Introdução
Michel Foucault foi um filósofo e teórico social francês do século XX. Professor do Collège de France, desenvolveu reflexões importantes para o mundo acadêmico, como as ideias de discurso e dispositivo de poder. O objetivo deste trabalho é relacionar o dispositivo foucaultiano com o uso de exemplos de metodologias ativas na Universidade Tecnológica Federal do Paraná, campus Francisco Beltrão (UTFPR-FB) a partir de seus enunciados institucionais, referenciais teóricos e experiências vivenciadas pelos alunos da instituição.
Discurso para Michel Foucault
Em sua obra Arqueologia do Saber, Michel Foucault expõe uma série de estudos desenvolvidos sob o método da arqueologia do conhecimento filosófico, entre eles a noção de discurso, em que Foucault afirma que o discurso é uma realidade de construção cultural e não a própria realidade (Foucault, 2014).
Segundo Foucault, o discurso é produtor de conhecimento, que regula por meio de práticas discursivas o que é possível ou não dizer (Colunas Tortas, 2014). Foucault (2014, p.144) afima que a prática discursiva é um conjunto de regras anônimas, históricas, sempre determinadas no tempo e no espaço, que definem, em um dado momento e para um determinado espaço social, econômico, geográfico ou linguístico, as condições para o exercício da função enunciativa.
Em outras palavras, as práticas discursivas têm diferentes interesses dependendo dos grupos sociais, classes econômicas e do momento histórico, por exemplo, a prática discursiva que envolve as metodologias ativas é de interesse para o momento histórico atual e para o meio acadêmico, tornando-se normalmente irrelevante para aqueles externos a este cenário.
Além de produzir conhecimento, as práticas discursivas com poder categorizam o sujeito, moldando quem ele é e o que é capaz de fazer. Podemos examinar o poder das práticas discursivas aliadas ao poder, quando tomamos como exemplo hoje grandes geradores de opiniões como a mídia, que produzem linhas de argumentação que geralmente se tornam verdadeiras, enquanto outras formas de pensar são marginalizadas.
Dispositivos para Michel Foucault
O conceito de dispositivo desenvolvido por Foucault aparece na passagem da arqueologia do saber para a genealogia do conhecimento (Gregolin, 2016). Esse conceito de dispositivo foi criado tendo em vista a necessidade de explicar alguns fenômenos que não cabiam apenas nas práticas discursivas, ou seja, esse conceito permite analisar não só o que é dito e escrito, mas também as ações. O conceito de dispositivo é definido por ele como
um conjunto decididamente heterogêneo que inclui discursos, instituições, organizações arquitetônicas, decisões regulatórias, leis, medidas administrativas, afirmações científicas, proposições filosóficas, morais, filantrópicas. Em suma, o dito e o não dito são os elementos do dispositivo. O dispositivo é a rede que pode ser tecida entre esses elementos (Foucault, 2008, p. 244).
Por mais clara que pareça a definição de dispositivos, há uma certa complexidade em seu conceito que, quando escavado, é melhor compreendido como um todo a partir da divisão em quatro dimensões descrita por Deleuze (Gregolin, 2016.). São eles: curvas de visibilidade, curvas de enunciabilidade, linhas de força, linhas de subjetividade.
As curvas de visibilidade trabalham com momentos históricos em que determinados discursos são proeminentes, enquanto outros são invisíveis para a sociedade, ou seja, há momentos em que essas curvas ganham exposição excessiva, outras vezes perdem a visibilidade. No caso específico deste trabalho, essas curvas podem ser evidenciadas pela instituição em suas práticas discursivas e não discursivas. Tomamos o canal do youtube da UTFPR como exemplo em uma plataforma de vídeo, o vídeo de apresentação da instituição mostra diversos recursos tecnológicos, além de um discurso que reforça a ideia de uma universidade altamente tecnológica que segue modelos de referência de outros países.
As curvas de enunciabilidade funcionam na mesma linha que as curvas de visibilidade, como um jogo do dito e do não dito, mas, nesta dimensão, a forma como o discurso se torna visível é através do enunciado.
