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Nascer e Crescer
Print version ISSN 0872-0754
Nascer e Crescer vol.21 no.4 Porto Dec. 2012
Displasia de desenvolvimento da anca: seis anos de rastreio ecográfico a crianças de risco
Susana Gomes1, Sónia Antunes1, Catarina Diamantino1, Ana Pinheiro1, Isabel Nabais1, Maria José Mendes1, Jorge Palácios1, Rui Rosado1
1S. Pediatria, H Espírito Santo, Évora
RESUMO
Introdução: A displasia de desenvolvimento da anca (DDA) é uma patologia congénita, cujo rastreio é baseado no exame físico sistemático, existindo controvérsia sobre quais as crianças que deverão ser submetidas a métodos imagiológicos.
O protocolo de rastreio utilizado na nossa maternidade inclui o exame físico a todos os recém-nascidos, complementado por ecografia das ancas, sempre que existam fatores de risco para DDA (suspeita clínica, antecedentes familiares, apresentação pélvica, gemelaridade, malformação dos membros inferiores, oligoâmnios). Se a ecografia revelar alterações é repetida após um mês, e aos cinco meses realizada radiografia das ancas.
Objetivo: Avaliar a adequação e valor do protocolo de rastreio da DDA utilizado no nosso hospital. Identificar as implicações diagnósticas da inclusão de crianças com fatores de risco no protocolo.
Material e Métodos: Análise descritiva retrospetiva dos dados clínicos das crianças incluídas no protocolo entre 2001 e 2006.
Resultados: Foram incluídas no protocolo 668 crianças, 102 das quais com alterações sugestivas de DDA na primeira ecografia (incidência de 11,7/1000 nados-vivos). Os sinais de Ortolani e Barlow em conjunto tiveram especificidade de 99,8% e sensibilidade de 22,5% para o diagnóstico, porém em 40 crianças foi diagnosticada DDA na ausência de alteração física. Em 29 casos foram utilizados dispositivos de abdução das ancas, não havendo necessidade de cirurgia. Não se registaram complicações; 2,7% abandonaram o protocolo.
Conclusão: A inclusão de crianças com fatores de risco permitiu detetar casos de DDA sem qualquer sinal clínico e iniciar precocemente o tratamento. A evolução favorável, a ausência de complicações e a boa aderência dos utentes permitem-nos concluir que o protocolo é eficaz.
Palavras-chave: Displasia de desenvolvimento da anca, ecografia, fatores de risco, rastreio.
Developmental dysplasia of the hip: six years of ultrasound screening in risk children
ABSTRACT
Introduction: Developmental dysplasia of the hip (DDH) is a congenital condition that is screened based on systematic physical examination. Submission to image exams and its optimal occasion remains controversial.
The screening protocol used in our hospital includes physical examination to all neonates, complemented by hip ultrasound (US) if any risk factor for the development of DDH is detected: clinical suspicion, family history, breech presentation, multiple gestation, lower limb deformity or oligoamnius. In case of suspected anomaly, US is repeated one month after and hip radiography is performed at five months of age.
Aims: Evaluate the adequacy and value of the screening protocol for DDH used in our hospital and to identify the diagnostic implications of including high risk children.
Methods: Descriptive retrospective analysis of clinical data of children admitted to the protocol from 2001 to 2006.
Results: One hundred and two of the 668 children submitted to the protocol were considered to have US DDH criteria (incidence 11.7/1000 live births). Barlow and Ortolani signals, when used together, had a specificity of 99.8% and a sensibility of 22.5% to the diagnosis, but 40 of the screened had n clinical signs. In 29 cases hip abduction corrective devices were used and there was no need for surgical correction. There were no complications of treatment; 2.7% of the children abandoned the protocol.
Conclusion: The inclusion of children with risk factors allowed the detection of DDH without clinical findings and their early treatment.
The favourable outcome and the inexistence of complications allow us to conclude that the protocol is effective.
Keywords: Congenital hip dysplasia, risk factors, screening, ultrasound.
