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Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher
Print version ISSN 0874-6885
Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher no.39 Lisboa June 2018
ESTUDOS
A Multiplicidade do Eu: Construção de identidade feminina em Maria Isabel Barreno[**]
The Multiplicity of Self - Construction of feminine identity in Maria Isabel Barreno
Deolinda M. Adão*
*University of California-Berkeley, Institute of European Studies, 94720 - Berkeley, California - USA, deoadao@berkeley.edu
RESUMO
Este trabalho visa identificar processos de construção de identidade feminina desenvolvidos na obra de Maria Isabel Barreno. As nossas leituras serão orientadas por teorias de enunciação desenvolvidas em primeira instância por J. L. Austin e posteriormente debatidas por John Searle e Judith Butler. Neste processo abordaremos espaços tradicionalmente relacionados com o feminino e consideraremos o corpo da mulher como o espaço sobre o qual se trava a luta por autodefinição.
Palavras-chave: Construção de identidade, autodeterminação, corpo, teoria de enunciação.
ABSTRACT
This article aims to identify processes of feminine identity in the work of Maria Isabel Barreno. Our reading will be guided by the theoretical work of J.L. Austin, further developed by John Searle and Judith Butler. Our work will address traditional feminine spaces and will consider the female body as the occupied space over which self-identity must be constructed.
Keywords: Identity construction, agency, body, speech-act theory.
A Stereotype is a box, usually too small, that a girl gets jammed into.
An archetype is a pedestal, usually too high,
that she gets lifted up onto. (Guerrilla Girls, 2003, p. 7)
Um dos interesses que têm orientado a nossa investigação relaciona-se com os processos utilizados por autoras portuguesas na construção das suas personagens femininas. No texto Cartografia do Feminino, que apresentámos no IX Congresso da Associação Internacional de Lusitanistas realizado na Faculdade de Letras da Universidade da Madeira, em agosto de 2008, e que tinha a intenção de delinear um possível mapeamento do espaço designado ao feminino na literatura portuguesa, abordámos noções de identidade feminina desenvolvida em alguns textos emblemáticos de autoria feminina, e tentámos analisar a forma como os parâmetros de feminilidade estabelecidos nesses textos entravam no imaginário literário e cultural português. Basicamente o que se pretendia desenvolver nesse trabalho era uma possível relação entre a identidade imposta e a identidade adotada; ou seja, o que se pretendia observar era a forma como na literatura portuguesa as personagens femininas absorvem os parâmetros de identidade que lhes são impostos pela sociedade, os interiorizam e os utilizam nos respetivos processos de autoconstrução e, finalmente, como os propagam. Neste trabalho, pretendemos alargar as noções desenvolvidas nesse artigo aplicando-as à obra literária de Maria Isabel Barreno.
Qualquer investigação sobre a obra desta autora dificilmente deixará de se centrar no texto emblemático da literatura feminina/feminista em Portugal - Novas Cartas Portuguesas - publicado em 1972, que resultou num processo legal contra as suas autoras, mas também numa manifestação internacional de apoio às mesmas, o qual trouxe até Portugal jornalistas e feministas. Assim se expôs à Europa e ao mundo ocidental a situação da mulher portuguesa dentro de uma sociedade autoritária, machista e moralista que continuava a considerá-la como súbdita. Aliás, essa foi também uma das grandes vitórias desse texto e das suas autoras. Há alguns anos, uma das alunas matriculadas numa aula de Português 1A que tenho vindo a lecionar há vários anos no Berkeley City College, veio falar comigo após a aula e perguntou-me se eu tinha conhecimento do caso das “Três Marias” e se conhecia as autoras. Respondi-lhe que tinha conhecimento da obra e que efetivamente conhecia duas das três autoras, mas não consegui esconder a minha curiosidade e perguntei-lhe sobre o seu interesse por esse texto em particular. Disse-me que era jornalista, que na sua juventude tinha viajado a Portugal para fazer uma reportagem do processo das “três Marias” e que tinha entrevistado uma delas - Maria Isabel Barreno. Infelizmente essa entrevista acabou por não ser publicada, mas o que tinha ficado da experiência para esta jornalista americana, que se identificava como “feminista de esquerda”, era a surpresa que tinha sentido quando conheceu as autoras, nomeadamente Maria Isabel Barreno, pois nada nelas correspondia à imagem formada que ela tinha em relação a ativistas e muito menos a alguém que tivesse escrito um manifesto feminista. Para ela, uma jovem feminista, três mulheres mães de família de classe média não poderiam ser as autoras de um texto tão radical como as Novas Cartas Portuguesas e “serem acusadas pelo Estado português de terem escrito um livro pornográfico e atentatório da moral pública e bons costumes”. [1] Lamentavelmente, da sua entrevista a Maria Isabel Barreno, nada mais restava que estas escassas memórias, pois teria sido muitíssimo interessante ter acesso aos apontamentos que relatavam as impressões das experiências vividas em Portugal por esta jornalista, para não falar das declarações feitas por Maria Isabel Barreno durante a entrevista que lhe concedeu.
