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Revista Diacrítica
Print version ISSN 0807-8967
Diacrítica vol.27 no.1 Braga 2013
Menço ou minto? Regularização de paradigmas verbais
Menço ou minto? Regularization of verbal paradigms
Maria João Colaço*; Esperança Cardeira**
*Faculté des Langues et des Cultures Etrangères - Universidade de Estrasburgo, França, m.j.colaco@hotmail.com
**Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa Departamento de Linguística Geral e Românica, Portugal, ecardeira@hotmail.com
RESUMO
As mudanças sofridas pelos verbos em português ocorreram em diversas fases da história da língua, dando muitas vezes origem a irregularidades no paradigma verbal.
O objectivo deste trabalho é estudar um grupo de verbos de padrão especial que apresentam um lexema para a primeira pessoa do singular do presente do indicativo e para todas as formas do presente do conjuntivo oposto ao lexema dos outros tempos: SENTIO > senço, ARDEO > arço, AUDIO > ouço, MENTIO > menço, PETIO > peço, PERDO (*PERDEO) > perço. No entanto, cada um destes verbos evoluiu de modo autónomo, não apresentando as mesmas características.
Procura-se determinar os fenómenos responsáveis pela evolução destas formas verbais, a fim de averiguar a época em que houve variação, analisando cada uma das formas pertinentes. Para isso, recorreu-se ao uso de corpora constituídos por documentos escritos do português arcaico.
Palavras chave: variação; mudança; analogia; morfologia verbal.
ABSTRACT
The changes suffered by the verbs in Portuguese occurred in different periods of the history originating often irregularities in the verbal paradigm.
The main objective of this article is to study a group of special pattern verbs which present a particular lexeme for the first person singular present indicative and all the present subjunctive forms that distinguish themselfs from the other tenses: SENTIO > senço, ARDEO > arço, AUDIO > ouço, MENTIO > menço, PETIO > peço, PERDO (*PERDEO) > perço. However, each one of these verbs evolved independently, not showing the same characteristics.
This study aims to determine the phenomena involved in the evolution of these verbal forms and to investigate within which epoch was variation registred, analysing each one of the pertinent forms. In order to ascertain these questions, corpora constituted by archaic Portuguese written documents were used.
Keywords: variation; change; analogy; verbal morphology.
*
1-Introdução
A variação e a mudança são duas das características que definem a natureza das línguas naturais. Ao longo dos séculos o português sofreu mudanças e conheceu períodos de instabilidade em que diferentes formas estiveram em concorrência. Assim, um estudo variacionista será, seguramente, o melhor caminho a seguir na análise diacrónica de uma mudança linguística.
Este trabalho tem como objetivo a observação de um grupo de verbos que, pela sua evolução fonética, constituiu um tipo de padrão especial e que, influenciados por diversos fatores, nomeadamente fatores de ordem psicológica e cultural, passaram por um período de variação que resultou na regularização de uns, mas não de outros. Este período abrangeu cerca de três séculos (séculos XIII, XIV e XV).
A fim de compreender o modo como se realizou a alteração na morfologia verbal deste grupo de palavras, é necessário estudar o período em que o fenómeno se deu e os fatores que deram origem a mudanças não fonéticas, como, por exemplo, a analogia.
Com base em documentos literários e notariais galegos e portugueses, far-se-á a sistematização e a análise da variação que se regista para este grupo de verbos que apresentaram, em resultado da ação das leis fonéticas, o radical de primeira pessoa do singular do presente do indicativo e de todas as pessoas do presente do conjuntivo fechado por sibilante, diferente do radical das restantes formas verbais.
2-Os Verbos de Padrão Especial em Português
A evolução fonética regular está na base de grande parte das irregularidades no paradigma verbal, que ainda hoje se verificam na língua. Estes verbos irregulares a que Mattos e Silva (2008: 412-425) dá o nome de verbos de padrão especial são por esta autora agrupados por tipo de irregularidade em quatro subgrupos diferentes:
Subgrupo 1: verbos que apresentam variação no lexema das formas do não-perfeito e têm lexema específico para as formas do perfeito, com ou sem variante (p. ex. dizer);
Subgrupo 2: verbos que apresentam lexema invariável para as formas do não-perfeito e têm lexema específico para as formas do perfeito (p. ex. saber);
Subgrupo 3: verbos que apresentam variação nos lexemas do não perfeito, sendo o lexema das formas do perfeito a variante mais generalizada do lexema do não-perfeito (p. ex. arder, crescer);
Subgrupo 4: verbos de PP especial, tradicionalmente chamado particípio forte (p. ex. abrir).
O primeiro subgrupo é constituído por verbos em que a consoante final do radical se modifica foneticamente em contacto com a semivogal [j], embora não na primeira pessoa do singular do presente do indicativo nem nas formas do presente do conjuntivo. A consoante oclusiva latina [k] sonorizada pelo contexto intervocálico mantém-se, enquanto nas restantes formas fricatiza para [dz] > [z] (cf. DICO > digo vs. DICIS > dizes). A oclusiva [g], em verbos como cingir, também se manteve no conjuntivo e na primeira pessoa do indicativo, mas alterou-se para a africada [d?] e mais tarde para a fricativa [?] nas outras formas do presente do indicativo. Esta distinção rapidamente desapareceu na língua, tendo a consoante [g] sido substituída por [?] por analogia com as outras formas. Contudo, em erguer a regularização foi diferente da dos restantes verbos, uma vez que a consoante [g] do radical da primeira pessoa predominou sobre as outras (cf. erges > ergues) (Piel 1989: 24-25).