INTRODUÇÃO
A displasia de desenvolvimento da anca (DDA) inclui um espectro de condições clínicas caracterizadas pela existência de alterações anatómicas que impedem o perfeito alinhamento entre o acetábulo e a cabeça do fémur.(1) Apesar de ser uma patologia congénita, as manifestações clínicas nem sempre estão presentes no nascimento e podem ser evolutivas, razão pela qual foi abandonada a antiga denominação de luxação congénita da anca.
A incidência de DDA descrita na literatura é variável de acordo com a metodologia utilizada, estimando-se ocorrências de 8,6/1000 a 25/1000 crianças quando são considerados critérios de diagnóstico estritamente clínicos ou ecográficos, respetivamente. (2,3)
Os fatores que aumentam a probabilidade de ocorrência de DDA são o género feminino, antecedentes familiares de DDA, apresentação pélvica, situações que diminuam a mobilidade in útero (oligoâmnios, artrogripose, gemelaridade), alterações posturais congénitas (torcicolo congénito, plagiocefalia) e malformações congénitas dos membros inferiores (metatarso varo, pé boto). (4,5) A macrossomia é considerada fator de risco em algumas séries. (3,5)
O diagnóstico da DDA baseia-se no exame físico, realizado desde o nascimento até à aquisição de marcha autónoma, com especial valorização dos sinais de Ortolani e Barlow(6) que, quando presentes em simultâneo, têm especificidade de 98-99% e sensibilidade de 87-99% para o diagnóstico.(7) A assimetria das pregas (inguinais, glúteas e crurais) e a limitação da abdução das ancas têm menor especificidade. (4)
Perante evidência clínica de DDA, está recomendada a realização de exame de imagem (ecografia da anca até aos quatro meses de vida ou radiografia da bacia em incidência antero-posterior após esta idade) e referência a ortopedista ou cirurgião pediátrico experiente no diagnóstico e orientação terapêutica desta patologia. (4)
As estratégias terapêuticas têm como objetivo a redução concêntrica da articulação coxo-femural e a manutenção do contacto entre as cartilagens da superfície articular proximal do fémur e pavimento do acetábulo. Para tal são utilizados aparelhos de abdução das ancas, tais como Pavlik®, Frejka®, Aberdeen®, ou a imobilização da articulação coxo-femoral, em abdução, com calção gessado. (1) A utilização de fralda dupla ou tripla, recomendada no passado, foi abandonada pelo baixo sucesso terapêutico. (8)
A precocidade no diagnóstico da DDA permite terapêuticas menos invasivas e mais eficazes, pelo que se torna pertinente a existência de um programa de rastreio que possibilite a identificação atempada das crianças com esta patologia, reduzindo os diagnósticos tardios da doença. (4)
O rastreio ecográfico sistemático, ainda preconizado em alguns países, está atualmente desaconselhado pela Academia Americana de Pediatria pelo risco de sobrediagnóstico (falsos-positivos), com o recurso desnecessário a terapêutica ortopédica e a eventuais complicações desta decorrentes. O rastreio ecográfico seletivo a crianças com fatores de risco é uma estratégia que se revela mais promissora por minimizar os falsos-positivos relatados com os rastreios universais. (4,9)
A Secção para o estudo da Ortopedia Infantil da Sociedade Portuguesa de Ortopedia e Traumatologia defende que o rastreio imagiológico da DDA (ecográfico às seis semanas de vida e radiológico após os quatro meses de idade) deverá ser feito a todas as crianças com evidência clínica de instabilidade da anca ou fatores de risco para a ocorrência de DDA. (10)
Desde 2001, foi implementado no nosso hospital um protocolo de rastreio de DDA que inclui o exame físico sistemático de todos os recém-nascidos, complementado seletivamente por ecografia da anca (utilizando o método de Graaf modificado) Este exame é realizado, durante a permanência na maternidade, se existirem sinais clínicos sugestivos de DDA (sinais de Ortolani, Barlow, limitação da abdução ou click à manipulação da anca) ou fatores de risco (antecedentes familiares de DDA em familiar direto, apresentação pélvica, gemelaridade, malformação dos membros inferiores ou oligoâmnios). Se a ecografia mostrar sinais sugestivos de DDA é repetida após um mês e aos cinco meses é realizada radiografia das ancas. Estas crianças são seguidas em consulta de Cirurgia Pediátrica, por especialista com treino em ecografia da anca, até à aquisição de marcha autónoma.