Embora antes da publicação de Novas Cartas Portuguesas já tivesse publicado quatro textos - nomeadamente Adaptação do Trabalhador de Origem Rural ao Meio Industrial Urbano, em 1966; A Condição da Mulher Portuguesa, em 1968, em colaboração com vários autores; De Noite as Árvores São Negras, em 1968; e Os Outros Legítimos Superiores, em 1970 -, não restam dúvidas de que o texto que lhe trouxe mais fama, e também mais dissabores, foi Novas Cartas Portuguesas. Foi nele que Isabel Barreno e as suas coautoras concentraram as respetivas narrativas individuais, ultrapassando todas as limitações sociais e políticas, além de, abertamente, se declararem agentes da sua própria emancipação e, por extensão, da emancipação de todas as “Marias” - metáfora suprema de todas as mulheres portuguesas e que já tinha sido desenvolvida por Barreno no texto Os Outros Legítimos Superiores. Em Novas Cartas Portuguesas as autoras recuperam o corpo feminino como espaço de construção de identidade e abalam as estruturas moralistas do poder salazarista, especialmente porque a sua proibição e a subsequente perseguição a que as autoras foram sujeitas não passaram despercebidas no resto da Europa, América Latina e Estados Unidos. A obra chamou também a atenção para a opressão que o Estado português exercia sobre os seus cidadãos em geral, e sobre a mulher em particular. Imediatamente após a sua publicação, Novas Cartas Portuguesas foi alvo de censura e retirado de circulação:
Este livro é constituído por uma série de textos em prosa e verso ligados à história de Mariana, mas em que se preconiza sempre a emancipação da mulher em todos os seus aspetos, através de histórias e reflexões. (…) Algumas das passagens são francamente chocantes por imorais (…) constituindo uma ofensa aos costumes e à moral vigente no País. (…) concluindo: sou do parecer que se proíba a circulação no País do livro em referência, enviando-se o mesmo à Polícia Judiciária para efeitos de instrução do processo-crime. (Citado em Azevedo, 1997, p. 121)[2]
As três autoras no próprio texto do romance previam o que poderia acontecer: “Oh quanta problemática prevejo, manas, existiremos três numa só causa e nem bem lhe sabemos disto a causa de nada e por isso as mãos nos damos e lhes damos” (Barreno, Horta & Costa, 1998, p. 15). Foram detidas pela polícia de costumes e sujeitas a processo criminal, acusadas de ter produzido “uma obra pornográfica” (Azevedo, 1999, p. 143). Mas o objetivo central das autoridades era forçar as autoras a identificar os trechos que cada uma delas tinha produzido. Essa insistência das autoridades supõe que uma das ameaças latentes era a noção de voz coletiva que perpassa o texto, a começar pelo subtítulo - “ou de como Maina Mendes [3] pôs ambas as mãos sobre o corpo [4]e deu um pontapé no cu dos outros legítimos superiores[5]” -, no qual as autoras tecem os títulos de três romances escritos por cada uma delas. Aglutinando-os no subtítulo do texto produzido pelas três, uniam as suas vozes individuais numa só voz coletiva. Esse processo é enfatizado pela multiplicação da voz de Mariana, que em Novas Cartas Portuguesas se transforma num coro feminino que de uma forma ou outra emana da infeliz monja - Mariana, Maria, Ana, Ana Maria, Maina, Mónica, sobrinha de Mariana, mãe de Mariana, irmã de Mariana, Mónica, Joana, filha de uma Maria que escreve à criada de uma Ana, e por aí fora, construindo possibilidades infindáveis de variações do feminino. É, pois, esta polifonia feminina que rompe as restrições de pudor impostas pela Igreja e pelo Estado e declara a chegada de uma nova consciência da condição da mulher em Portugal:
Digo:
Chega
É tempo de se gritar: chega. E formarmos um bloco com os nossos corpos. (Barreno, Horta & Costa,1998, p. 263)
