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Millenium - Journal of Education, Technologies, and Health

Print version ISSN 0873-3015On-line version ISSN 1647-662X

Mill  no.23 Viseu Apr. 2024  Epub Apr 30, 2024

https://doi.org/10.29352/mill0223.32085 

Editorial

Bioética na genética: entre a ciência e a arte

1 Centro de Genética Médica Dr. Jacinto Magalhães, Centro Hospitalar Universitário de Santo António, Porto, Portugal

2 Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar, Universidade do Porto, Porto, Portugal


A Genética Médica é uma especialidade médica transversal e multidisciplinar cuja atividade engloba, numa perspetiva geral e simplista, o diagnóstico de doenças genéticas raras e o aconselhamento genético de patologias hereditárias. A informação genética é, mais do que informação médica, informação de saúde e tem implicações não só para o próprio, mas também para os familiares. Embora esta especialidade médica trate de riscos e probabilidades com base em ciências exatas e metodologias laboratoriais rigorosas, também continua a desafiar os profissionais a pensar eticamente em diferentes situações quotidianas. Mesmo nos casos em que a lei é específica e bastante rigorosa sobre como lidar com o problema, pode ser desafiador saber qual é a conduta mais ética neste mundo de raridades. Seguidamente, serão dados alguns exemplos para nos fazer pensar sobre como a genética pode ser uma arte científica com certezas e dúvidas.

A Informação Genética

Vários estudos têm demonstrado que a população portuguesa tem um elevado nível de iliteracia em saúde e prefere delegar as decisões de saúde nos profissionais de saúde. Ainda assim, todos os dias os profissionais de saúde pedem o consentimento dos doentes para procedimentos ou tratamentos. Em termos mais específicos, a informação genética é difícil de compreender, mesmo por pessoas diferenciadas, e é fácil prever como é difícil para a população em geral compreender esta informação abstrata e complexa. Quando se dá o consentimento informado, o princípio da autonomia está implicado e certos pressupostos podem, involuntariamente, não ser cumpridos. Embora a informação seja normalmente dada de forma adequada e o doente decida livremente e sem coação, não temos a certeza absoluta de que o doente compreenda a informação, tendo em conta o que foi dito anteriormente. Além disso, o processamento da informação genética, das doenças e dos riscos leva tempo, e as consultas médicas são cada vez mais curtas e rápidas, o que dificulta ainda mais a explicação, a escuta, o diálogo e a compreensão da informação pessoal, médica ou genética. Então, estaremos a ter a conduta mais ética e virtuosa com os nossos doentes?

Divulgação de Informação Genética

A lei portuguesa é bastante rigorosa quanto ao facto de a informação genética ser informação médica (i.e., pode ser avaliada por todos os profissionais de saúde que lidam com o doente que, por si só, apresenta alguma manifestação de doença), ou informação de saúde (i.e., só deve ser avaliada por um Médico Geneticista, uma vez que a pessoa é saudável e apresenta risco de desenvolver ou transmitir uma doença genética).A informação de saúde não deve ser partilhada com empregadores ou seguros e não deve estar acessível nos registos hospitalares. No entanto, a maioria dos profissionais de saúde não tem conhecimento desta lei e, infelizmente, vemos este tipo de informação expressa nos registos hospitalares quase todos os dias. Talvez o aumento da educação genética dos profissionais de saúde possa ajudar a minimizar estas não-conformidades. Do ponto de vista ético, tudo o que foi referido anteriormente faz sentido: estamos a proteger a autonomia e a confidencialidade do indivíduo e a proporcionar o maior benefício possível.

No entanto, surgem questões éticas quando falamos da não divulgação de informação genética (relacionada com doenças graves acionáveis) aos membros da família. Isto acontece quando um doente tem (o risco de ter) uma doença genética, para a qual temos opções de vigilância ou tratamento (acionáveis), e se recusa a partilhar essa informação com os seus familiares que também podem estar em risco.

Se, por um lado, queremos proteger a confidencialidade e a autonomia individual, por outro lado, devemos também considerar a beneficência e a não maleficência do familiar em risco de ter essa doença. Embora a lei proteja o direito à confidencialidade, e esta seja também uma perspetiva da ética normativa, uma perspetiva ética mais utilitarista faria o melhor para o maior número de pessoas e contactaria a família. Talvez na perspetiva da ética das virtudes, um bom diálogo e uma decisão partilhada pudessem ajudar a esclarecer este dilema.

Diagnóstico Pré-Natal e Pré-Implantação

O início da vida é um tema de dilemas éticos e de controvérsia desde os primórdios da bioética, e pode não ter uma resposta correta ou definitiva mesmo nos dias de hoje.

Isso dar-nos-ia várias páginas de diferentes perspetivas, pelo que faremos apenas um breve comentário sobre questões de ética genética.

De acordo com o Genereviews®, e relativamente a várias doenças, "podem existir diferenças de perspetiva entre os profissionais médicos e no seio das famílias relativamente à utilização de testes pré-natais (quando o teste está a ser considerado para efeitos de interrupção da gravidez ou para diagnóstico precoce). Embora a maioria dos centros considere a utilização de testes pré-natais como uma decisão pessoal, a discussão destas questões pode ser útil."

As questões relacionadas com o aborto são classicamente discutidas, mas as questões relacionadas com a interrupção da gravidez devido a uma doença ou malformação genética (de acordo com a gravidade), ou se esta doença seria adequada para a seleção de embriões no diagnóstico genético pré-implantação, ainda suscitam algumas opiniões divergentes. Embora esta tecnologia tenha começado para ajudar os casais a terem um bebé saudável, sem uma doença genética específica, rara e grave, pode dar-nos o "poder" de escolher qual o embrião, ou seja, qual a vida que vale a pena viver.

Esta capacidade de "brincar a Deus", escolhendo quais os embriões que podem ser implantados ou excluídos, pode levar-nos, in extremis, ao descomprometimento moral, arriscando o chamado efeito da rampa deslizante: em vez de selecionar embriões pela doença grave, a tecnologia permite-nos selecionar embriões pelo sexo ou, indo mais longe, pela cor dos olhos.

Estas questões éticas preocupam diferentes profissionais de saúde e cientistas, mas os médicos geneticistas têm o dever moral de estar conscientes dos princípios éticos, bem como das possíveis implicações da sua opinião e conduta.

Muitas outras situações clínicas relacionadas com a genética poderiam ser discutidas eticamente. Vários dilemas, quer por força das diretivas existentes (legais ou não), quer por força da experiência acumulada, são relativamente fáceis de resolver na prática clínica.

Já outros dilemas estão a tornar-se cada vez mais desafiantes com o crescimento exponencial da tecnologia e da informação genética, que está cada vez mais fácil e amplamente disponível.

O aconselhamento genético, que deve ser informativo e não diretivo, exige dedicação e compreensão do clínico, pois cada doente é único na assimilação da informação e na tomada de decisões. As regras universais da Genética tornam-se particulares e pessoais quando as aplicamos a um sujeito, um ser humano único e irrepetível, portador de dignidade individual, inserido numa sociedade de valores e ideais morais. Com uma conduta ética, a Genética torna-se uma arte científica, exigindo justiça e equidade, não maleficência, respeito pela pessoa (como indivíduo e como parte de uma família e de uma sociedade), e beneficência.

Recebido: 13 de Julho de 2023; Aceito: 13 de Julho de 2023

Autor Correspondente Ana Rita Soares Largo da Maternidade Júlio Dinis, 20 4050-101 - Porto - Portugal anaritamsoares@gmail.com

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