No subgrupo 2 constam verbos como saber, prazer, caber e dar, que são por sua vez subcategorizados em dois tipos. No tipo a) agrupam-se os verbos em que se deu uma metátese da semivogal [j] para a sílaba anterior nas formas do presente do conjuntivo. É o caso do verbo saber: sab[j]a (lat. sapeat) > saiba. Nas formas dos tempos do perfeito deu-se também uma metátese (SAPUI- > soub-), que resultou do deslocamento do u para a sílaba anterior. No tipo b) encontramos o verbo dar, que apresenta duas vogais temáticas diferentes: VTa para os tempos do não-perfeito e VTe para os tempos do perfeito (cf. dás vs. deste) (Mattos e Silva 2008: 412-425).
Ao terceiro subgrupo, constituído pelos verbos que têm um lexema para a primeira pessoa do singular do presente do indicativo e para todas as formas do presente do conjuntivo oposto ao lexema dos outros tempos, pertencem:
(i) verbos como ARDEO > arço, AUDIO > ouço, MENTIO > menço, PETIO > peço, em que a sibilante é proveniente da palatalização dos conjuntos latinos [tj] e [dj]. Esta mudança fonológica deu-se pela presença da semivogal [j], que afeta as consoantes correspondentes a <c>, <t> e <d>, transformando-as em <ç> = [ts] > [s], fenómeno que não só se manifestou em formas verbais, como também em palavras de outras classes (Piel, 1989: 25). Contudo, observando o elenco de verbos em que esta palatalização se deu no português arcaico, constatamos que, por analogia com as outras pessoas do presente do indicativo, alguns destes verbos readotaram as consoantes oclusivas [d] e [t] (ardo e minto), ao passo que outros mantiveram a forma correspondente à evolução fonética da palavra (ouvir, pedir e medir) (Maia, 1995: 24-25);[1]
(ii) verbos incoativos como acaecer, conhocer, nacer, crecer (Mattos e Silva, 2008: 412-425), que apresentaram evoluções diferentes entre si até aos dias de hoje. Este tipo de verbos provém de uma construção latina que consistia na inserção de um infixo <sc> que se associava à vogal temática dos verbos, conferindo-lhes, assim, um valor de início de ação, pelo que a este tipo de verbos se dá o nome de verbos incoativos (do lat. inchoare). Esta partícula incoativa, que se podia aplicar a verbos de qualquer uma das quatro conjugações latinas, dava sempre origem a verbos de terceira conjugação (tema em e, -SCERE), que se fixaram em português na segunda conjugação, como seria de esperar (Costa, 2007: 13-27). Deste modo, coexistiam dois verbos com a mesma base, mas com um valor aspetual diferente cf. DORMIRE (dormir) vs. ADDORMISCERE (adormecer, começar a dormir). Hoje em dia, alguns destes verbos nem sempre contêm este valor incoativo (MERESCERE > merecer), embora esta dicotomia se mantenha para muitos dos verbos desta classe.[2]
A evolução fonética que a sequência <sc> sofreu deu origem a diferentes irregularidades. Este morfema, constituído por duas consoantes, era produzido em latim como uma fricativa línguodental surda [s], na posição de coda da primeira sílaba, e como uma oclusiva velar surda [k], na posição de ataque da segunda sílaba. Esta última consoante já terá chegado ao português como uma consoante africada predorsodental [ts], tendo resultado mais tarde na fricativa [s] que hoje existe na língua. Visto que nos primórdios do português a consoante correspondente a <s> ainda não havia palatalizado em [?], sendo provavelmente produzida como [?], pelo menos em grande parte das regiões de Portugal (tal como se verifica hoje em certas regiões setentrionais, onde ainda se conservam as sibilantes apicais), esta terá sido assimilada pela consoante [s], correspondente a <c> /<ç>, simplificando assim num só fone, devido ao elevadíssimo número de traços distintivos que passaram a partilhar (Costa, 2007: 13-27). Assim, esta sequência passou a representar-se maioritariamente como <c> /<ç>, representação substituída, em muitos verbos, pela grafia etimológica, o que influenciou inclusivamente a maneira como estas palavras são pronunciadas. Portanto, esta mudança fonética foi provocada por fatores externos à língua, nomeadamente histórico-culturais, uma vez que a sequência <sc> foi recuperada por volta dos séculos XVI / XVII para várias palavras de diferentes classes, numa tentativa de reaproximação do português às suas raízes latinas. Esta tentativa não abrangeu todos os verbos incoativos existentes no português,[3] o que resultou nas diferentes formas que hoje existem na língua (nasco > nasço vs. paresco > pareço).
Relativamente ao subgrupo 4, este é constituído pelos verbos de particípio passado irregular, tradicionalmente chamados particípios fortes, já que são acentuados no seu radical e não na vogal temática, tal como acontece com os particípios regulares. Também estes se subdividem.
(i) No primeiro grupo, encontramos verbos como abrir, escrever e cobrir, cuja construção de particípio passado provém do étimo latino ao qual acrescentamos os morfemas nominais de género e de número (cf. abr- / abert-).
(ii) No segundo grupo, o particípio passado constrói-se a partir do radical único do verbo, acrescentando-lhe os morfemas de género e número. A este subgrupo pertencem verbos como aceitar, juntar e salvar - cf. aceitar / aceite (Mattos e Silva, 2008: 412-425). Durante o período arcaico estas formas coexistiram com outras (acesas / acendudas). O mesmo se verifica nos dias de hoje, em que muitos particípios passados irregulares são substituídos pela sua vertente regular, dependendo do contexto em que surjam (morto / matado). Outros, ainda, desapareceram em favor de formas regulares que eliminaram a forma etimológica do particípio passado (coit- / cosid-) (Mattos e Silva, 2008: 412-425).