Efetivamente, o tema central de Novas Cartas Portuguesas é a noção do corpo como o espaço de construção do feminino. Contudo, como fica evidente pelo título do romance, em linhas gerais o projeto de Maria Velho da Costa, Maria Teresa Horta e Maria Isabel Barreno[6]baseia-se na apropriação de Cartas Portuguesas, recuperando-as como texto fundacional dos direitos da escrita feminina. Assim, a paixão que, segundo as cartas, foi a força que impeliu Mariana à escrita é também o que as leva à produção deste texto: “já foi dito que não interessa tanto o objeto, apenas pretexto, mas antes a paixão; e eu acrescento que não interessa tanto a paixão, apenas pretexto, mas antes o seu exercício” (Barreno, Horta & Costa, 1998, p. 11). Desta forma, as autoras questionam os parâmetros de feminilidade vigentes e a autoridade patriarcal exercida sobre a mulher durante séculos através de uma multiplicidade de textos dos mais variados géneros literários - cartas, poemas, fragmentos de diários, bilhetes, crónicas, monólogos, relatórios civis e médicos, contos, papéis soltos encontrados em diversos locais, uma tradução, extratos do Código Penal, baladas, cantigas, jogos e até um magnificat, quebrando assim todos os padrões de género, literário bem como as noções de espaço e tempo. De facto, a narrativa, que as próprias autoras têm dificuldade em definir, para além de apresentar uma amálgama de géneros literários não obedece a nenhuma linearidade temporal ou espacial. Assim, encontramos textos produzidos no espaço de vários séculos, que se intercalam de forma completamente anacrónica. Da mesma forma, os espaços geográficos e linguísticos cruzam-se e intercalam-se. Simbolicamente, o corpo feminino, que na sociedade patriarcal portuguesa tinha sido controlado e enclausurado, é redefinido como o espaço de libertação da mulher, e o prazer físico e a paixão vão converter-se no pretexto para que a mulher se descubra a si mesma e se autodefina, libertando-se dos paradigmas de identidade estabelecidos pelas autoridades religiosas e governamentais. Enfim, as três Marias recuperam a voz de Mariana e, num pseudo-auto-parto, concedem-lhe a agência criadora de procriar gerações de mulheres que irão declarar a sua independência e emancipação através dos elementos que lhes tinham sido legados por Mariana - o corpo e a paixão, como fica evidenciado no texto “A Paz”: “Compraz-se Mariana com o seu corpo, ensinada de si, esquecida dos motivos e lamentos que a levam às cartas e a inventam (…) ei-la que se afunda em seu exercício. Exercício do corpo-paixão, exercício da paixão na sua causa” (Barreno, Horta & Costa, 1998, p. 45). Não obstante, em diversos momentos as autoras refletem sobre o impacto que a autoridade patriarcal continua a exercer sobre a mulher e a sua conceção própria: “Assim se firma, se mata Mariana, assim se submete, se rende se duvida. Assim se silencia mulher-Mariana-Maria. Coutada nela, ela própria caça, arvoredo baixo, arma onde se afirma - firma” (Barreno, Horta & Costa, 1998, p. 119). Não podemos deixar de concluir que, tal como Mariana, também as três Marias foram silenciadas e enclausuradas, neste caso pela censura que agia com o poder que lhe era conferido pelos órgãos do poder patriarcal que as autoras denunciavam e tentavam subverter. No entanto, as Novas Cartas Portuguesas anteciparam o 25 de Abril para a mulher portuguesa, tanto do ponto de vista social como do literário. Outras obras, como Mátria de Natália Correia, abalaram a subserviência feminina postulada pelo Estado Novo, mas o ato revolucionário, com dimensão de golpe de Estado, que saiu à rua e mobilizou a população foi o caso das três Marias e de Novas Cartas Portuguesas. Este texto revolucionário subverte os dogmas e questiona os diversos aspetos da criação literária, provocando uma rutura tanto ao nível semântico como ao estilístico que possibilita a reestruturação do feminino no imaginário literário português. Como tem sido sobejamente desenvolvido, desde Foucault a Butler, construções de identidade e relações sociais são sempre ancoradas em relações de poder entre indivíduos, sujeitos a imposições de estruturas sociais e de ordem política e religiosa. Nestes processos existem sempre dois campos de batalha, o corpo e a identidade individual e coletiva, frequentemente representada em obras literárias pelo nome ou género em questão.
