίνῳ βασιλεῖ καταπροδιδόντα τὸ τῶν Βανδίλων κράτος, ὡς μὴ ἐς αὐτὸν ἐκ τῆς ἄλλης οἰκίας ὄντα ἡ βασιλεία ἥκοι: τοῦτο γάρ οἱ βούλεσθαι τὴν ἐς Βυζάντιον πρεσβείαν διέβαλλεν, αὐτῷ δὲ παραδιδόναι τὸ Βανδίλων κράτος. οἱ δὲ ἀναπεισθέντες κατὰ ταῦτα ἐποίουν”24.
“associando-se a todos os nobres vândalos, ele os persuadiu a tirar Hilderico do poder, alegando que ele era um rei que não servia para a guerra, que havia sido derrotado pelos mouros e que havia os traído ao entregar o poder dos vândalos para o imperador Justino, para que ele (Gelimero) não viesse a se tornar rei, porque era de outro ramo da família; alegando caluniosamente que o objetivo da embaixada de Hilderico a Constantinopla é que ele estaria entregando a soberania dos vândalos para Justino. Convencidos, agiram de acordo”.
A questão sobre as relações de Hilderico com os imperadores no Oriente é tão importante para Gelimero e a nobreza vândala, que a primeira carta de Justiniano a Gelimero marca uma virada diplomática e um momento crucial para a ascensão das hostilidades entre vândalos e romanos. A carta parece ter sido interpretada como a prova que restava para que Hilderico fosse exposto como um traidor, e que estava decidido a conspirar contra Gelimero para que seus sobrinhos Hoamero e Hoageis, e não ele, o sucedessem no trono.
Deste modo, a primeira carta não obteve uma resposta formal, mas prática, já que Hoamero foi cegado, o que nos evidencia que ele era percebido por Gelimero como a principal ameaça para seu reinado, devido à liderança que exercia sobre os exércitos de Hilderico. Já Hilderico e Hoageis foram mantidos em cárcere:
“Γελίμερ δὲ τοὺς πρέσβεις ἀπράκτους ἀπέπεμψε, καὶ τόν τε Ὁάμερα ἐξετύφλωσε τόν τε Ἰλδέριχον καὶ Εὐαγέην ἐν μείζονι φυλακῇ ἐποιήσατο, ἐπικαλέσας φυγὴν ἐς Βυζάντιον μελετᾶν”25.
“Gelimero expulsou os embaixadores sem nenhum acordo, ele cegou Hoamero e manteve Hilderico e Hoageis em um confinamento severo, acusando-os de tentarem fugir para Constantinopla”.
Procópio afirma que o rei vândalo não estava disposto a negociar com seu conspirador Justiniano.
Logo, após receber as notícias dos acontecimentos descritos acima, Justiniano eleva seu tom de agressividade, e exige a Gelimero o envio da família de Hilderico (incluindo Hoamero e Hoageis) para Constantinopla como requisito para manter o tratado de paz. No entanto, nessa carta Justiniano já expressava uma justificativa para fazer guerra contra os vândalos, baseando-se não na conquista, mas na vingança sobre a humilhação de Hilderico e seus familiares, conforme vemos na citação abaixo.
“Ἰλδέριχόν τε καὶ Ὁάμερα τὸν πηρὸν καὶ τούτου τὸν ἀδελφὸν ὡς ἡμᾶς πέμπε, παραψυχὴν ἕξοντας ἣν ἔχειν εἰσὶ δυνατοὶ ὅσοι τὴν βασιλείαν ἢ τὴν ὄψιν ἀφῄρηνται: ὡς οὐκ ἐπιτρέψομέν γε, ἢν μὴ ταῦτα ποιῇς. ἐνάγει γὰρ ἡμᾶς ἡ ἐλπὶς ἣν εἰς τὴν ἡμετέραν φιλίαν ἔσχον. αἵ τε σπονδαὶ ἡμῖν αἱ πρὸς Γιζέριχον ἐκποδὼν στήσονται. τῷ γὰρ ἐκδεξαμένῳ τὴν ἐκείνου βασιλείαν ἐρχόμεθα οὐ πολεμήσοντες, ἀλλὰ τὰ δυνατὰ τιμωρήσοντες”26.