Como vimos, as irregularidades inerentes aos verbos de padrão especial do português são variadíssimas. Por essa razão, pretende-se estudar e analisar mais detalhadamente os verbos pertencentes ao terceiro subgrupo, que apresentam o lexema da 1ª pessoa do presente do indicativo e de todas as pessoas do presente do conjuntivo terminado em sibilante. Pretende-se, igualmente, estudar os fenómenos que levaram à regularização de muitas destas formas. Entre eles, encontra-se a analogia, que explica algumas mudanças morfológicas destes verbos.
3-A analogia
A questão das mudanças analógicas é muito importante para este estudo, uma vez que justifica a maioria das regularidades em paradigmas onde, devido a mudanças resultantes de leis fonéticas, encontraríamos irregularidades.
O que são, então, as leis fonéticas e o que é a analogia? As mudanças fonéticas são regulares e afectam qualquer signo dentro do mesmo contexto fonológico, independentemente da categoria da palavra ou da função morfológica que o constituinte afetado desempenha na palavra em que se assinala este tipo de mudança. Este carácter cego da evolução dos sons justifica-se pelo facto de que as mudanças fonéticas seguem uma lógica diferente da lógica do sistema linguístico, isto é, operam meramente a nível da mudança sonora (Lucchesi, 1998: 77-78). As mudanças analógicas, contrariamente às leis fonéticas, têm uma motivação mais pragmática e são reflexo da representação mental que os falantes têm das palavras que conhecem, estabelecendo relações associativas entre elas. Vejamos o modo como estas mudanças ocorrem e o tipo de relações subjacentes a este fenómeno.
3.1-A ação niveladora da analogia nos paradigmas verbais
Silva (1998: 23) exemplifica os diferentes tipos de regularização analógica dentro do quadro da flexão verbal do português:
1- por modelos próprios do verbo geralmente quando ocorre a regularização dos radicais que, resultantes de leis fonéticas, se tinham tornado estranhos à maioria da conjugação (arço, ardes > ardo, ardes);
2- por esquemas alheios, de outros verbos, mas ainda dentro da mesma classe. Está neste caso a regularização dos morfemas sufixais que exercem uma força coercitiva de conjunto (dei, deste, dei (arc.) > dei, deste, deu); mas também o podemos ver no aparecimento de algumas formas fracas de perfeito de verbos que primitivamente tinham perfeitos fortes, exercendo-se a força reguladora simultaneamente no radical e nas desinências (jouve, crive > jazi, cri).
As regularizações que se operam no grupo de verbos que forma o nosso objeto de estudo, isto é, os verbos pertencentes ao subgrupo 3, segundo a classificação de Mattos e Silva (2008), constituem o primeiro tipo de processo de analogia, de acordo com o quadro acima apresentado. Para além de apresentar a classificação dos diferentes tipos de analogia, dentro do quadro da flexão verbal do português, Silva (1998: 21) refere, ainda, que a mudança analógica nos paradigmas verbais (e não só) deriva de associações que se estabelecem na mente do falante e que podem ser de três tipos:
(i) Funcionais é o caso da desinência -eu, que substitui -ei na terceira pessoa do singular dos pretéritos perfeitos fracos da segunda conjugação. O falante associa este morfema a uma função específica, destruindo, deste modo, a ambiguidade anteriormente existente.
(ii) Semânticas aplica-se a verbos com significados semelhantes ou opostos, que adotam as características um do outro. Exemplo deste tipo de fenómeno é o particípio passado do verbo ouvir, muitas vezes produzido como ouvisto, à imagem de visto.
(iii) Morfológicas um verbo afectado por este tipo de associação é jazer, já que, durante o período arcaico, apresentava o radical JASC- na primeira pessoa do singular do presente do indicativo e todas as pessoas do presente do conjuntivo à semelhança dos verbos incoativos, que também apresentavam dois radicais diferentes nas formas do presente.
A analogia, que atua no sentido de nivelar a língua, corrigindo as irregularidades produzidas pelas leis fonéticas, dá muitas vezes origem a novas irregularidades, criando formas que concorrem com a forma original resultante da sua evolução fonética. Esta situação provoca um desequilíbrio no sistema, uma vez que as novas formas ficam em variação com as antigas, o que pode resultar no desaparecimento de uma das formas ou dar origem a mudança, numa tentativa de voltar a equilibrar o sistema, através de um emprego restrito e particular para cada uma das formas resultantes, na alteração semântica de alguma ou no desaparecimento quer da forma analógica quer da forma etimológica (Alonso, 1989: 75-78).
A analogia é tradicionalmente classificada em três diferentes tipos:
(i) nivelação analógica (que resulta na diminuição da alternância nos paradigmas) um caso ilustrativo é precisamente o verbo arder, que constitui um dos verbos em estudo neste trabalho. Visto que a evolução fonética das suas formas deu origem a uma irregularidade - neste caso, a existência de dois lexemas para as formas do presente - um dos lexemas foi eliminado, passando a existir uma só forma para o radical do presente (arço, ardes > ardo, ardes).
(ii) extensão analógica (que resulta na criação de alternância em paradigmas em que ela não existia) este tipo de analogia revela-se em palavras como acordos, cuja vogal do radical se pronuncia frequentemente como [?], à imagem do que acontece com palavras como porcos (p[?]rcos). A alternância vocálica que existe entre as palavras p[o]rco, p[?]rca e p[?]rcos deve-se a uma harmonização vocálica que se deu na palavra porcu, devido à presença da vogal final [u], o que não ocorre com as duas outras palavras, já que as suas vogais finais ([a] e [o]) não são altas. Porém, a palavra acordo não sofreu nenhuma harmonização, sendo que a vogal [o] do radical provém da evolução fonética da palavra latina, tanto no singular quanto no plural.
