I. Introdução
O título deste artigo resgata um trecho do “Rap da Felicidade” escrito em 1995 pelos MC Cidinho e MC Doca, moradores da favela Cidade de Deus no Rio de Janeiro. Atual, a música demonstra a realidade contraditória dos diferentes territórios populares brasileiros, pois ao mesmo tempo em que estes estão vulneráveis diante das ausências e limites das políticas sociais governamentais, da voracidade do mercado e da ação do Estado, eles afirmam cotidianamente o viver através de práticas sócio-espaciais solidárias, inventivas e perturbadoras das histórias estabelecidas. Essas práticas incidem sobre o território e espelham redes de apoio e solidariedade, que no contexto da pandemia de Covid-19 se aprofundam. Esse trabalho tem como objetivo fazer um relato de uma dessas práticas, a Campanha de Solidariedade “Periferia Viva”.
Como resultado da inserção de Lilian de Souza na organização da Campanha em Juiz de Fora, cidade média de Minas Gerais e hoje (junho de 2020) a terceira maior em número de casos confirmados no Estado, pretende-se demonstrar como, na presença insuficiente do Estado, os moradores das periferias têm buscado construir e fortalecer uma rede nacional de luta e solidariedade no enfrentamento da pandemia, tendo como referência o seu território.
II. Campanha “periferia viva”: solidariedades horizontais no enfrentamento à pandemia
Ao se espacializar as ocorrências e óbitos na escala intra-urbana, nota-se o quanto o vírus se molda conforme as características da desigualdade sócio-espacial de cada país e cidade, desvelando os impactos da pandemia no tecido urbano e revelando seu caráter social. A doença atinge com mais gravidade e letalidade os residentes pobres dos territórios periféricos de nossas cidades, onde, segundo Barbosa, Teixeira, e Braga (2020), as diferentes formas e processos de impacto da pandemia no espaço urbano se agudizam, em função das condições precárias de acesso à moradia, infraestrutura básica e equipamentos de saúde. Os autores analisam a cidade do Rio de Janeiro, mas indicam que é possível estabelecer correspondência entre contágio, letalidade e hierarquização do espaço também em outras localidades, pois mesmo com as especificidades de sua formação, a cidade como lugar de realização da vida vai expressar espacialmente as relações sociais capitalistas, fundadas nas desigualdades sócio-espaciais.
Fruto dos processos de produção desigual do espaço urbano, as favelas, periferias e ocupações são cada vez mais numerosas nas cidades brasileiras. Lócus da reprodução dos trabalhadores, são ocupadas por pessoas de baixa renda, em sua maioria negras. Estes sujeitos têm suas vidas marcadas pela distinção corpóreo-territorial de direitos e cerceadas por restrições materiais e simbólicas, experimentando condições instáveis de existência e morando em edificações improvisadas e sem infraestruturas. Acrescenta-se a isso a ausência ou ineficiência de políticas públicas, a localização precária em termos de acesso aos serviços, equipamentos sociais e à vida urbana, as vulnerabilidades territoriais envolvendo os conflitos provenientes do domínio coercitivo e violento, tanto do Estado quanto dos grupos ilegais, e as demais vulnerabilidades sociais (Barbosa, 2013).
Ocupados nas atividades ligadas ao comércio e serviços informais ou de pequena escala, estes sujeitos não podem vivenciar as medidas de isolamento porque precisam circular pela cidade para procurarem emprego ou trabalharem em ocupações mal remuneradas. Fazem isso utilizando o transporte público, normalmente cheio, sendo um potencial espaço de contaminação. Sem lugar para ficarem em isolamento, voltam para suas casas, geralmente adensadas e muitas vezes sem saneamento adequado, o que dificulta e até mesmo impossibilita os procedimentos de higiene indicados no combate à Covid-19, aumentando as chances de propagação da doença.
Segundo Campos (2020), o que se presencia hoje no Brasil é resultado de opções políticas que historicamente privilegiaram interesses econômicos ao invés da garantia dos direitos básicos conquistados pela mobilização dos trabalhadores e promulgados na Constituição Federal de 1988. Desse modo, a letalidade da doença nos territórios populares se configura como desdobramento “da desassistência, da desproteção, da carência de serviços públicos, da ausência de políticas universais de proteção social” (Campos, 2020, p. 72).