“nos envie Hilderico e Hoamero, que você cegou, e também o irmão dele, para receberem o consolo que puderem depois de terem sido privados de seu reino ou de sua visão. Não iremos ceder até que você faça isso, porque nossa motivação é a esperança de mantermos nossa amizade. O tratado de Genserico não nos impedirá. Pois, não iremos fazer guerra àquele que o sucedeu no trono, mas para vingá-lo com todas as nossas forças”.
Tendo sido ameaçado pelo imperador no Oriente pela segunda vez, em meados de 531, o rei vândalo Gelimero expõe que sua sucessão ao trono régio, havia sido realizada dentro dos termos legais, já que, nesse caso, ele avalia que Hilderico tendo herança e atitudes que, como vimos, privilegiavam sua ancestralidade romana, não poderia ser reconhecido como vândalo, ou mesmo como descendente de Genserico, portanto, não deveria ser considerado membro de sua família. Logo, o verdadeiro usurpador era Hilderico, que assumiu o trono, mesmo sendo considerado inapto para isso, conforme observamos em resposta de Gelimero a Justiniano:
“‘Βασιλεὺς Γελίμερ Ἰουστινιανῷ βασιλεῖ. οὔτε βίᾳ τὴν ἀρχὴν ἔλαβον οὔτε τί μοι ἀνόσιον ἐς ξυγγενεῖς τοὺς ἐμοὺς εἴργασται. Ἰλδέριχον γὰρ νεώτερα πράσσοντα ἐς οἶκον τὸν Γιζερίχου καθεῖλε τὸ τῶν Βανδίλων ἔθνος: ἐμὲ δὲ ὁ χρόνος ἐς τὴν βασιλείαν ἐκάλεσε, κατά γε τὸν νόμον τὰ πρεσβεῖα διδούς”27.
“Rei Gelimero ao imperador Justiniano. Não conquistei o poder pela força, nem fiz nada profano contra meus parentes, foi o povo vândalo que destronou Hilderico, por suas conspirações contra a casa de Genserico. Quanto a mim, fui escolhido para ser rei pela minha idade, que me garantiu a primazia, de acordo com a lei”.
Andrew Merrills28 nos apresenta que a sucessão de Gelimero havia sido fácil e sem uma oposição generalizada. O que nos indica que, de fato, Gelimero havia sido eleito para assumir o trono vândalo, pois seu próprio povo considerava Hilderico como um traidor que colocaria a soberania dos vândalos em risco.
Aliás, essa questão é explícita na carta de Gelimero, que adverte o imperador para que deixe de se intrometer em assuntos alheios à sua governança, e ainda considera que Justiniano não seria um governante digno se rompesse com as promessas de seus antecessores, pois ao quebrá-las deveria ser reconhecido como um reinante ilegítimo. Já que, não podendo cumprir com o tratado de Zenão, Justiniano negligenciaria o passado e a própria linhagem imperial que se sucedeu até seu governo, características que haviam mantido a honra de seu povo, e sua própria legitimidade como imperador, pois estaria questionando a decisão de seus antecessores em manter a paz.
“τὴν δὲ ὑπάρχουσαν ἡγεμονίαν αὐτόν τινα διοικεῖσθαι καλὸν καὶ μὴ ἀλλοτρίας οἰκειοῦσθαι φροντίδας. ὥστε καὶ σοὶ βασιλείαν [p. 90] ἔχοντι τὸ περιέργῳ εἶναι οὐ δίκαιον: λύοντι δέ σοι τὰς σπονδὰς καὶ ἐφ̓ ἡμᾶς ἰόντι ἀπαντήσομεν ὅση δύναμις, μαρτυρόμενοι τοὺς ὅρκους τοὺς Ζήνωνι ὀμωμοσμένους, οὗ τὴν βασιλείαν παραλαβὼν”29.
“seria bom se você administrasse o poder que lhe pertence, e não se preocupar com o dos outros. Pois, não é justo que você, que tem um império, se intrometa em assuntos alheios. E se você quebrar o tratado e vier contra nós, nós o enfrentaremos com todas as nossas forças, colocando como testemunha os juramentos prestados por Zenão, de quem você recebeu o poder imperial que agora desfruta”.
Entretanto, fica nítido que Procópio havia utilizado o aumento de tensões entre o Reino Vândalo e o Império Romano do Oriente como um ‘bode expiatório’ para o fracasso das campanhas contra o Império Persa, e julga que a carta de Gelimero havia sido o principal motivo para selar a paz com os persas, na tentativa de reorganizar os exércitos para a futura campanha contra os vândalos na África do Norte, o que demonstra que o Império não tinha capacidade militar e financeira para sustentar a guerra em duas frentes de batalha30.