(iii) criação analógica (que consiste na adição ao léxico de uma palavra que se relaciona com outra já existente) um exemplo deste tipo de criação é a palavra cheeseburger, que surgiu pela substituição de um segmento da palavra hamburger ham (fiambre) que, apesar de não ser um constituinte morfológico da palavra, foi interpretado como tal (Marquilhas, 1996: 578-579)
Para os estruturalistas, a analogia constitui um tipo de mudança que não pressupõe uma alteração no sistema (Alonso, 1989: 76). De facto, consiste na imitação regular por parte dos falantes, criando determinadas construções que se aproximam de outras já presentes na língua. Deste modo, dá-se uma substituição de formas anteriormente existentes no sistema linguístico. Como este tipo de regularização não é sistemático, afeta apenas algumas formas e, visto que a analogia é um fenómeno de natureza psicológica e não mecânica (como são as leis fonéticas), a sua ocorrência é imprevisível. Assim, a sua abrangência não é total, o que se traduz numa atuação esporádica (Marquilhas, 1996: 578-579). Trata-se de um fenómeno que não depende simplesmente de uma tentativa de equilibrar formas onde se encontra desproporção, mas é reflexo de um conjunto de regras já estabelecidas no sistema gramatical dos falantes, que relacionam forma e função. Estas regras acabam por se estender a novos casos, aos quais não eram anteriormente aplicadas.
O tipo de mudança analógica que diz respeito aos verbos aqui estudados é a nivelação analógica, pois estas regularizações (arço, ardes > ardo, ardes) acabam com a existência de dois radicais verbais para o presente do indicativo e do conjuntivo em algumas formas. Pretende-se avaliar cada uma das formas verbais deste tipo e analisar a sua evolução, tentando perceber que fenómenos ocorreram na regularização de algumas delas, de que maneira atuou a analogia nestas mudanças e em que casos não é possível explicar linguisticamente as alterações que se deram no paradigma verbal.
4-Dados linguísticos
Neste ponto pretende-se fazer uma análise sistemática da evolução dos verbos que apresentam dois radicais para o presente um para a 1ª pessoa do singular do presente do indicativo e todas as formas do conjuntivo e um para as restantes formas do presente do indicativo.
Antes de passar ao estudo dos dados recolhidos é importante fazer uma breve descrição dos documentos que constituem o corpus deste trabalho. Estes foram retirados de corpora em formato digital, que estão disponíveis online: Corpus informatizado do Português Medieval, Tesouro Medieval Galego-português e Cantigas Medievais Galego-Portuguesas, sendo que os textos selecionados abrangem o período entre os séculos XIII e XVI, e são provenientes de diversas regiões de Portugal e da Galiza. Estamos conscientes de que a distribuição geográfica destes documentos peca por haver mais registos de textos galegos[4] e do norte de Portugal do que do sul. Em contrapartida, procurámos utilizar documentos de diversos tipos, de modo a melhor avaliar a evolução das formas verbais em estudo em diversos registos textuais.
Importa acentuar que o estudo que se realizará será mais qualitativo do que quantitativo, devido à referida discrepância na proveniência dos textos a estudar ou a falta de informação referente à sua origem, já que há muitos textos cuja procedência não é certa. Assim, a análise dos dados a nível geográfico contemplará apenas as ocorrências de textos cuja proveniência se conhece. A análise diacrónica destes verbos será, por isso, o principal alvo deste trabalho.
4.1-Verbo sentir
Antes de observar o comportamento deste verbo no período arcaico, apresenta-se abaixo um quadro com todas as ocorrências[5] pertinentes para o presente estudo, ou seja, todas as formas do presente do conjuntivo e 1ª pessoa do singular do presente do indicativo.
Tabela 1- Sentir
Presente do indicativo | Presente do conjuntivo | |||
Forma etimológica | Forma variante | Forma etimológica | Forma variante | |
P1 | senço (2) | sinto (39), sento (5) | ||
P2 | sintas (1) | |||
P3 | sença (3) | sinta (8), senta (2) | ||
P4 | sintamos (7) | |||
P5 | sençades (3) | |||
P6 | sintam (2), sentam (1) |
Há, para este verbo, dois radicais que concorrem com o radical etimológico, cuja diferença reside precisamente na vogal do radical. Note-se que a forma do radical que se perdeu, SENT-, é a mesma das restantes formas do presente (cf. sent-es) e, no entanto, não foi a que vingou, mas sim SINT-. Isto mostra-nos que a analogia actua de dois modos diferentes. Além da nivelação analógica na regularização deste grupo de verbos, com a generalização de uma só consoante final do radical de todas as formas do presente, deu-se também uma extensão analógica, que criou uma alternância vocálica, anteriormente inexistente. Poderá pensar-se que estes verbos, cuja vogal do radical se alterou, tenham seguido o modelo de verbos como ferir, em que encontramos dois radicais diferentes, com a mesma distribuição (firo vs. feres). Contudo, não há nenhum indício suficientemente forte que nos permita afirmar que esta terá sido a associação que levou à alternância vocálica. Outros fatores poderão ter influenciado a evolução destas formas.
Registam-se poucas formas do presente para o verbo sentir. Porém, podemos ver que há mais ocorrências de formas analógicas com o radical SINT- (58) do que SENT- (8). Note-se, também, que a presença do radical etimológico SENÇ- é muito pequena no corpus observado (8).