É precisamente nestes dois campos que se insere a escrita de Maria Isabel Barreno, pois de uma forma ou outra, estes são os temas consistentemente presentes em toda a sua obra literária. No texto Undoing Gender, Judith Butler defende:
The body implies mortality, vulnerability, agency: the skin and the flesh expose us to the gaze of others but also to touch and to violence. The body can be the agency and instrument of all these as well, or the site where “doing” and “being done to” become equivocal. Although we struggle for rights over our own bodies, the very bodies for which we struggle are not quite ever only our own. (Butler, 2004, p. 21)
Embora o corpo seja o espaço sobre o qual se escrevem as Novas Cartas Portuguesas, a noção desenvolvida por Butler pode ser claramente evidenciada no conto “A Mãe-Loba”, que faz parte de O Círculo Virtuoso, publicado em 1996. Neste conto que liga a mulher ancestral “Lupina” e a moderna “Leonor”, relacionadas entre si pelo fruto do seu corpo, pois o filho de ambas é Artur Emílio, o tema da autofagia é constante e aparece relacionado com espaços de isolamento ou exclusão:
Como acontece em todos os casos de isolamento de indivíduos ou sociedades, privado do curso normal de trocas de alimento e protecção com outros seres humanos, desenvolviam essas crianças tendências grandemente autofágicas. (Barreno, 1996, p. 83)
Neste conto, Lupina é a essência do feminino que Leonor procura, mãe de todas as gerações vindouras, mas consumida pela sua condição de progenitora: “Voltou em fim Lupina… Atiraram-se a ela, com abraços e beijos, e lentamente começaram a devorar-lhe os braços e as pernas” (Barreno, 1996, p. 81). Aliás, uma das noções que encontramos com frequência na obra de Isabel Barreno é a forma como as instituições sociais e de poder transformam a maternidade como ponto central de definição da
feminilidade e como a idealização da mesma se converte num elemento de subjugação e escravização da mulher. Ou seja, a maternidade transforma-se na essência da mulher, mas, como defende Deirdre Lashgari em To Speak the Unspeakable: Implications of Gender, “Race”, Class, and Culture, ao não conseguir contrapor a ideologia da “mãe perfeita”, muitas mulheres desenvolvem sentimentos de ressentimento contra os seus próprios filhos, ressentimento este que ao não ser reconhecido se perpetua passando de geração em geração (Lashgari, 1995). Não obstante, Isabel Barreno pretende desenvolver uma relação evolucionista entre Lupina, a mulher ancestral, e Leonor, a mulher moderna:
Leonor soube que Lupina não era uma forma exclusiva do seu inconsciente, como talvez fizesse crer o facto de o nome de ambas estar relacionado com animais carnívoros, o de Lupina sugerindo alcateias e maiores vulnerabilidades, o de Leonor supondo já a conquistada sobranceira da leonina caça solitária, da autossuficiência (Barreno, 1996, p. 90).
Com efeito, propõe-se a vinda de um momento em que a própria mulher ultrapassa a sua subjetividade, inserindo-se no espaço social como agente de si mesma.
Para Maria Isabel Barreto, a ferramenta a ser utilizada pela mulher para passar da subjetividade para a objetividade é a escrita, ou seja, a capacidade de autorrepresentação da mulher através da escrita, que surge sempre como um ato de transgressão. Aliás, o conceito de escrita e a vertente criadora da mesma são outra das preocupações constantes em Maria Isabel Barreno:
As palavras e as frases querem sempre dizer alguma coisa, senão não seria possível dizê-las, e que era esse o grande segredo das palavras, o de permitir às pessoas nomear aquilo que ainda não conheciam e cuja existência tinham que desvendar depois. (Barreno, 1996, p. 84)
Em realidade, a utilização da escrita em processos de autoconstrução tem sido o tema de debate entre filósofos e teóricos por vários séculos. Se, por um lado, Lashgari argumenta que ter de aprender a utilizar a língua ou a forma do opressor para construir a sua emancipação pode ser problematico para qualquer sujeito (Lashgari, 1995), por outro, teóricos e filósofos, desde J. L. Austin a Judith Butler, passando por John Searle, defendem que a escrita, herdeira da oralidade, tem a capacidade de transpor obstáculos e construir, ou reconstruir, identidades individuais e coletivas.