Diante deste cenário, o caminho para homens e mulheres se manterem vivos é a solidariedade. Nas periferias, ela já está presente no cotidiano, porque o espaço é não apenas onde se expressam as desigualdades, mas também o lugar da vida, das experiências, da construção de práticas coletivas em que pelas horizontalidades, o cotidiano territorialmente partilhado cria suas próprias normas “fundadas na similitude ou na complementaridade das produções e no exercício de uma existência solidária” (Santos, 1996, p. 55), resultante da vizinhança, da coabitação e da coexistência do diverso.
Essa solidariedade horizontal vivenciada nas periferias é experienciada e constantemente renovada através de ações corpóreas e relacionais, que se dão sobretudo na dimensão do território, entendido como espaço socialmente produzido a partir das condições materiais e simbólicas que permeiam as experiências, práticas e intenções de determinados sujeitos (Santos, 1998). Para Barbosa e Silva (2013) é neste vínculo territorial que se encontra a força dos que habitam as periferias. No território, esses sujeitos reconhecem o sentido de coletividade, assentado no pertencimento e na capacidade de mobilização que possibilitam que eles se tornem sujeitos sociais ao evidenciarem o território como referência. O território, portanto, extrapola relações político-administrativas, sendo demarcado pelas ações de homens e mulheres capazes de mobilizar distintas forças e operar mudanças através de interesses coletivos e solidariedade.
É dessa forma que os sujeitos residentes das periferias forjam estratégias de solidariedade capazes de reforçar laços de sociabilidade e pertencimento e que se projetam no território, mobilizando vizinhos, entidades civis, movimentos sociais, universidade e outros atores, próximos e/ou distantes. Essas iniciativas são ainda mais decisivas num momento de enfrentamento de pandemia.
Este é o caso da Campanha Nacional “Periferia Viva” - solidariedade para combater o corona vírus. Espaço de articulação de movimentos do campo e da cidade, de universidades públicas, de organizações populares e pastorais e principalmente de coletivos que têm origem e atuam nos próprios territórios periféricos, a iniciativa teve início em abril de 2020, pretendendo associar e fortalecer ações que estão acontecendo em cidades de todo o Brasil, dentre elas Juiz de Fora (Campanha Nacional Periferia Viva, 2020).
Na cidade, a Campanha é organizada pelo Coletivo Vozes da Rua, ligado à cultura hip hop, no bairro Santa Cândida, e pelo Levante Popular da Juventude, que organiza um cursinho popular no mesmo bairro, localizado na região Leste da cidade. A região é caracterizada por ser densamente habitada por trabalhadores que em sua maioria recebem até 2 salários mínimos mensais, além de abrigar um grande número de ocupações em áreas de risco (PMJF, 2004). Essa região também é reconhecida por seu histórico de lutas e ações que denunciam as desigualdades, reivindicam direitos, assim como pela riqueza de suas expressões estéticas e de sua produção cultural.
A principal ação desenvolvida na campanha, cujo logo se pode ver na figura 1, é a doação de cestas contendo alimentos, máscaras e materiais de higiene e limpeza, mas atividades pontuais também são realizadas.
Com a contribuição do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, da Escola Municipal Santa Cândida, da Universidade Federal de Juiz de Fora e de artistas, foi organizado um show online para arrecadação financeira, distribuição de alimentos de áreas de Reforma Agrária no Santa Cândida e para moradores de rua, e entrega de kits contendo material pedagógico, sabão e sabonete líquido para todos os estudantes matriculados na escola do bairro.
Na Periferia Viva, a solidariedade está junto da luta por direitos e é entendida como ferramenta concreta de luta política e pela sobrevivência. Em suas ações, as famílias recebem um panfleto com orientações de saúde e, seguindo os protocolos de segurança, dialogam com os grupos envolvidos. Isso se dá porque, para além de arrecadar e distribuir bens, a Campanha pretende que a solidariedade possa ter uma dimensão ativa que potencialize o lugar de sujeito daqueles que a organizam e daqueles para qual ela se direciona. Ela se configura, desse modo, como um espaço de formação e organização política de todos os envolvidos, procurando estimular a necessária participação coletiva no enfrentamento da pandemia e de seus efeitos sobre a vida e o território dos sujeitos. Para tanto, as redes sociais da Periferia Viva são polos de educação em saúde, organização popular e informações confiáveis que revelam o caráter dessa crise sanitária, política, econômica e social que tanto impacta a vida dos brasileiros.
