Introdução
No âmbito da prestação de cuidados de saúde, a intervenção do Enfermeiro de Reabilitação constitui-se como um aspeto fundamental que contribui de forma inequívoca para a melhoria da independência funcional e consequentemente, da qualidade de vida dos doentes.
Partindo desta premissa, foi criado no Serviço de Ortopedia da Unidade Local de Saúde da Guarda, o Projeto “Habilitar”, dirigido ao doente do foro ortopédico em contexto hospitalar, abrangendo especificamente os doentes submetidos a Artroplastia Total da Anca (ATA) e Artroplastia Total do Joelho (ATJ), no sentido de dar um contributo efetivo na sua recuperação funcional através de uma sistematização de ações que passam pelo ensino, instrução e treino ao longo de todo o processo.
O principal objetivo deste estudo é analisar os ganhos de independência funcional nos doentes submetidos a programa de reabilitação motora pós cirurgia (ATA e ATJ).
1. Enquadramento teórico
De acordo com o regulamento de competências específicas do Enfermeiro Especialista em Enfermagem de Reabilitação (Regulamento nº 392/2019, de 3 de maio), a intervenção do Enfermeiro de Reabilitação é um aspeto determinante na melhoria da independência funcional e consequentemente da qualidade de vida dos doentes. Com o intuito de dar uma contribuição efetiva para a recuperação funcional do doente, em contexto hospitalar, surgiu o Projeto “Habilitar” que visa, de uma forma sistematizada, promover o ensino, instrução e treino aos doentes submetidos a ATA e ATJ. Este projeto contempla uma abordagem estratégica em contexto de pré operatório no domicílio e pós operatório no serviço de internamento, sendo feita uma sistematização de intervenções, que incluem o ensino, instrução e treino relativamente aos cuidados a ter após a cirurgia, a visualização de vídeos, a entrega de folhetos informativos, o treino efetivo de exercícios músculo-articulares, e o treino de marcha com ajuda técnica. Estas intervenções são dirigidas ao doente submetido a ATA e ATJ e ao cuidador informal, no sentido de ajudar na recuperação da sua independência funcional e readaptação social, dando assim um importante contributo para a melhoria da sua qualidade de vida.
Desta forma, o programa de reabilitação orientado para o doente, ao objetivar a mobilização precoce da articulação intervencionada, e o fortalecimento da musculatura envolvida, pretende capacitá-lo, enfatizando a gestão dos autocuidados, no sentido da aquisição da máxima autonomia funcional, bem como a prevenção de complicações no pós-operatório (Flamínio, 2018; Calado, 2017; Gomes, 2014).
2. Métodos
Trata-se de um estudo descritivo, retrospetivo de natureza quantitativa.
2.1 População e Amostra
No serviço de Ortopedia, no período compreendido entre 1 de junho de 2017 e 30 de março de 2019, foram abrangidos pelo projeto 144 doentes.
Foram incluídos todos os doentes submetidos a ATA e ATJ programadas, abrangidos pelo plano de SIGIC (Sistema Integrado de Gestão de Inscritos para Cirurgia), internados no Serviço de Ortopedia da Unidade Local de Saúde da Guarda (ULSG), no período referido.
O tipo de amostragem efetuado foi não probabilística por conveniência.
A totalidade da amostra (100%) usufruiu de uma visita domiciliária e de consulta de follow up nos dois momentos estabelecidos.
2.2 Instrumentos e procedimentos de recolha de dados
O método de recolha de dados teve por base a aplicação de um questionário que integra a Escala de Barthel. O preenchimento do questionário foi da responsabilidade dos investigadores.
Com o intuito de monitorizar a evolução do desempenho dos doentes nas atividades de vida diária aplicou-se a Escala de Barthel, de forma sistematizada, tendo sido feitas várias avaliações sequenciais, designadamente: no pré-internamento (na visita domiciliária, cujo tempo que antecede a cirurgia varia entre os 2 e 4 dias), ao 2º dia de pós-operatório, no momento da alta, e nos 1º e 3º meses após a cirurgia (em consultas de follow up telefónico).
De realçar que foram cumpridos os procedimentos Ético-legais da ULSG e obtido parecer favorável pela Comissão de Ética da ULSG. O anonimato e a confidencialidade das repostas foram assegurados. Foi ainda obtido o consentimento informado, livre e esclarecido.