Efetivamente, as teorias formuladas por Austin sobre o elemento significativo da linguagem remontam às noções aristotélicas sobre a função retórica daquela. Em De Interpretatione, Aristóteles considera que cada frase é significante, no entanto, acrescenta, nem todas as frases são declarativas, apenas aquelas que forem verdadeiras ou falsas. No trabalho Towards a History of Speech Act Theory, Barry Smith (1990) sugere que no pensamento ocidental as raízes ideológicas e metodológicas da teoria de enunciação remetem para os filósofos pré-socráticos e para o Antigo Testamento, [7]tendo-se mantido como uma noção periférica à margem da tradição platónica-cristã, científica e intelectualmente dominante. O debate central da teoria de enunciação consiste em saber se a linguagem deve ser essencialmente considerada um sistema de estruturas e significados, ou um conjunto de atos e práticas. Este debate é paralelo aos debates da antiguidade ocidental entre a lógica e a retórica, a transcendência e a iminência, a descrição e a persuasão. Para os propósitos dos estudos literários, a teoria de enunciação desloca a concentração da abordagem para o nível do texto, que é concebido como um elemento fixo com determinadas características intrínsecas, e o modo como cada um de nós se relaciona com esse mesmo texto, como leitores, escritores, editores, etc. Cada texto literário representa um “Speech Act”, uma enunciação inserida numa continuidade linguística, que está sujeita não só a uma possível intenção do autor, mas também à interpretação do leitor, que pode ou não ser influenciada ou afetada pelas diretivas de leitura inseridas no texto pelo próprio autor, pelas expectativas do leitor, ou por outros fatores que de uma forma ou outra exercem influência sobre um texto - tal como o estilo, a finalidade ou função e a apresentação, seja esta impressa, oral ou distribuída através de qualquer outro processo ou meio tecnológico. Através da teoria de enunciação, a crítica literária abarca critérios que se reportam a processos de crítica social e cultural. Para Austin, a especificidade da concentração é a separação entre o que denomina “constative”, que corresponde à declaração de alguma coisa, e o “performative”, que significa o ato de fazer alguma coisa. Esta distinção tornou-se problemática para Austin, pois, em How to Do Things with Words (1962), afirma que as enunciações declarativas também possuem aspetos performativos, propondo que uma enunciação em si própria, ou seja, extraída do seu contexto social, possa ser considerada como uma locução. Quando utilizada num contexto social ou literário, esta locução denomina-se “illocution”, o que se pretende dizer, ou “perlocution”, o efeito causado pela locução no recetor.
Dentro desta perspetiva, enunciar é criar. Contudo, tal como a enunciação está sujeita à interpretação do seu recetor, o que se cria através da enunciação está sujeito ao mesmo tipo de interpretação subjetiva e às limitações inerentes à capacidade de representação do sistema linguístico.
As contribuições de John Searle para a teoria de enunciação desenvolvida por Austin alargam a discussão sobre o efeito criador de ilocuções e desenvolvem a relação entre a teoria de enunciação e o texto literário. Em primeira instância, Searle consolida a noção de que, seja em que idioma for, cada palavra tem um peso simbólico do qual não é possível despojá-la: “falar uma língua consiste em realizar atos elocutivos de acordo com regras, e não é possível separar essas elocuções dos compromissos que formam partes essenciais dos mesmos” (Searle, 1969, p. 198). Consolidada a componente simbólica da linguagem, em Expression and Meaning - Studies in the Theory of Speech Acts, Searle transporta o debate para o texto literário e desenvolve o argumento de que as representações linguísticas e narrativas presentes em cada texto literário (metáforas, discurso indireto, etc.) devem ser tomadas em consideração, já que, sendo elocuções, se prendem com a linguagem e a intencionalidade, consciente ou inconsciente, do autor em questão:
The identifying criterion for whether or not a text is a work of fiction must of necessity lie in the illocutionary intentions of the author. There is no textual property, syntactical or semantic, that will identify a text as a work of fiction. What makes it a work of fiction is, so to speak, the illocutionary stance that the author takes toward it, and that stance is a matter of the complex illocutionary intentions that the author has when he writes or otherwise composes it. (Searle, 1969, pp. 65-66).