A narrativa de Procópio modela a memória de Genserico, que toma diversos contornos, de um lado ela é evocada por Justiniano para demonstrar como Genserico era leal ao Império, e a principal característica suscitada por ele é a de pacificador. Como vimos, em sua primeira carta a Gelimero, Justiniano afirma que o rei vândalo deveria agir de maneira santa, isto é, seguir os decretos de Genserico e, assim como seu bisavô, conquistar seu direito não pelas armas, mas a partir de prerrogativas legais e com base na civilidade: “Se você fizer isso, obterá a benevolência de Deus e a nossa amizade”31.
George Philip Baker interpreta a carta de Justiniano como uma tentativa de o imperador enfatizar que as ações de Gelimero não eram aceitáveis, nem para a linhagem bárbara e nem para a estirpe civilizada da família de Genserico,
“nem os costumes universais da humanidade civilizada, nem as disposições particulares das determinações testamentárias de Genserico justificavam a prisão e a usurpação violenta de um velho que era legalmente o rei dos vândalos”32.
Aqui, portanto, a violência passa a ser representativa da barbárie, enquanto o respeito a um sistema legal indica a valorização dos ideais civilizatórios romanos, aos quais, de acordo com Justiniano, Genserico estava submetido, mas não Gelimero.
Em seu contraponto, Gelimero compreende a memória de Genserico como oposta aos padrões civilizatórios romanos, como forma de atestar a representação de Genserico como um conquistador imponente e astuto, que através das armas tornou o Reino Vândalo um poder soberano, capaz de desafiar o Império Romano, conforme já visto anteriormente33. Nesse ponto, observamos que a carta do rei vândalo tentava enfatizar que o Reino Vândalo não deveria estar submetido a autoridade imperial, como os termos ‘amigo e aliado’ (socius et amicus/φίλος τε καὶ ξύμμαχος), que implicitamente se referiam aos estados-clientes, conforme os autores Modéran34, Baltrusch e Wilker35 consideraram.
Neste contexto, como sugere Rodolfi, era necessário manipular a memória de Genserico para demonstrar um passado onde haviam sido cultivadas boas relações diplomáticas entre vândalos e romanos. Nesse sentido, Gelimero é considerado por Procópio como sendo um rei subversivo aos ideais de seus antecessores que mantiveram a paz com o Império Romano. Assim, Justiniano é apresentado por ele, não apenas como um amigo pessoal de Hilderico, mas também como um restaurador da lei e ordem sucessória estabelecida pelo próprio Genserico36.
Deste modo, dois aristocratas vândalos, Goda e Pudêncio, ganham destaque na narrativa de Procópio com o objetivo de demonstrar que as atitudes de Justiniano eram apoiadas e tinham legitimidade entre os vândalos, e por isso, haviam buscado apoio do imperador para retaliar o rei Gelimero. Portanto, é possível considerar que Genserico era a parte civilizada da estirpe vândala, enquanto as atitudes de Gelimero demonstravam sua contraparte bárbara e cruel de seu povo37.
Porém, o caso de Goda é mais expressivo para nós. Sendo descrito inicialmente por Procópio como um escravo38 de Gelimero: “Havia um certo Goda entre os escravos de Gelimero [...] Gelimero confiou a ilha da Sardenha a este Goda, para sua proteção e para coletar o tributo anual”39. A palavra ‘escravo de Gelimero’: “Γελίμερος δοῦλος”40, no entanto, parece fazer mais sentido se considerado o uso retórico de Procópio, com o objetivo de descrever a grande lealdade de Goda a Gelimero, já que suas funções correspondem mais com o posto de aristocrata, e governante da Sardenha (subordinado a Gelimero), do que um escravo (δοῦλος).
Como Sousa sugere, os líderes bárbaros somente são representados positivamente quando são colocados ao lado de Justiniano, e favorecem as ambições pessoais do imperador41. Por isso, é possível que Procópio tenha representado Goda como um escravo de Gelimero, para depois representá-lo como tendo sido libertado por Justiniano, e como um liberto tanto da barbárie, quanto da influência maléfica do rei vândalo. Essa libertação é bastante representativa quando observamos uma tomada de consciência de Goda pelas ações do rei vândalo, e também por não desejar se tornar cúmplice desses atos.