3. Resultados
Relativamente à caracterização sócio-demográfica, verificou-se que 56.7% dos doentes pertencia ao sexo feminino e 43.3% ao sexo masculino, com uma média de idade de 69.5 anos (Min-37; Máx-87) e um desvio padrão de 8.55. Predominantemente eram residentes em meio rural (71,9%), verificando-se que apenas 28.1% residia em meio urbano. Da totalidade dos doentes abrangidos pelo estudo, 64 foram submetidos a ATA e 80 submetidos a ATJ. A maior percentagem (85.8%) regressou ao domicílio após a cirurgia programada (Tabela 1).
n | % | |
Habitação com vários pisos | 116 | 80.6% |
Necessidade de subir e descer escadas | 105 | 72.9% |
WC com base de chuveiro | 83 | 57.7% |
WC com banheira | 48 | 33.3% |
WC adaptado | 9 | 6.3% |
Sem instalações sanitárias | 7 | 4.8% |
Todos os doentes (100%) foram submetidos ao mesmo protocolo de reabilitação, em consonância com o planeamento uniformizado.
A aplicação da Escala de Barthel, permitiu verificar uma clara recuperação da independência funcional destes doentes, traduzida pela evolução favorável do respetivo score, nas avaliações efetuadas. Constatou-se que após um decrécimo deste valor no 2º dia de pós-operatório, ocorreu um aumento gradual, atingindo um nível de independência funcional aos 3 meses após a cirurgia superior ao estado prévio (antes da cirurgia).(Figura).
4. Discussão
O Projeto “Habilitar” visa, de uma forma sistematizada, promover ensino, instrução e treino dos doentes submetidos a ATA e ATJ. A preponderância deste programa de intervenção possuí como condição basilar uma prévia e correta avaliação inicial dos doentes, com o desígnio de proporcionar cuidados adequados às necessidades de cada um. Neste contexto, Barbosa, Faria, e Neto (2005) defendem que a sistematização de um programa de reabilitação pré e pós-operatório representa cada vez mais uma necessidade, sendo considerado fulcral para o sucesso terapêutico, independentemente da idade. A idade é um fator determinante, muito significativo, no aumento da incidência de artroses, nomeadamente do joelho (Campos & Cruz, 2016; Carvalho, 2010). No que concerne à faixa etária, a média de idades dos doentes incluídos neste estudo (69.5 anos) vai de encontro ao que é encontrado noutros estudos similares e descrito na literatura. Numa revisão sistemática de 19 trabalhos, Pozzi, Snyder-Mackler e Zeni (2013) encontraram médias de idade que variaram entre 65,1 e 72,9 anos. Num estudo desenvolvido por Figueiredo, Machado e Loureiro (2013), numa amostra de 899 doentes, foi encontrada uma média de idade de 70,8 anos.
O desenvolvimento de uma abordagem estratégica em contexto de pré e pós operatório realizada no âmbito do projeto “Habilitar”, permite uma sistematização de intervenções dirigidas ao doente submetido a ATA e ATJ e ao cuidador informal facilitadoras da recuperação da sua independência funcional e readaptação social, tornando-as mais rápidas e efetivas. A este respeito, também Hoeman (2011) considera fundamental o envolvimento dos doentes e famílias neste processo de restauro da função e melhoria da capacidade funcional.
A importância da educação (instrução e treino) dos doentes no período pré operatório, tem um contributo significativo na capacitação sobre os exercícios de Reabilitação. A avaliação, educação e reabilitação pré-operatória do doente, são etapas imprescindíveis no processo de recuperação (Marques-Vieira & Sousa, 2016). Também Coudeyre et al. (2007), referem que a reabilitação pré-operatória contribui para uma recuperação funcional mais rápida, com implicações positivas no pós-operatório, no que concerne ao retorno às AVD e à redução dos cuidados necessários.
Neste projeto, a intervenção da Enfermagem de Reabilitação iniciada no domicílio, no período pré-operatório, durante as visitas domiciliárias, gera momentos de aprendizagem adaptativos compatíveis com o respetivo processo patológico atual. A este respeito, outros autores referem que a avaliação realizada no período pré-operatório deverá ter como complementaridade, os antecedentes pessoais e familiares, os estilos de vida, a sua capacitação funcional na realização das suas atividades de vida (AVD) quotidianas e contexto habitacional e acessibilidade, como presença de escadas e outras barreiras. Neste período interventivo, a correta identificação dos dispositivos de apoio, bem como os equipamentos adaptativos e a perceção dos doentes relativamente às suas capacidades, são aspetos fundamentais que deverão ser avaliados (Hoeman, 2011). A ideia de identificação das características do domicílio do doente, são importantes para que o treino das AVD’s realizado, se possa aproximar da sua realidade (Zimmerman, 2008).