Vejamos a distribuição destes dados ao longo dos séculos em que houve variação.
No século XIII ainda não há registos de variação, encontrando-se apenas formas verbais terminadas em sibilante. Destas formas etimológicas há ainda uma ocorrência no século XIV, a par das duas formas analógicas acima referidas (SINT- e SENT-), que predominam neste período. De acordo com estes dados, o século XIV parece ser o período em que se regista maior variação para este verbo, havendo um número bastante significativo de formas com o radical SENT- (33,3%), o que nos leva a crer que a extensão analógica que ocorreu nestas formas do verbo sentir possa ter sido posterior à nivelação analógica que se manifestou nos restantes verbos deste grupo, eliminando qualquer tipo de variação paradigmática para o presente. Contudo, não se poderá afirmar categoricamente que tenha sido essa a ordem da evolução destas formas verbais. Os dois processos analógicos sofridos por este verbo podem ter aparecido na língua mais ou menos no mesmo momento, de um modo independente. Devido à escassez de dados referentes a este período, não nos é possível tirar conclusões claras neste sentido. No entanto, o facto de o radical SENT- se registar predominantemente no século XIV leva-nos a colocar esta hipótese, especialmente porque os restantes verbos deste grupo, à exceção do verbo mentir, apenas sofreram um tipo de analogia o nivelamento analógico.
No século XV só se registam duas ocorrências do radical SENT-. Como seria de esperar, as formas etimológicas deste verbo já se encontram extintas, o que significa que durante este período a pouca variação existente aponta, já, para a estabilização da mudança.
4.2-Verbo perder
Tal como acima vimos para o verbo sentir, também perder apresentou, durante o período arcaico, três radicais diferentes para as formas do presente do conjuntivo e primeira pessoa do singular do presente do indicativo. Ao contrário de todos os outros verbos aqui em estudo, perder foi o único em que se deu uma mudança não fonética no lexema que não resultou na eliminação da alternância da consoante final do radical, antes numa alteração dessa mesma consoante.
Tabela 2-Perder
Presente do indicativo | Presente do conjuntivo | |||
Forma etimológica | Forma variante | Forma etimológica | Forma variante | |
P1 | perço (18) | perco (12), perdo (2) | perca (3) | |
P2 | perças (1) | percas (1) | ||
P3 | perça (49) | perca (297) perda (21) | ||
P4 | perçamos (3) | percamos (9) perdamos (2) | ||
P5 | perçades (6) | percades (207), per-dades (2) perdaes (1) | ||
P6 | perçam (5) | percam (73) |
Para este verbo, registaram-se bastantes ocorrências, como se pode ver, o que já nos permitirá fazer uma análise diacrónica e geográfica destas formas verbais.
Olhando para o conjunto de todas as ocorrências vemos que, à semelhança do que se observou para sentir, as formas resultantes da ação da extensão analógica sobre este paradigma não se fixaram na língua, tendo o radical PERC- substituído as outras duas formas concorrentes (PERÇ-, PERD-). De facto, esta é a forma que mais vezes se registou, seguida da diretamente resultante da forma etimológica. As formas em PERD- são as menos frequentes na nossa amostra (4%).
Analisemos, então, como se distribuem estas formas diacronicamente:
Relativamente aos documentos portugueses do século XIII, 48% das ocorrências que se registam mantêm a sua forma etimológica, o que mostra que este foi o século que testemunhou o maior período de variação, sendo que o surgimento das formas variantes tem que ter sido anterior a esta época, embora no nosso corpus não se registem dados anteriores referentes a este verbo.
Também se observa a existência de dois radicais não etimológicos, embora a forma PERD-, igual ao radical das restantes formas do presente, ocorra com menor frequência (18% de todas as ocorrências) do que a forma PERC-, que prevaleceu.
As ocorrências referentes ao século XIV demonstram que o lexema etimológico corresponde a 4,2% das ocorrências de perder neste século, o que já aponta para uma preferência dos falantes pelo uso do radical PERC- neste grupo de formas do presente. O uso da forma PERD- diminuiu bastante relativamente ao século XIII, constituindo agora apenas 3,5% das ocorrências.
No século XV, o radical etimológico PERÇ- representa apenas 4,5% destas formas verbais, não havendo uma grande diferença quanto ao uso desta forma relativamente ao século anterior. Quanto ao radical proveniente da ação da extensão analógica neste paradigma (PERD-), é nítido que o seu uso sofreu um decréscimo acentuado, registando-se apenas duas ocorrências no nosso corpus (0,7%), pelo que se pressupõe que nesta época provavelmente já não pertencesse ao léxico ativo dos falantes. Mais uma vez, observa-se que o radical PERD-, igual à forma usada para as restantes pessoas do presente do indicativo, é eliminado na língua, em favor de uma outra forma em que se regista alternância no paradigma do presente.
Relativamente ao século XVI, podemos afirmar que os poucos dados recolhidos (18 ocorrências) corroboram as tendências que os demais dados faziam prever, sendo que todos eles correspondem à forma do radical que hoje se regista. Contudo, não é certo que durante este período não houvesse alguma variação. O reduzido número de ocorrências não nos permite presumir tal com absoluta certeza, mas tudo indica que no século XVI o radical PERC- já se tivesse estabelecido na língua como a única forma gramaticalmente aceite para a primeira pessoa do presente do singular do indicativo e todas as pessoas do presente do conjuntivo.
Em relação aos textos galegos, observa-se que o radical analógico PERD- surge com baixíssima frequência no século XIV, acabando por não ocorrer nos séculos seguintes nos documentos observados, o que é curioso, já que essa foi a forma que se fixou na língua galega. A forma etimológica também regista um decréscimo em favor da outra forma variante, PERC-.