OBJETIVOS
São definidos dois objetivos:
- Avaliar a adequação e o valor do protocolo de rastreio de DDA utilizado no nosso hospital.
- Identificar o impacto diagnóstico da inclusão de crianças com fatores de risco no nosso protocolo de rastreio da DDA, comparativamente à utilização do exame físico isolado como forma de rastreio.
MATERIAL E MÉTODOS
Estudo retrospetivo realizado através da consulta dos registos clínicos das crianças admitidas no protocolo de rastreio da DDA entre Janeiro de 2001 e Dezembro de 2006.
Recolha de dados relativos a sexo, identificação dos fatores de risco, evidência de sinais clínicos sugestivos de DDA, achados imagiológicos, diagnóstico, terapêutica, complicações decorrentes da terapêutica e cumprimento do protocolo.
Análise descritiva dos dados.
RESULTADOS
Durante os seis anos analisados, participaram no protocolo 668 crianças. Destas, 155 (23,2%) foram incluídas por apresentarem alterações ao exame objetivo, enquanto as restantes 513 (76,7%) exclusivamente por serem crianças com risco acrescido de DDA. Oitenta e seis (12,9%) reuniam ambas as condições (fator de risco e alteração ao exame objetivo).
Da totalidade da amostra, 262 crianças (39,2%) tinham nascido em apresentação pélvica, 131 (19,6%) correspondiam a gestações múltiplas, 69 (10,3%) tinham deformidades dos pés e 40 (5,9%) antecedentes familiares de DDA.
Cento e duas crianças revelaram alterações sugestivas de DDA na primeira ecografia (15,3% das crianças rastreadas), correspondendo a uma incidência de 11,7/1000 nados-vivos. O principal diagnóstico foi a DDA esquerda (41%), seguida da DDA bilateral (36,5%) e direita (22,5%), totalizando 139 ancas afetadas.
Cinquenta e duas crianças mantinham critérios ecográficos compatíveis com o diagnóstico de DDA na avaliação realizada com um mês de idade. Pelo contrário, 50 (49%) tiveram resolução espontânea durante o primeiro mês de vida.
Das crianças que mantinham alterações ecográficas com um mês de vida, em 23 foi adoptada conduta expectante e vigilância clínica regular. Estas corresponderam maioritariamente a casos de instabilidade da anca ou subluxação, que tiveram uma evolução favorável sem tratamento. Em 29 casos foi realizada terapêutica com aparelho de imobilização das ancas em abdução (Frejka®, Pavlik® ou calção gessado, precedido ou não de tração). Esta terapêutica foi prescrita após constatação ecográfica de alterações: após o primeiro exame em 13 crianças e após um segundo nas restantes por sinais mantidos de luxação irredutível. A incidência de DDA com necessidade de tratamento foi de 3,3/1000 nados-vivos.
Em todas as crianças que cumpriram terapêutica, a radiografia realizada ao 5º mês de vida foi concordante com o diagnóstico de DDA.
Todas as crianças com achados ecográficos positivos, em algum momento do protocolo, foram seguidas em consulta e tiveram alta após terem iniciado a marcha com características normais. Não houve necessidade de intervenção cirúrgica nem complicações decorrentes da terapêutica, nomeadamente necrose avascular da cabeça do fémur.
No que diz respeito aos sinais clínicos sugestivos de DDA, para cada um foram determinadas a sensibilidade, especificidade e valores preditivos (positivo e negativo) considerando, para tal, como método padrão para o diagnóstico a ecografia da anca (Quadro I). Os sinais de Ortolani e Barlow, sobretudo se utilizados em associação, revelaram a maior especificidade para o diagnóstico (99,8%). Todos os sinais clínicos revelaram baixa sensibilidade (<34%). Quarenta crianças sem qualquer alteração ao exame físico tinham critérios ecográficos de DDA, e destas, seis necessitaram de tratamento efetivo.