No entanto, ainda que o personagem de Goda represente um bárbaro que ascendeu a razão, as ações de Goda, assim como sua carta a Justiniano, podem expor, para nós, que havia uma parte da aristocracia vândala preocupada, não especificamente com a sucessão de Gelimero, mas com a violência comandada pelo rei vândalo aos seus familiares após receber a carta de Justiniano em 530.
Aliás, em meados de 53242, em carta destinada a Justiniano, Goda apresenta que somente traiu Gelimero por causa da violência desproporcional operada pelo rei vândalo.
“Οὔτε ἀγνωμοσύνῃ εἴκων οὔτε τι ἄχαρι πρὸς δεσπότου παθὼν τοῦ ἐμοῦ εἰς ἀπόστασιν εἶδον, ἀλλὰ τἀνδρὸς ἰδὼν τὴν ὠμότητα ἰσχυρὰν οἵαν εἴς τε τὸ ξυγγενὲς καὶ ὑπήκοον μετέχειν τῆς ἀπανθρωπίας οὐκ ἂν δόξαιμι ἑκών γε εἶναι”43.
“Não foi porque cedi à loucura, nem por ter sofrido qualquer ato desagradável nas mãos de meu senhor que me rebelei, mas vendo a crueldade desse homem contra seus parentes e súditos, não estava disposto a ser visto como alguém que apoiou esses atos desumanos”.
O nobre vândalo ainda expressa sua indignação acerca da inconstitucionalidade das ações de seu rei contra os seus familiares, nomeando-o como um tirano, que não media esforços contra seus opositores: “é preferível servir a um rei justo do que a um tirano que dá ordens em desacordo com a lei”44. Deste modo, percebendo a crescente hostilidade entre romanos e vândalos, Goda se posicionou em favor de Justiniano, oferecendo um ponto de apoio no Mediterrâneo para os exércitos de Justiniano na guerra contra os vândalos, e em troca, o imperador deveria ajudar a estabelecer um reino independente na Sardenha.
Fato que, como vemos, é atestado por Alberto Trivero Rivera, ao analisar a cunhagem de moedas feitas em nome de Goda, inicialmente entre 530 e 53145. As moedas com seu nome eram legendadas como: [G]VBER[NATOR] CVDA, o que nos indica não apenas a proeminência e a importância da Sardenha, que tinha recursos próprios para cunhar suas moedas, como também demonstram o grande privilégio e posição social que Goda ocupava na ilha, de tal forma que apenas o governante da Sardenha e o rei vândalo tinham moedas cunhadas em seus nomes.
No entanto, Rivera nos aponta que, a partir da rebelião de Goda em 532, a cunhagem de moedas havia sofrido algumas transformações, a principal delas é a alteração do título de Goda, que surge como: CVDA ЯEX, como vemos acima, no anverso da moeda, tipificada pelo autor como um nummus. Para nós, devido ao seu baixo valor e, portanto, de maior circulação, Goda desejava ser rapidamente reconhecido como rei pela população local da ilha. Contudo, os achados numismáticos do Reinado de Goda, encontrados apenas na Sardenha, revelam que elas não conseguiram atingir grande amplitude geográfica, como as moedas dos reis vândalos46.
Dessa forma, ainda que nossas fontes sobre o Reinado de Goda na Sardenha estejam, hoje, resumidas aos relatos de Procópio e às moedas produzidas em seu nome, observamos que seu breve reinado teve uma grande importância para os planos de Justiniano na guerra contra os vândalos. A Sardenha seria uma ótima opção de paragem para os exércitos de Justiniano na impossibilidade de acessar a Sicília, pois a Sardenha poderia fornecer um importante ponto de apoio, tanto para conflitos iniciais, como também para uma guerra que se estendesse por um período mais longo.
Em carta entregue pelo imperador a Belisário para ser transmitida aos vândalos, Justiniano parece explorar a fragmentação da aristocracia vândala, que se seguiu da crise dinástica. Tendo apoiado Goda, o imperador parecer ter compreendido, através desse exemplo, que a sucessão de Gelimero ao trono não parece ter obtido consenso entre os nobres vândalos.