4.3-Verbo arder
Arder é um dos verbos que pertencem ao elenco de verbos de padrão especial pertinentes para este estudo. No entanto, a sua ocorrência na língua corrente, contrariamente a verbos como perder, pedir ou ouvir, que pertencem ao vocabulário quotidiano dos falantes, é bastante reduzida, pelo que as formas de arder constituintes do nosso corpus se registaram também em número muito reduzido. Assim, far-se-á a descrição e a distribuição diacrónica e regional das poucas ocorrências deste verbo, tendo em conta que dificilmente se poderá fazer alguma generalização a respeito das diferentes fases por que passou durante o período de variação.
Tabela 3-Arder
Presente do indicativo | Presente do conjuntivo | |||
Forma etimológica | Forma variante | Forma etimológica | Forma variante | |
P1 | ||||
P2 | ||||
P3 | arça (3) | arda (1), arca (1) | ||
P4 | ardamos (1) | |||
P5 | ardades (1) | |||
P6 |
Vemos nesta tabela que apenas se obtiveram sete formas deste verbo; o radical etimológico e o analógico surgem praticamente com a mesma frequência. Observa-se também uma forma com o radical ARC-, que, por ser uma ocorrência isolada, talvez se possa considerar como uma questão meramente gráfica, uma vez que a alternância <c> ~<ç> era bastante frequente nesta época. Porém, vale sublinhar que a insuficiência de dados não permite averiguar qual terá sido a história desta e das restantes formas de arder.
Todas as ocorrências se distribuem pelos séculos XIII e XIV; apenas uma provém de um documento do século XIV. No século XIII encontramos o mesmo número de formas etimológicas e variantes (3 ocorrências), embora, devido aos poucos dados encontrados, não possamos ver qual seria a verdadeira tendência deste verbo durante este período. A única forma detetada para o século XIV é formada com o radical ARD-, tal como nos dias de hoje. Contudo, somos levados a supor que, à semelhança do que se verifica com os outros verbos, as duas formas tenham estado em concorrência até mais tarde.
Relativamente à distribuição geográfica destas formas verbais, não será possível fazer a sua sistematização, já que se tem conhecimento da origem de apenas três das ocorrências.
4.4-Verbo ouvir
Neste estudo, apenas se assinalam dois radicais alternativos das formas relevantes do presente (OUÇ- e OY-). Note-se que o lexema OIÇ-, que hoje se encontra em variação com a forma OUÇ-, ainda não se regista durante o período arcaico, pelo menos nos documentos por nós analisados. Abaixo apresenta-se o quadro com todos os dados encontrados referentes a ouvir.
Tabela 4-Ouvir
Presente do indicativo | Presente do conjuntivo | |||
Forma etimológica | Forma variante | Forma etimológica | Forma variante | |
P1 | ouço (59) | oyo (103) | ouça (2) | |
P2 | ouças (3) | |||
P3 | ouça (14) | oya (6) | ||
P4 | ouçamos (3) | |||
P5 | ouçais (3), ouçades (10) | |||
P6 | ouçam (18) | oyam (8) |
Olhando para a distribuição destas formas, concluímos que os radicais variantes apenas se registam na primeira pessoa do singular do presente do indicativo e na terceira do singular e do plural do presente do conjuntivo. Contudo, estas formas constituem 53% de todas as ocorrências obtidas.
Vejamos agora como se distribuem estas formas diacronicamente:
Para este verbo, encontram-se formas referentes aos séculos XIII, XIV e XV nos documentos portugueses. Quanto aos galegos, os dados obtidos são todos provenientes de textos que datam do século XIV. A distribuição destas formas é nítida a forma etimológica permaneceu na língua portuguesa, aparentemente sem ter estado em variação com a forma OY-, que encontramos em abundância nos textos galegos e que constitui o radical utilizado hoje nesta língua.
4.5-Verbo pedir
A seguir a perder, pedir é o verbo em relação ao qual se encontram mais ocorrências, o que nos permite uma análise mais detalhada dos fenómenos envolvidos nesta mudança.
Tabela 5-Pedir
Presente do indicativo | Presente do conjuntivo | |||
Forma etimológica | Forma variante | Forma etimológica | Forma variante | |
P1 | peço (118) | pido (84) | peça | |
P2 | ||||
P3 | peça (14) | pida (3) | ||
P4 | peçamos (3) | pidamos (2) | ||
P5 | peçais (1) | pidades (1) | ||
P6 | peçam (7) |
Os dois radicais que se apresentam encontram-se em número bastante equilibrado, sendo que a forma analógica corresponde a 41% de todas as formas. Importa referir que, à semelhança do que se apontou em relação ao verbo ouvir, em pedir o radical PID- foi o que prevaleceu na língua galega, pelo que a proveniência dos documentos em que se encontra cada uma das formas estudadas é de grande relevância na análise deste verbo. É provável que o uso de cada um dos radicais seja característico de determinadas regiões, esperando-se que haja uma preferência pelo radical variante pelo menos na Galiza e possivelmente no norte de Portugal.
De acordo com as nossas expectativas, as formas analógicas de pedir predominam nos textos galegos, correspondendo à totalidade das formas encontradas, o que nos leva a concluir que este verbo poderá nunca ter tido um radical concorrente dentro do que hoje constitui o território português. Não será, no entanto, de excluir a hipótese de que possa ter havido alguma variação nas regiões portuguesas circundantes da Galiza, apesar da inexistência de documentos comprovativos.