Quadro I Contributo dos sinais clínicos para o diagnóstico de DDA
Dos fatores de risco considerados, a existência de antecedentes familiares de DDA foi o que mostrou maior proporção de achados ecográficos sugestivos de DDA (25%), seguido da apresentação pélvica (16,7%) e deformidades dos pés (7,2%). Não houve casos de DDA entre os gémeos (Quadro II).
Quadro II Características das crianças admitidas no Protocolo e sua relação com a persistência de alterações ecográficas e necessidade de tratamento.
Dezoito crianças (2,7%) abandonaram o protocolo, nove após a primeira ecografia e nove após a segunda.
DISCUSSÃO
O protocolo apresentado preconiza o início do rastreio ecográfico da DDA durante a permanência na maternidade, com a realização da primeira ecografia antes da alta hospitalar a todas as crianças com alterações ao exame objetivo ou fatores de risco. São conhecidas objeções a esta metodologia, sustentadas pelo facto de nos primeiros dias de vida poderem ser interpretadas ecograficamente como displásicas ancas imaturas, cuja evolução natural seria para a normalização anatómica. (11,12) A opção de manter a realização da ecografia na maternidade deriva do facto de o nosso hospital ter uma área de influência geográfica extensa e considerarmos ser mais difícil sensibilizar os pais para a necessidade da realização do exame em ambulatório. É, desta forma, conseguida uma adesão inicial total ao protocolo. A possível sobrevalorização dos achados ecográficos é tida em consideração na escolha da atitude terapêutica, que é expectante na maioria até à reavaliação ao mês de vida.
O exame físico a todos os recém-nascidos mantém-se como base do nosso protocolo e a presença dos sinais de Ortolani e Barlow, considerados em simultâneo, mostraram uma elevada especificidade para o diagnóstico de DDA. A conjugação destes sinais permitiu a identificação da maioria (79,3%) dos casos de DDA que, pela sua gravidade, necessitaram de tratamento. Todavia, a baixa sensibilidade dos sinais clínicos não permite refutar o diagnóstico de DDA na ausência de alterações ao exame objetivo. No nosso estudo, 40 crianças sem qualquer alteração ao exame objetivo tinham sinais ecográficos sugestivos de DDA, e em seis foi necessária intervenção terapêutica. O recrutamento para o protocolo de rastreio de crianças com fatores de risco, sem quaisquer achados físicos, permitiu o diagnóstico mais precoce destas crianças e o tratamento atempado, ampliando o seu potencial de recuperação funcional.
A gemelaridade foi considerada como fator de inclusão no protocolo por constituir uma situação de menor mobilidade fetal e, dessa forma, poder contribuir para o aumento do risco de DDA. No nosso estudo não encontrámos nenhum gémeo com patologia, pelo que manutenção da gemelaridade como critério de inclusão poderá ser ponderada no futuro.
A taxa de abandono do protocolo (2,7%), apesar de baixa, traduz a ausência de seguimento de 18 crianças que, em algum momento do protocolo, mostraram alterações sugestivas de DDA. Desconhecemos a razão do abandono ou se, eventualmente, terão continuado o seguimento noutro estabelecimento de saúde. Consideramos que é importante reforçar a sensibilização dos pais para esta patologia e para a importância da continuidade do seguimento médico.
Não tivemos conhecimento da existência de algum caso de DDA diagnosticado tardiamente e não submetido ao protocolo de rastreio.
Consideramos que o facto de terem sido diagnosticadas e tratadas com sucesso crianças que, de outra forma, só tardiamente seriam diagnosticadas, associado à ausência de complicações do tratamento valida a aplicação deste protocolo como forma de rastreio da DDA.
BIBLIOGRAFIA
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Susana Gomes
E-mail: susana_gomes@netcabo.pt