As reflexões de Searle, que contrapõem textos de literatura ficcional a textos não ficcionais, identificam vários aspetos, com particular relevância para a nossa abordagem de textos literários pois estabelecem a relação entre o ato elocutório e o texto literário. Um dos argumentos de Searle refere-se ao elemento de simulação ou fingimento, concluindo que, em qualquer texto de ficção, o autor finge efetuar atos elocutórios que na realidade não efetua. Embora observe que frequentemente os textos de ficção incluem elementos factuais (isto é, não ficcionais) e que, inversamente, textos considerados não ficcionais introduzem noções que, radicando na perspetiva do seu autor, podem ter elementos considerados ficcionais, para Searle, o texto de ficção é possível porque subverte normas linguísticas e semânticas que estabelecem uma correspondência entre o vocábulo e a realidade. A ficção estabelece uma relação entre o valor literal e o valor simbólico da linguagem:
What makes fiction possible is a set of extralinguistic, nonsemantic conventions that bread the connections established by the vertical rules. They suspend the normal requirements established by these rules. Such horizontal conventions are not meaning rules; they are not part of the speaker's semantic competence. Accordingly, they do not alter or change the meaning of any of the words or other elements of the language. What they do rather is enable the speaker to use words with their literal meanings without undertaking the commitments that are normally required by those meanings. (Searle, 1969, pp. 66-67).
Em Gender Trouble Judith Butler entra em diálogo com Searle no que se refere à vertente criativa da linguagem: “Language gains the power to create the socially ‘real' through the locutionary acts of speaking subjects” (Butler, 1990, p. 146). Butler parte dessa plataforma para desenvolver noções
de subjetividade a nível da linguagem, em virtude das limitações inerentes a qualquer sistema representativo, do agente enunciador e principalmente no que se refere ao objeto da enunciação. Para Butler, a linguagem é uma estrutura desenvolvida por agentes hegemónicos, o que afeta a sua capaci-dade de expressar representações alternativas:
Discourse becomes oppressive when it requires that the speaking subject, in order to speak, participate in the very terms of that oppression - that is, take for granted the speaking subject's own impossibility or unintelligibility. (Butler, 1990, p. 147)
Para se apropriarem da linguagem e desenvolverem a sua própria voz, os elementos marginalizados da sociedade, como as mulheres, os homossexuais ou os membros de minorias étnicas, são forçados a participar no processo de construção de identidade de forma performativa, pois só assim se podem enquadrar dentro dos parâmetros de representação possíveis para o seu género, tendência sexual ou etnia. No que respeita a identidade de género, Butler defende que, além de ser uma noção sociologicamente construída, se trata de um conjunto de sinais e máscaras que são representados numa espécie de encenação sociocultural e que não assumem necessariamente uma característica identitária. É ao nível do desenvolvimento das máscaras de género que, segundo Butler, se manifestam as pressões exercidas pelas estruturas de poder que pretendem determinar a construção do feminino e do masculino. Sendo o corpo o espaço onde, em princípio, se manifesta a diferenciação de género, é sobre este que se evidenciam muitas das conceções socioculturalmente construídas e se delineiam os parâmetros de identidade concebidos ou imaginados pelos diversos agentes de poder (Butler, 1990).[8]
Em conclusão, a nossa leitura de obra de Maria Isabel Barreno é guiada por várias teorias que dialogam entre si e com os textos literários em questão. O corpus crítico desenvolvido por J. L. Austin, John Searle e Judith Butler, sobre o qual se fundamenta a nossa posição relativamente ao impacto de textos literários no processo de construção de identidade cultural, surge como um apoio teórico das práticas de escrita desenvolvidas por Barreno. Para nós, tal como para Austin, Searle e Butler, o texto literário é um dos elementos que contribuem para a construção do imaginário de uma sociedade e da identidade dos indivíduos nela inseridos. O desenvolvimento e inscrição de parâmetros de identidade socioculturalmente construídos no corpus literário de uma sociedade tem correlação direta com a sua inscrição, como diria Butler, sobre os corpos dos homens e mulheres dessa sociedade. Aliás, se ponderarmos o impacto de textos como a Bíblia e o Alcorão sobre a construção da identidade humana, não podemos deixar de reconhecer a importância da literatura e as suas consequências na formulação das identidades. Dentro desta linha de pensamento, podemos facilmente concluir que, através da sua obra literária, Maria Isabel Barreno participou ativamente não só no processo de emancipação feminina em Portugal durante as últimas quatro décadas do século XX até à sua morte, em 2016, mas também que, em realidade, a sua produção literária é um elemento fundamental da (re) construção da identidade feminina da mulher portuguesa do século XXI. Tal como Lupina e Leonor, através da sua escrita, Maria Isabel Barreno efetivamente participa na procriação de todas as gerações de mulheres vindouras.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Azevedo, C. (1997). Mutiladas e proibidas: Para a história da censura literária em Portugal nos tempos do Estado Novo. Lisboa: Caminho. [ Links ]
Azevedo, C. (1999). A censura de Salazar e Marcelo Caetano. Lisboa: Caminho. [ Links ]
Barreno, M. I. (1996). O círculo virtuoso. Lisboa: Caminho. [ Links ]
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Lashgari, D. (1995). To speak the unspeakable: Implications of gender, “race”, class, and culture. In D. Lashgari (Ed.). Violence, silence, and anger: Women's writing as transgression (1-21). Charlottesville, VA: The University of Virginia Press.