Segundo Gregolin, as linhas de força “são como flechas que nunca param de penetrar nas coisas e nas palavras. É como se tudo o que se mostra e tudo o que se diz fosse permanentemente atravessado por estes jogos de poderes” (Gregolin, 2016).
Ou seja, existem forças que regulam o visível e o invisível, o dito e o não dito, trazendo como exemplo a temática abordada neste trabalho, o indivíduo dentro da instituição pode oferecer alguma resistência às metodologias ativas, e às tecnologias, mas em determinado momento ele vê a necessidade de usá-los porque as linhas de força o pressionam, produzindo subjetividades. Segundo Gregolin (2016), as linhas de subjetividade são “como efeito de todos esses jogos, de tudo que é dito, mostrado e escondido”.
Tornando as identidades da disciplina voláteis e sempre em curso, pode-se lembrar do docente que trabalha com metodologias tradicionais em uma instituição de ensino superior tradicional, e em determinado momento sente necessidade de inserir metodologias ativas e recursos tecnológicos quando trabalha em uma Universidade Tecnológica por conta do dispositivo criado pelas metodologias ativas.
Metodologias ativas
As metodologias que hoje atuam estão muito presentes no ensino superior nas mais diversas áreas, de forma a auxiliar o desenvolvimento do pensamento crítico, a visão e a tomada de decisões dos futuros profissionais, segundo Borges e Alencar “a utilização destas metodologias pode favorecer a autonomia do aluno, despertando a curiosidade, estimulando a tomada de decisão individual e coletiva, decorrente das atividades essenciais da prática social e nos contextos estudantis” (Borges e Alencar, 2014, p.120).
Embora as metodologias ativas auxiliem na formação dos alunos, ainda encontramos diferentes interpretações sobre sua abrangência e significado. Segundo Moran (2018), dentro do ensino existem diversos entendimentos a respeito das atividades descritas como metodologias ativas, para alguns elas são vistas simplesmente como diferentes abordagens para envolver e estimular a participação do aluno como aulas invertidas, e projetos.
Outra parte dos professores vê as metodologias ativas como atividades de maior complexidade, investimento e que envolvem uma maior integração entre as diferentes áreas do conhecimento, como exemplo o autor cita “salas de aula adaptadas, integrando projetos, como o STEAM que articulam Ciências, Matemática, Engenharia, Artes e Tecnologias” (Moran, 2018, p.1).
Política e educação tecnológica
É importante contextualizar histórica e politicamente a inserção da educação tecnológica no ensino superior brasileiro, especificamente, na UTFPR. Leite (2010) ao organizar a obra UTFPR, uma história de 100 anos, já no título consegue mostrar a relação do ensino técnico desta instituição com a história brasileira em um percurso cronológico que data de 1909, momento da assinatura do Decreto Federal nº 7566/09 que criou as escolas de aprendizes artífices em todos os estados do Brasil. Estas escolas nasceram com o propósito de estimular mão-de-
-obra para as fábricas. No decorrer de sua história, a escola de aprendizes artífices de Curitiba, no estado do Paraná, passou a ser chamada de Liceu Industrial Paranaense, Escola Técnica de Curitiba, Escola Técnica Federal do Paraná, Centro Federal de Educação Tecnológica do Paraná (Cefet-PR) e finalmente chegou ao status de Universidade Tecnológica Federal do Paraná, no ano de 2005.
Este processo levou um século para se consolidar, um século de evolução e acompanhamento junto ao discurso do momento e à criação da necessidade da ocasião. Nesse sentido, quando extraímos este caso particular da UTFPR aproveitamos para situar como as políticas de expansão das instituições de ensino técnico e superior marcaram o espaço do interior dos estados brasileiros nas décadas de 90 e anos 2000 (Brasil, 2008, 2012). Nesse período houve um aumento considerável no número de instituições dedicadas ao ensino técnico e superior, o que levou o Estado a não investir com o mesmo recurso nos últimos anos de gestão política.