Em Juiz de Fora, a Campanha nasceu no bairro Santa Cândida, mas a cada contribuição, ela cresce e extrapola os limites do território, chegando a centenas de famílias moradoras de 16 bairros de diferentes regiões urbanas da cidade, tal como se pode ver no mapa (fig. 2).
A capilaridade das ações no espaço urbano juizforano se dá, entre outros motivos, pela adoção de uma metodologia identificada como bola de neve. A princípio, as doações chegaram às famílias necessitadas do Santa Cândida ou conhecidas pelos envolvidos na Campanha, em seguida, estas indicavam outras e assim sucessivamente. Grupos organizados também foram apontados desta forma e as iniciativas da “Periferia Viva” se somaram às já desenvolvidas por estes atores. Desse modo, a Campanha foi se expandido, ganhando visibilidade e chegando às famílias com trajetórias próximas e a territórios periféricos marcados pela vulnerabilidade, mas também por redes e sociabilidades solidárias. O reconhecimento foi imediato, visto que os bairros e sujeitos sustentam uma mesma identidade territorial e de classe.
Nesse sentido, pode-se apontar que por meio da solidariedade, os sujeitos periféricos estão estabelecendo redes amplas e complexas para se manterem vivos. Atualmente, a Campanha impulsiona os envolvidos a se relacionarem com indivíduos e grupos oriundos de outras periferias e também de realidades distantes da vivenciada no Santa Cândida, o que acaba por estimular processos de construção de laços sociais e territoriais, criando um novo sentido de pertencimento e solidariedade. Isso amplia tanto a leitura, apropriação e uso da cidade quanto a ação que se desenvolve, contribuindo para “reencaixar” a periferia no mapa da cidade (Almeida, 2013, p. 160) e afirmar seus moradores como sujeitos políticos.
Sérgio Vaz versa que a periferia une “pelo amor, pela dor e pela cor” e é de lá que “há-de vir a voz que grita contra o silêncio que nos pune. Eis que surge das ladeiras um povo lindo e inteligente galopando contra o passado. A favor de um futuro limpo, para todos os brasileiros” (Vaz, 2008, p. 246). O poeta reconhece a periferia como espaço de multiplicidades e campo de lutas e as ações desencadeadas pela Campanha “Periferia Viva” explicitam como a solidariedade vinda dos territórios populares criam territorialidades e se colocam como experiências de interação, comunicação e criação entre sujeitos, que fazem emergir desse movimento não só estratégias de sobrevivência e de contornamentos aos estigmas e cerceamentos que lhes são impostos, mas também sonhos e lutas.
III. Algumas considerações finais
Assim como nos demais países do mundo, no Brasil, o vírus primeiro se espalhou entre a população moradora de áreas valorizadas das grandes cidades. Contudo, a primeira morte registrada foi a de uma empregada doméstica que não pôde ficar em casa por não ter sido dispensada do trabalho, mesmo tendo os patrões testado positivo para Covid-19. A situação mostra que embora as formas de transmissão e o risco de adoecimento e morte não sejam seletivas, elas são, todavia, exponencialmente potencializadas em consequência das desigualdades sócio-espaciais.
Mas, se de um lado a pandemia escancara as desigualdades e as vulnerabilidades às quais os trabalhadores pauperizados estão submetidos, por outro ela acentua as redes de organização, proteção e solidariedade que incidem sobre os territórios periféricos das cidades brasileiras. Assim, entendendo os processos de restrições, estigmas e ataques sob os quais vivem os moradores dos diferentes territórios populares, é possível pensar que estes sujeitos e seus espaços permanecem vivos e afirmando sua existência na cidade a partir das redes de proteção estabelecidas. No contexto de pandemia, isso fica mais explícito com as muitas e diversas ações de solidariedade com o intuito de amortecer os impactos do avanço da doença que têm surgido e se têm expandido nas periferias, tal como a Campanha “Periferia Viva”.
Na Campanha, as famílias recebem a doação ao mesmo tempo que abrem canal de comunicação com as organizações envolvidas, estabelecendo territorialidades costuradas pela solidariedade. Esses encontros e afetos encetam possibilidades para que os moradores das periferias se (re)conheçam e (re)afirmem como portadores de direitos, situando assim, para o conjunto da cidade, seus territórios como espaços plurais, compostos por uma multiplicidade de trajetórias e práticas sociais e culturais, sem, no entanto, deixarem de demandar do Estado sua responsabilidade no cuidado e garantia da vida, ainda mais urgente diante da pandemia.