Relativamente ao percurso que este verbo teve na Galiza, não se regista variação no século XIII: as três formas encontradas são construídas com o radical etimológico, não se distinguindo, portanto, das formas portuguesas. No século XIV surgem as primeiras formas construídas com o radical PID-, embora em número reduzido (16%), o que demonstra que a forma PEÇ- seria ainda a menos marcada, durante este período. É no século XV que o lexema que hoje constitui o radical do presente do verbo galego pedir se generaliza. Apesar de ainda se assinalarem algumas formas verbais etimológicas (15%), já se adivinha o domínio da nova forma, que se manterá na língua galega até hoje. Este verbo parece seguir o padrão evolutivo do verbo ouvir, que já analisámos acima. A distinção que passa a existir entre os radicais portugueses e os galegos poderá ter origem na influência do castelhano sobre a língua galega, uma vez que as formas inovadoras que surgem no galego são semelhantes às castelhanas já existentes.
4.6-Verbo mentir
Apesar de pertencer ao vocabulário corrente dos falantes, este é um verbo para o qual não se registaram muitas ocorrências. Contudo, tentaremos examinar a sua evolução ao longo dos séculos, em Portugal e na Galiza.
Tabela 6-Mentir
Presente do indicativo | Presente do conjuntivo | |||
Forma etimológica | Forma variante | Forma etimológica | Forma variante | |
P1 | menço (1) | minto (2) | minta (1) | |
P2 | ||||
P3 | mença (2) | minta (2) | ||
P4 | ||||
P5 | mençades (4) | |||
P6 |
A partir da distribuição que acima se apresenta, podemos perceber que a forma etimológica e a variante tiveram uma presença relativamente equilibrada, ao longo deste período, não havendo registo de um uso preferencial notório de uma forma em detrimento da outra. No entanto, sabemos que cada século conta a sua história, bem como cada lugar. Assim, observemos o modo como estas formas se distribuem:
Curiosamente, apenas se obtiveram dados relativos ao século XIII e ao século XV, pelo que o período de variação e transição não se regista. Porém, somos levados a calcular que, durante o século XIV, as formas etimológicas tenham coexistido com as formas analógicas.
5-Conclusões
A partir da sistematização e análise que foi feita relativamente a este grupo de verbos que, em resultado da sua evolução fonética, constituem um tipo de verbos de padrão especial, cujo radical das formas do presente do conjuntivo e primeira pessoa do singular do presente do indicativo difere do radical das demais formas verbais, chegámos à conclusão de que não é possível estabelecer um padrão evolutivo comum a todos os verbos.
Ainda assim, podemos subdividir este grupo em quatro padrões distintos:
1º padrão constituído pelos verbos ouvir e pedir, para os quais se regista variação a partir do século XIII, sendo que, até esse momento, os lexemas OUÇ- e PEÇ- ainda não haviam sofrido a ação da analogia que, mais tarde, se manifestou. Observamos também que as formas analógicas que se assinalam apenas se encontram em textos galegos. Assim, com margem para dúvidas, podemos supor que as formas etimológicas chegam ao português sem sofrer alterações, já que também não passaram por um período de variação no território onde hoje se fala português. Vale referir que as formas alternativas que surgiram nos textos galegos para estes verbos são as mesmas que se registam na língua atual. Em galego, o verbo oír não regularizou e o radical do presente do conjuntivo e primeira pessoa do singular do presente do indicativo terminado em semivogal, OI-, difere do radical das restantes formas, O- (oio, oes, oia), ao passo que no caso do verbo pedir existe um radical verbal específico para todas as pessoas do presente, que difere do radical dos restantes tempos (pido, pides, pedi).
2º padrão constituído pelo verbo arder, que durante o seu período de variação apenas apresentou dois radicais variantes para as formas do conjuntivo e primeira pessoa do singular do presente do indicativo a forma etimológica e a forma resultante da ação de nivelação analógica, que acabou por se generalizar, tanto em português, como em galego.
Poderemos imaginar que a nivelação analógica tenha sido mais eficaz para este verbo do que para os restantes, devido à sua reduzida frequência de uso, comparado com os outros verbos (perder, pedir, ouvir, mentir e sentir), que constituem vocábulos do quotidiano dos falantes. Embora o verbo arder não seja dos mais raros, emprega-se em situações peculiares. Assim, observamos que o significado, a pragmática, a iteração ou qualquer outra relação associada às palavras interferem em questões morfológicas e fonológicas, o que justifica a existência de quatro padrões distintos neste grupo de verbos.
3º padrão constituído pelos verbos sentir e mentir, para os quais se registam três radicais alternativos durante o período de variação no português arcaico (SENÇ-, SENT-, SINT- e MENÇ-, MENT-, MINT-) um correspondente à forma etimológica, um outro proveniente de uma nivelação analógica (SENT-, MENT-) e um resultante, provavelmente, de uma extensão analógica derivada da influência dos verbos que apresentam alternância vocálica nos radicais do presente, como ferir, dormir e correr (SINT-, MINT-). Esta última forma, que eliminou a alternância da consoante final do radical mas introduziu uma alternância vocálica, foi a que se fixou em ambas as línguas.
4º padrão constituído pelo verbo perder. Relativamente a este verbo, como já foi referido, não se encontra uma explicação óbvia para a adoção do radical PERC-, que concorreu com a forma etimológica PERÇ- e com PERD-, resultante da nivelação analógica, e que, apesar de se distanciar da morfologia do radical das restantes formas, foi adotada pelos falantes, mantendo assim a alternância paradigmática já antes existente. Parece-nos, contudo, plausível assumir que a variação gráfica <c> vs. <ç> existente na época possa estar na origem da criação deste radical. Em galego, foi o radical PERD- que, pela ação da nivelação analógica, prevaleceu, eliminado, assim, qualquer alternância em todas as formas verbais.