Deste modo, Justiniano tenta se colocar em oposição de Gelimero, que considera ter desrespeitado a lei de Genserico sobre a sucessão do trono real, para isso o imperador é apresentado como alguém que pretende reestabelecer o Reinado de Hilderico, e afirma que a presença dos exércitos não deveria ser compreendida como um rompimento da paz entre vândalos e romanos, já que ele lutava em favor da memória de Genserico, a fim de libertar seu povo da tirania.
“Οὔτε Βανδίλοις πολεμεῖν ἔγνωμεν οὔτε τὰς Γιζερίχου σπονδὰς λύομεν, ἀλλὰ τὸν ὑμέτερον τύραννον καθελεῖν ἐγχειροῦμεν, ὃς τῶν Γιζερίχου διαθηκῶν ὀλιγωρήσας τὸν μὲν βασιλέα ὑμῶν καθείρξας τηρεῖ, τῶν δὲ αὐτοῦ συγγενῶν οὓς μὲν σφόδρα ἐμίσει κατ̓ ἀρχὰς ἔκτεινε, τοὺς δὲ λοιποὺς τὰς ὄψεις ἀφελόμενος ἐν φυλακῇ ἔχει, οὐκ ἐῶν θανάτῳ καταλῦσαι τὰς συμφοράς. συλλάβεσθε τοίνυν ἡμῖν καὶ συνελευθεροῦτε ὑμᾶς αὐτοὺς οὕτω μοχθηρᾶς τυραννίδος, ὅπως ἂν δύνησθε τῆς τε εἰρήνης καὶ τῆς ἐλευθερίας ἀπόνασθαι. ταῦτα γὰρ ὑμῖν παῤ ἡμῶν ἔσεσθαι πρὸς τοῦ θεοῦ τὰ πιστὰ δίδομεν”47.
“Não decidimos fazer guerra contra os vândalos, nem estamos rompendo o tratado com Genserico, mas sim tentando destronar seu tirano, que, desrespeitando a vontade de Genserico, prendeu seu rei e o mantém sob custódia e, por outro lado, todos os parentes do rei que ele odiava, a princípio foram mortos e o resto, depois de serem privados da visão, são mantidos presos, não permitindo que acabem com seus infortúnios tirando as próprias vidas. Portanto, vocês devem unir forças conosco para, em conjunto, se libertarem dessa tirania perversa, para que possam desfrutar de paz e liberdade. Nós garantimos em nome de Deus que vocês obterão esses benefícios de nós”.
No entanto, observamos que inicialmente os habitantes da África Vândala são descritos e reconhecidos na carta de Justiniano como vândalos, e na tentativa de explorar a crise dinástica, o imperador busca forçar o rompimento dos laços de lealdade dos vândalos com seu novo rei Gelimero.
Como consequência, é preciso questionarmos se a carta entregue por Justiniano a Belisário para ser lida na presença de aristocratas vândalos era apenas um recurso retórico vazio, na qual suas ações seriam conduzidas independentemente do posicionamento assumido por Gelimero, cuja tentativa era somente justificar as crescentes hostilidades contra os vândalos, e a posterior reconquista dos territórios romanos ocupados. Ou se essa possibilidade da reconquista teria sido apenas um objetivo repentino e oportuno de Belisário, em decorrência da facilidade de ocupação da África Vândala, como sugere Renato Boy48.
Se considerarmos a primeira opção, é preciso reconsiderar o Reino Vândalo sob Hilderico (523-530) como um governo ‘fantoche’ de Justino I, e posteriormente de Justiniano. As conjunturas que, aqui, são expostas indicam como Hilderico havia seguido à risca os desejos dos imperadores no Oriente, como a utilização de simbolismos romanos, o rompimento de laços fraternos entre ostrogodos e vândalos, são algumas dessas questões que ajudam a apoiar essa hipótese. Logo, ainda que Hilderico se apresentasse como um governante vândalo (rex vandalorum), tal como é representado em suas moedas, isso não necessariamente impedia a compreensão de subordinação ao Império Romano, se apresentando mais como um governante romano das províncias africanas, do que como rei de um Reino independente da autoridade imperial, isto é, ser reconhecido como rei de um povo não exclui a possibilidade de ele ser igualmente representado como governante de um território.