Neste estudo, a totalidade dos doentes beneficiou do ensino, instrução e treino protocolados no serviço, relativamente aos cuidados a ter após a cirurgia, à visualização de vídeos, bem como à entrega de folhetos informativos, aspetos estes que se revestiram de uma importância fulcral, pois possibilitaram elucidar doentes e família, esclarecer as suas dúvidas , indo de encontro ao seu conhecimento não demonstrado. O fornecimento de folhetos irá funcionar como um suporte e vinculação à informação recebida e ajudar na continuidade da recuperação funcional no domicílio (Oliveira, 2012).
À semelhança do que é realizado no âmbito do Projeto “Habilitar”, outras investigações reforçam a importância da educação pré-operatória do doente, enfatizando o aconselhamento e as intervenções pré-operatórias, criando, desta forma, um ambiente facilitador na recuperação dos doentes, com vista à melhoria da funcionalidade (Lucas, Cox, Perry, & Bridges, 2013).
A avaliação, educação e reabilitação pré-operatória nos doentes submetidos a ATA e ATJ são de extrema importância, considerando que a reabilitação pré-operatória visa fundamentalmente contribuir para uma recuperação funcional mais rápida e eficaz fornecendo contributos significativos no pós-operatório, nomeadamente na independência na realização das AVD (Coudeyre et al.,2007) (Gomes, 2014) . Este estudo permitiu perceber que o enfoque especial que é dado, ainda em contexto pré-operatório, permite capacitar o doente o mais precocemente possível, maximizando o seu potencial funcional e de independência, de modo a facilitar a sua reintegração na sociedade.
Após a cirurgia, inicia-se uma abordagem, na qual todos os doentes são submetidos a programa de reabilitação diário, em consonância com um planeamento uniformizado. A este respeito, outros autores sublinham a extrema relevância que os cuidados de enfermagem de reabilitação assumem no sucesso do tratamento dos doentes submetidos a ATJ, recomendando o seu início precoce no pós-operatório (Silva et al., 2010). Os exercícios terapêuticos instituídos no pós-operatório constituem um pilar fundamental na recuperação dos doentes com ATJ, permitindo a recuperação funcional do joelho, contribuindo para a promoção da mobilidade, e funcionalidade (Marques-Vieira & Sousa, 2016). Desta forma, a reabilitação funcional no pós-operatório assume particular importância para os doentes, pois auxilia na realização das atividades diárias, melhorando a funcionalidade com contributos evidentes para um aumento da qualidade de vida(Silva et al., 2010).
À semelhança do que é proposto e realizado no âmbito do projeto “Habilitar”, as intervenções de enfermagem de reabilitação têm o seu foco no incremento da força muscular e da mobilidade, bem como na aquisição de conhecimentos para o uso correto dos dispositivos de adaptação às alterações da mobilidade, que permitam a interação nas atividades sociais e ocupacionais, aliadas ao seu bem-estar (Marques-Vieira & Sousa, 2016).
Os cuidados de reabilitação visam capacitar os doentes para o autocuidado, no sentido da maximização da sua independência (Flamínio, 2018). A inexistência destes cuidados na reabilitação pós ATJ pode contribuir negativamente para a diminuição da função da articulação do joelho, originando diferentes graus de insucesso (Silva & Croci, 2015).
A inatividade no leito, o desuso e a fraqueza muscular encontram-se diretamente relacionados com o compromisso demarcado da mobilidade articular nos doentes submetidos a ATJ (Hoeman, Liszner & Alverzo, 2011). Estes aspetos vão de encontro à sistematização de ações desenvolvidas no âmbito da implementação do projeto “Habilitar”, uma vez que a intervenção diária dos enfermeiros de Reabilitação no serviço de Ortopedia, ao promover o treino efetivo de exercícios músculo-articulares e treino de marcha com ajuda técnica, pretende contrariar os efeitos negativos da imobilidade.
O presente estudo revelou que os doentes submetidos a ATA e ATJ programada, integrados no projeto “Habilitar” e que, por conseguinte, beneficiaram de um programa estruturado de reabilitação, apresentaram uma clara recuperação da Independência Funcional pós cirurgia, traduzida pela evolução favorável do score do Índice de Barthel. A melhoria substancial do Índice de Barthel entre o segundo dia de pós-operatório (61.8) e o momento da alta (89,8), traduz de forma inequívoca a efetividade das intervenções terapêuticas realizadas. Semelhantes resultados foram obtidos noutros estudos em que se utilizou o índice de Barthel para verificar os benefícios das intervenções, na melhoria da capacidade funcional de doentes submetidos a ATJ, mostrando que no período que antecede a alta, os doentes adquiriram um grau elevado de independência na realização das AVD, significando recuperação da mobilidade. Apesar da intervenção cirúrgica se constituir um fator limitativo no pós-operatório, no que concerne aos autocuidados foi comprovada a eficácia das intervenções de reabilitação pela inequívoca progressão dos doentes, com tradução na melhoria da sua capacidade funcional (Flamínio, 2018).