Curiosamente, observamos uma ocorrência do uso de um radical terminado em <c> relativa ao verbo arder (arca). Este caso isolado pode levar-nos a pensar que a consoante alternativa seja apenas resultado da dita variação gráfica, representando, portanto, a consoante sibilante do radical etimológico. O facto de não haver mais registos desta forma corrobora a hipótese de que não existiu realmente um radical terminado em consoante oclusiva para este verbo, o que significa que a variação gráfica não terá afetado o verbo arder. Será então legítimo perguntarmo-nos se este tipo de variação gráfica pode constituir a verdadeira causa da variação e posterior mudança das formas do verbo perder? De facto, não seria um caso único na história da língua portuguesa. Recordemos como a inovação gráfica dos verbos incoativos influenciou a nossa língua, alterando a pronúncia da consoante final do radical (nacer > nascer [naser] > [na?ser] / [n??er]). Além disso, a frequência de uso do verbo perder é nitidamente superior à do verbo arder, como acima já indicámos, o que levou à existência de dois padrões evolutivos distintos para estes dois verbos .
A nível geográfico, observa-se que os documentos galegos apontam para tendências diferentes, que adivinham desde cedo a separação linguística que veio a dar-se posteriormente. Esta distinção começa a partir do século XIII, acentuando-se nitidamente no século XIV, sendo que é no século XV que termina o período de variação, apesar da existência de raras ocorrências de formas etimológicas nos documentos galegos desta época, que seriam, com certeza, consideradas formas marcadas e conservadoras para a maioria dos falantes, visto que a grafia está sempre um passo atrás da realidade linguística oral. Vale referir que esta separação entre galego e português se deveu, em grande parte, a fatores externos. No caso do galego, a influência do castelhano não pode ser menosprezada. Os verbos oír e pedir são exemplos muito concretos desta influência, dado que estas formas variantes, idênticas às castelhanas, e que encontrámos em documentos galegos desde o século XIII, não surgiram em documentos portugueses em nenhum momento do período em que os verbos pertencentes a este grupo sofreram variação. Isto significa que enquanto a variação e mudança que os verbos portugueses sofreram se pode justificar pela ação da analogia (nivelação analógica ou extensão analógica), as mudanças verbais do galego mostram como outros fatores, como o contexto histórico, podem ter um papel determinante na evolução de uma língua. Não poderemos, porém, afirmar que todas as mudanças que ocorreram nestas formas verbais galegas tenham tido a mesma causa. A regularização do verbo perder (perdo, perdes, etc.), que não se verificou na língua portuguesa, parece ser um caso típico de regularização por nivelação analógica. Além do mais, as formas verbais castelhanas do presente não são iguais às formas galegas (pierdo vs. perdemos), havendo alternância paradigmática relativa ao acento.
A partir da análise que fizemos de cada verbo concluímos que, embora cada um tenha a sua história própria, todos eles passaram por um período de grande variação e instabilidade no século XIV, em que vários radicais verbais coexistiam no mesmo sistema linguístico. Observámos, também, que foi no século XV que se estabeleceram as mudanças que permaneceram, tanto em português como em galego, até aos dias de hoje. Estas observações confirmam, assim, as propostas de periodização que apontam para uma fase de instabilidade que, nos finais do século XIV, separa o português antigo do português médio. Ao longo do período médio (ou seja: ao longo do século XV, quando as ocorrências das formas arcaicas se tornam raras) são selecionadas as variantes que se imporão no português clássico do século XVI. Historicamente, a este período de seleção de variantes corresponde a definitiva separação política e linguística entre o português de raiz setentrional, ligado à Galiza, e o português centro-meridional. Enquanto a Galiza sofria a ocupação castelhana, Portugal definia-se como reino independente. A localização da corte na Estremadura, elegendo as variedades centro-meridionais como modelo linguístico, será determinante para o processo de estandardização do português.
Na história de uma língua interferem, indubitavelmente, fatores de natureza linguística e extra-linguística. É, por isso, necessário termos em conta fatores diversificados como a analogia, principal motor de regularização dos paradigmas dos verbos portugueses deste grupo; a influência de outras línguas, nomeadamente a influência do castelhano em determinados verbos galegos; a grafia, que terá sido a causa da criação do atual radical do verbo perder, bem como outros fatores de ordem psicológica e social, que levaram à regularização de alguns verbos, mas não de outros do mesmo tipo.
Este grupo de verbos é, assim, uma prova de que a língua é dependente da ação do Homem, das suas necessidades, do seu conhecimento e do contexto cultural em que existe. É impossível dissociar uma língua dos seus falantes, da sua história e da sua cultura: a língua é reflexo da toda a experiência humana.
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Notas:
[1] Curiosamente, esta palatalização da consoante final dos verbos, que se deu em galego-português, mas não em castelhano (peço vs. pido), ocorreu nesta língua em palavras de outras classes: PLATEA > plaza, CAPITIA > cabeza e PUTEU > pozo (Piel, 1989).
[2] Na verdade, já no latim vulgar se verificava esta perda semântica do infixo incoativo em certos verbos (Väänänen, 1967: 146)
[3] Aliás, dialectalmente, a <nascer> corresponde ainda hoje na[s]er, com fricativa predorsodental ou apicoalveolar (não palatal).
[4] Em alguns documentos galegos ocorrem formas em castelhano; estas formas serão, naturalmente, excluídas da análise.
[5] Por não as considerarmos pertinentes para o presente estudo não registamos, para este e para os outros verbos, as alografias do tipo sinto ~ synto.