Renato Viana Boy afirma que Procópio havia manipulado a titulação de rex, ao hierarquizá-la e colocá-la em contraste com o título de imperador, isto é, inferiorizando os reis bárbaros enquanto ressaltava a autoridade de Justiniano acima destes. Dessa forma, Procópio permitiria que os reis vândalos e os demais reis fossem idealizados em verossimilhança aos governadores provinciais. Mesmo que não houvesse tributações ou obrigações, ditas ‘provinciais’ para com os imperadores no Oriente49.
Podemos encontrar evidências que, no Corpus Juris Civilis, Justiniano acrescenta ao seu nome e ao título de imperator todos os títulos reais presentes no Ocidente, conforme vemos: “César Flávio Justiniano, imperador dos Alamanos, Godos, Francos, Germânicos, Antes, Alanos, Vândalos [e] Africanos”50. A partir de uma análise deste decreto, o primeiro a ser promulgado utilizando esses títulos, constatamos que o decreto é de meados de 533, quando os vândalos ainda não tinham sido derrotados pelas tropas de Belisário. A palavra latina reciperet aparece como referência de ação no presente do subjuntivo, e que pode indicar o tempo verbal no presente ou futuro, nunca no passado, veja-se: “Em muito pouco tempo, a África irá recuperar (reciperet) sua liberdade”51. Inclusive, mesmo não tendo notícias da conquista, no mesmo decreto Justiniano já havia nomeado Arquelau como Prefeito Pretoriano da África.
Isso nos indica que Justiniano desejava que as classes senatoriais em Constantinopla reconhecessem o envio das tropas de Belisário como uma delegação que deveria substituir o então governante da África, por outro escolhido pelo imperador. Esse decreto (Corpus Juris Civilis, 27.1) também foi responsável por dar instruções bastante específicas para Arquelau, de como ele deveria reorganizar (política e administrativamente) as províncias africanas, conforme a vontade do imperador.
Ana Maria de Oliveira acredita que a incorporação dos títulos régios ao título de imperador tinha “a finalidade de demonstrar a figura imperial romana como o governante de todos, adquiria uma conotação de soberano universal, na linha constantiniana, augusta e alexandrina”52. Segundo a autora, essa era uma forma de Justiniano se afirmar governante de todos os povos cristãos (heréticos ou não), como forma de competir contra o Império Persa.
Diante desse tópos retórico, Procópio corrobora com a subordinação dos vândalos às leis romanas, que permitiram e toleraram sua presença através da renovação das concessões de terras e, portanto, essa retórica tinha como objetivo demonstrar que o Reino Vândalo estava submetido à autoridade dos imperadores, que poderiam, se eles desejassem, promover a desapropriação das terras ocupadas pelos vândalos.
Deste modo, o rei vândalo parecia reivindicar sua soberania, ao concentrar suas preocupações com o reestabelecimento do Reinado de Hilderico, e, por isso, exigiu ao seu irmão Ammatas que Hilderico, seu sobrinho Hoageis53 e todos aqueles leais ao rei deposto fossem imediatamente executados: “[Gelimero] ordenou por escrito a seu irmão Ammatas em Cartago que matasse Hilderico e todos os seus aliados, fosse por nascimento ou por qualquer outra circunstância”54. Deste modo, observamos que Gelimero desejava arruinar aquilo que considerava ser o principal objetivo das campanhas de Justiniano, ao matar Hilderico e seus partidários.
Referências bibliográficas
Fontes
ANTHOLOGIA LATINA - “Sive poesis latinae svpplementvm”. In: RIESE, Alexander (ed.) - Carmina in codicibvs scripta: Pars prior. Lipsiae: Aedibvs B. G. Tevbneri, 1869.
CORPUS JURIS CIVILIS - The codex of Justinian: A new annotated translation with Parallel Latin and Greek Text. Trad. Justice Fred H. Blume. Cambridge University Press: Cambridge: Cambridge University Press,2016.
PROCOPIO DE CESAREA - Historia de las guerras: Libros III-IV Guerra Vándala. Trad. José Antonio Flores Rubio. 1ª ed.; 1ª reimpr. Madrid: Editorial Gredos, 2006.
PROCOPIUS - History of the Wars: Book III and IV - The Vandalic War. Trad. Henry Bronson Dewing. London; New York: William Heinemann; G. P. Putnam's Sons, 1916.
PROKOPIOS - The Wars of Justinian. Translate: H. B. Dewing; Revised and modernized, with an introduction and notes by Anthony Kaldellis. Indianapolis; Cambridge: Hackett Publishing Company, 2014.