A Ordem dos Enfermeiros defende que perante as necessidades de intervenção especializada junto de um doente, o desenvolvimento de programas especializados, tendo por base a qualidade dos cuidados prestados, visa a melhoria da qualidade de vida do doente, a sua reintegração e participação ativa na comunidade (Regulamento nº 392/2019, de 3 de maio). Neste estudo, a intervenção da Enfermagem de Reabilitação gerou momentos de aprendizagem adaptativos que permitiram capacitar o doente o mais precocemente possível, maximizando o seu potencial funcional e de independência de modo a facilitar a sua reintegração na sociedade, fornecendo contributos inequívocos para a melhoria da qualidade de vida.
Efetivamente, os ganhos em independência funcional assumem-se como um aspeto determinante na melhoria da qualidade de vida, ao permitir capacitar o doente para a realização das atividades de vida diária e reinserção social. Vários autores afirmam que a reabilitação funcional irá permitir ao doente voltar a exercer as suas funções na sociedade (Silva et al., 2010; Spósito, Santos, Oba & Crocker, 2008).
Conclusões
A análise da problemática da incapacidade temporária associada à realização de uma cirugia (ATA e ATJ) permitiu o desenvolvimento e implementação de ações autónomas e a interação com os doentes no sentido de desenvolver uma sistematização de intervenções que permitisse potenciar as suas capacidades funcionais, auxiliasse na recuperação da intervenção cirúrgica, de forma a obter um bom nível desempenho funcional no momento da alta hospitalar.
Os resultados obtidos através da avaliação do programa de intervenção, traduzem uma clara recuperação da Independência Funcional pós cirurgia, verificando-se uma melhoria substancial do Índice de Barthel nas sucessivas avaliações efetuadas, demonstrando a efetividade das intervenções terapêuticas realizadas.
Deste modo, e de acordo com os resultados obtidos, poder-se-á afirmar que a implementação do projeto”Habilitar” tem permitido capacitar os doentes submetidos a programa de reabilitação motora pós cirurgia (ATA e ATJ), o mais precocemente possível, com tradução inequívoca nos ganhos adquiridos em independência funcional. A maximização do seu potencial funcional e de independência facilita a sua reintegração na sociedade.
Os resultados obtidos reafirmam a extrema relevância da enfermagem de reabilitação dentro das equipas multidisciplinares face a objetivos comuns.
Considera-se, face ao exposto que o projeto “Habilitar” converge na mesma linha condutora de intervenção, de outros trabalhos e investigações desenvolvidas em contextos similares.
Entendemos que a introdução da aplicação de outras escalas, como a Escala de Tinetti, para avaliação do equilíbrio, “Time Up and Go Test”, e Avaliação da Qualide de Vida, poderíam enriquecer futuras investigações neste âmbito. Também o tratamento dos dados colhidos pela aplicação das Escalas de Avaliação da Força Muscular e Amplitude Articular que já é realizada, poderia proporcionar a obtenção de resultados que reforçem a pertinência da implementação de programas de enfermagem de reabilitação pré e pós- operatórios na ATA e ATJ.
As principais limitações do presente estudo estão relacionadas com o facto de apesar desta ser uma área de ação privilegiada para a atuação dos Enfermeiros de Reabilitação, os estudos efetuados por Enfermeiros em Portugal, acerca desta temática são ainda diminutos, o que dificultou uma discussão mais rica.
Consideramos também que o Índice de Barthel utilizado para avaliar o nível de independencia funcional desta amostra se revelou vago, não possibilitando, por conseguinte, uma avaliação exaustiva de cada domínio do autocuidado, no qual os scores obtidos não refletem de forma pormenorizada a condição do doente.
Em investigações futuras, sugeríamos uma monitorização da recuperação funcional no domicílio, conseguida através de um trabalho em articulação com os cuidados de saúde primários, o que permitiria objetivar com mais rigor a relação existente entre o programa de Reabilitação e os repetivos ganhos funcionais.
Consideramos igualmente, que o desenvolvimento de novas investigações referentes à intervenção dos Enfermeiros de Reabilitação no período que antecede a realização de ATA e ATJ poderia dar importantes contributos para a melhoria das intervenções realizadas durante o internamento.