A Folha de S. Paulo (2021/02/12, p.4) mostra a partir do depoimento do diretor da Secretaria de Modalidades Especializadas de Educação (Semesp) que “se as empresas estão investindo em transformação digital, as universidades precisam entender com urgência quais são essas mudanças tecnológicas para formar seus alunos em sintonia com essas demandas”. Porém esta urgência tão atual não acompanhou o crescimento da implantação destas instituições de ensino no país. Como uma amostra do que representou a época de expansão da educação técnica e superior proporcionada pela gestão da época, Gouveia (2016, p.3) verifica que os investimentos na Rede Federal saltaram de dois bilhões em 2003 para nove bilhões em uma década depois. Foi principalmente a partir do segundo mandato de Lula da Silva (2007-2010) que, em articulação com o projeto desenvolvimentista exposto em seu Plano Plurianual (2004-2007), que se identifica o deslocamento de unidades das escolas técnicas federais para o interior.
Desta forma, a realidade destas instituições em relação ao uso de equipamentos e tecnologia de ponta estão em desacordo com as necessidades sugeridas pelo diretor da Semesp, uma vez que o investimento atual para que as instituições federais possam adquirir seus equipamentos e manterem suas instituições funcionando diminuiu consideravelmente, como aponta o site de notícias G1(2020/08/23) “a quantia em 2010 era de R$ 2,78 bilhões - e caiu para bem menos da metade em 2019 (R$ 760 milhões). Os valores foram corrigidos pela inflação”.
Dessa forma, como afirma o diretor da Fapesp (Folha de S. Paulo, 2021/06/22):
precisamos transformar a perspectiva da economia do país. As principais perdas de recursos dentro do governo federal atingiram ciência, tecnologia e educação. Ora, sem ciência e tecnologia não há futuro para o país. Os governantes devem adotar novas políticas de apoio para garantir o futuro. Não adianta ficar o tempo todo preocupado com as manobras econômicas, primeiro precisamos criar o dinheiro, e o que cria o dinheiro é a ciência e a tecnologia, é a competição nessa área.
Nessa direção, a aplicação de novas metodologias aliada às instituições de ensino tecnológicos, como é o caso da UTFPR, será bem mais possível à medida em que investimentos e políticas de atualização tecnológicas de equipamento e de pessoal sejam implementadas também com políticas que viabilizem esta situação.
Metodologia
Este trabalho foi de natureza qualitativa, com base na pesquisa bibliográfica, documental e discursiva (Foucault, 2008, 2014). Para o corpus, separamos exemplos da rotina da UTFPR em que metodologias ativas são empregadas como auxiliares no processo de ensino-aprendizagem das atividades acadêmicas.
Discussão
Para analisar as relações entre dispositivos e metodologias ativas, devemos também compreender o discurso promovido pela instituição a que nos dirigimos. A UTFPR é a pioneira nessa modalidade de ensino no Brasil, com foco em cursos de graduação, pós-graduação e extensão, com a missão de desenvolver a educação tecnológica por meio do ensino, pesquisa e extensão (Portal UTFPR, 2017).
Promovendo esse discurso, a universidade cria um dispositivo que propõe uma imagem de universidade com uma metodologia de ensino totalmente diferenciada, em que se aprende predominantemente por meio de metodologias ativas vinculadas à tecnologias inovadoras, quando na verdade a tecnologia se apresenta como auxiliar de conhecimento adquirido com as convencionais práticas discursivas.
Quanto ao uso de software, mostrado na figura a seguir, inserido desde o início da vida acadêmica dos alunos da UTFPR, é um software que auxilia na visualização e compreensão de situações-problema em relação aos assuntos abordados teoricamente.
Podemos analisar esse dispositivo a partir da curva de visibilidade descrita por Deleuze segundo Gregolin (2016). As curvas de visibilidade explicam que ao carregar um “T tecnológico” no nome, como a sigla UTFPR, e promover incessantemente o discurso e a imagem, por meio das diversas mídias digitais, de uma universidade voltada para a tecnologia, a instituição cria uma visibilidade excessiva, em que a ideia enfatiza o trabalho com metodologias ativas ligadas à tecnologia, aliado ao discurso veiculado pela própria instituição, o que faz do termo UTFPR um dispositivo.