Searle, J. R. (1969). Speech acts: An essay in the philosophy of language. New York: Cambridge University Press. [ Links ]
Smith, B. (1990). Towards a history of speech act theory. In A. Burkhardt (Ed.), Speech acts, meanings and intentions: Critical approaches to the philosophy of John R. Searle (pp. 29-61). Berlin/New York: de Gruyter. Disponível em: http://ontology.buffalo.edu/smith//articles/speechact.html [ Links ]
Recepção: 29/03/2018
Aceite para publicação: 02/05/2018
[**]Algumas das propostas desenvolvidos neste trabalho foram em primeira instância apresentadas no texto: Adão, D. (2013), As herdeiras do segredo: As personagens femininas na ficção de Inês Pedrosa. Lisboa: Texto.
[1] Consultado em: https://capazes.pt/editorial/o-processo-das-tres-marias-historia-de-um-julgamento-por-felipa-mourato/view-all/
[2] Parecer homologado a 26 de maio de 1972 pela Direção-Geral de Informação.
[3] Maina Mendes: título de um romance de Maria Velho da Costa, publicado em 1969.
[4] Ambas as Mãos Sobre o Corpo: título de um romance de Maria Teresa Horta, publicado em 1970.
[5] Os Outros Legítimos Superiores: título de um romance de Maria Isabel Barreno, publicado em 1970.
[6] Subsequentemente, as autoras passaram a ser conhecidas como as “três Marias”.
[7] O Génesis, primeiro livro do Antigo Testamento, claramente estabelece o poder criador da palavra, pois é através da palavra divina que o mundo, assim como tudo quanto nele existe, é criado: “Deus disse: ‘Faça-se luz.' E a luz foi feita. (…) Deus chamou dia à luz e às trevas noite. (…) Deus disse: ‘Haja um firmamento entre as águas para as manter separadas umas das outras.' (…) Deus chamou céu ao firmamento. (…) Deus disse: ‘Reúnam-se as águas que estão debaixo dos céus num único lugar, a fim de aparecer a terra seca.' E assim aconteceu. (…) Deus disse: ‘Que a terra produza verdura, erva com semente, segundo a sua espécie, e árvores de fruto, segundo as suas espécies, com a respectiva semente.' (…) Deus disse: ‘Haja luzeiros no firmamento dos céus para diferenciarem o dia da noite e servirem de sinais determinando as estações, os dias, e os anos; servirão também de luzeiros no firmamento dos céus para iluminarem a terra.' (…) Deus disse: ‘Que as águas sejam povoadas de inúmeros seres vivos, e que na terra voem aves, sob o firmamento dos céus.' (…) Deus disse: ‘Que a terra produza seres vivos, segundo as suas espécies, animais domésticos, répteis e animais ferozes, segundo as suas espécies.' (…) Deus, a seguir disse: ‘Façamos o homem à Nossa imagem, à Nossa semelhança'”. Genesis 1, 3-26.
[8] “Always already a cultural sign, the body sets limits to the imaginary meaning that it occasions but is never free of an imaginary construction. The fantasized body can never be understood in relation to the body as real; it can only be understood in relation to another culturally instituted fantasy, one which claims the place of the ‘literal' and the ‘real'” (Butler, 1990, p. 90).