No canal do youtube da UTFPR há um vídeo institucional bilingue(inglês-português) que mostra a história da UTFPR. O trecho da Figura 3 mostra o momento em que o Centro Federal de Educação Tecnológica do Paraná estava lotado de computadores implicando em um espaço educacional bastante tecnológico que colabora para construir uma ideia de tecnologia em torno da história da UTFPR.
A Figura 2 divulga o envolvimento da UTFPR em eventos utilizando cartazes digitais e relacionando a um importante evento local associado à tecnologia.
No twitter oficial da UTFPR há a notícia de que o app móvel da UTFPR disponibiliza cartão digital, horários de aulas, histórico escolar, matriz curricular e cardápio do restaurante universitário.
A Figura 5 exibe na página oficial da UTFPR no twitter a imagem dos pesquisadores da UTFPR que criam equipamentos de drones para ajudar no resgate de vítimas em desastres naturais.
Este recorte é da página do Instagram da UTFPR, que é um trecho de pesquisa que mostra a relação entre a UTFPR e a tecnologia nos meios de comunicação que associam o dispositivo tecnológico à instituição UTFPR.O detalhe fala sobre o curso Indústria 4.0 que acontece na UTFPR, campus Ponta Grossa e mostra alunos da UTFPR Ponta Grossa interagindo com alunos da Universidade Compiegne da França.
Após pontuar esses exemplos de enunciados produzidos na mídia sobre a UTFPR, verificamos a tecnologia como dispositivo foucaultiano que vincula o discurso da instituição a verdades (Foucault, 2014) da atualidade.
Conclusões
A partir do estudo bibliográfico e dos conhecimentos adquiridos, a instituição UTFPR, propaga um discurso de inovação e ensino tecnológico, em que se cria um dispositivo sobre essa prática discursiva, que vincula a universidade a uma política pedagógica inovadora, rodeada de metodologias ativas e dispositivos eletrônicos.
Ao criar essa expectativa, o aluno que ingressa na UTFPR se depara com uma realidade diferente, onde há o auxílio de recursos tecnológicos aliados às práticas discursivas das aulas convencionais, mas não necessariamente esses recursos são predominantes nas salas de aula. Embora não substitua as práticas discursivas, a utilização de metodologias ativas auxilia na formação profissional em vários pontos, auxiliando o aluno na visualização e na resolução de um problema, além de desenvolver um olhar crítico. Podemos tomar como exemplo de metodologias ativas combinadas com aulas convencionais, a utilização de softwares e equipamentos que simulam a teoria de forma prática.
Para exemplificar o uso dessas tecnologias, citamos um software utilizado nas aulas de Física que permite ao aluno uma visualização mais ampla de diversos fenômenos por meio de simulações virtuais, proporcionando um maior entendimento da parte teórica, e proporcionando uma comodidade de mostrar a “prática” sem a necessidade de sair da sala de aula, além de um menor custo benefício para a universidade, que por ser uma simulação virtual, não traz custos materiais para a instituição.
Além disso, enfatizamos a relação que a história das políticas públicas direcionadas às instituições de ensino desta natureza acarretam para a implementação ou não de metodologias ativas, uma vez que para atualização da implementação de metodologias também são necessários investimentos que surgem também a partir de injeção de recursos nas instituições de ensino, questão bastante difícil nas últimas gestões administrativas.
Este trabalho não vem para apontar erros ou acertos, mas para convidar o leitor a questionar se de fato o discurso que se promove é consistente com o que é oferecido, tanto como instituição como como indivíduo. Pois no caso do objeto de estudo em questão, observou-se que o discurso que se promove gera linhas de forças que nos fazem inserir as metodologias anteriormente citadas, mas que mesmo com esse esforço, reflexo do dispositivo, ainda não temos no cotidiano da universidade a mesma realidade promovida nos discursos.