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Relações Internacionais (R:I)
Print version ISSN 1645-9199
Relações Internacionais no.26 Lisboa June 2010
Adriano Moreira: entre o luso-tropicalismo e a autonomia
Pedro Martins
Mestrando em História do Século XX no Departamento de História da FCSH-UNL.
MOREIRA, ADRIANO
A Espuma do Tempo. Memórias do Tempo de Vésperas.
Lisboa, Almedina, 2008, 467 páginas
A Espuma do Tempo. Memórias do Tempo de Vésperas é um relato memorialístico assinado por Adriano Moreira, uma das figuras marcantes na história portuguesa da segunda metade do século XX. Proveniente da área do direito, onde terminou a sua licenciatura em 1944, Adriano Moreira cedo voltou a sua carreira académica e profissional para a vertente do direito colonial. Da sua carreira política destaca-se, obviamente, o período em que tomou a pasta do Ultramar (Abril de 1961 a Dezembro de 1962) e que ficou marcada por um conjunto de decretos inovadores, particularmente os respeitantes à abolição do regime do indigenato, à política laboral e à descentralização de alguns órgãos administrativos e económicos nas províncias ultramarinas. Porém, a sua carreira ministerial seria de curta duração, por um conjunto de circunstâncias que o autor explica no livro. Até ao final do Estado Novo, não mais voltaria a ocupar um cargo político, continuando a sua carreira académica e desenvolvendo iniciativas culturais de envergadura nacional e europeia. Após o 25 de Abril foi alvo de um processo de saneamento que o levou a abandonar a docência universitária em Portugal e a rumar ao Brasil. Regressado ao País poucos anos depois, a sua vida política estaria ligada ao CDS.
JUVENTUDE E INÍCIO DA CARREIRA PROFISSIONAL
Adriano Moreira não faz uma abordagem propriamente cronológica dos acontecimentos, remetendo frequentemente para factos e conjunturas passados ou futuros em vários momentos da narrativa. As duas primeiras partes da obra são complementares e revelam bastante sobre o contexto sociocultural em que Adriano Moreira cresceu, entre a sua aldeia natal em Trás-os-Montes e o ensino primário e liceal em Lisboa. As descrições que o autor faz da sua aldeia compõem um quadro quase idílico da vida no campo e da sociedade nortenha, apesar da pobreza em que muitas famílias viviam. A propósito disto, o autor não explica claramente como é que conseguiu prosseguir a carreira estudantil se a família possuía poucos meios1, apenas afirmando: «sei hoje o que isso deve ter representado de coragem em vista dos fracos rendimentos» (p. 20). Um elemento essencial que moldou a sua personalidade foi a educação profundamente nacionalista e colonialista herdada do ensino republicano. Adriano Moreira considera que o ensino do Estado Novo estava cheio de lacunas e que este foi um dos factores que levou a que, em 1961, quando explodiu a crise colonial, o país não se reconhecesse na «realidade multicontinental», desconhecesse o que era o Ultramar e que houvesse visões muito distintas sobre o conceito de «Pátria» (pp. 23-24).
Já no contexto da II Guerra Mundial, Adriano Moreira ingressa na Faculdade de Direito de Lisboa, onde teve como docentes Marcello Caetano, Paulo Cunha e Rocha Saraiva, este último considerado pelo autor como o melhor de todos, pela maneira como expunha as aulas de Direito Internacional – podemos encontrar aqui uma das primeiras referências de Adriano Moreira para a formação de um pensamento profundamente atento às relações internacionais2. O autor alude também às suas futuras divergências com Marcello Caetano – no que respeita à visão eminentemente racista do futuro ministro das Colónias e à introdução da assimilação parcial dos indígenas, cujo estatuto Moreira viria a revogar em 1961.
Após a conclusão do curso em 1944, Adriano Moreira estagiou no escritório do seu antigo professor Jaime de Gouveia, que pertencia a um círculo de juristas com conexões ao MUD. Esta ligação à oposição democrática valer-lhe-ia um pedido para organizar a defesa dos militares conjurados que, em 1947, visavam derrubar Salazar. Na sequência deste golpe nunca concretizado, Adriano Moreira apresentou uma queixa-crime contra Santos Costa e foi preso no Aljube durante dois meses. Aqui terminaria qualquer ensaio de o futuro ministro do Ultra-mar se comprometer com a oposição ao regime, apesar da sua insistência de que este processo teve um cariz «estritamente profissional» (p. 112).
A propósito dos seus trabalhos, O Problema Prisional do Ultramar (1954) e Administração da Justiça aos Indígenas (1955), o autor reconhece o conflito que nele já estava presente entre, por um lado, aquilo que aprendera no meio académico e a cultura dominante em Portugal e, por outro, a realidade das colónias. Moreira visitara as colónias aquando da elaboração do Projecto de Reforma do Sistema Prisional do Ultramar, a convite de Sarmento Rodrigues, uma das pessoas mais próximas de Adriano Moreira ao longo dos anos seguintes. O autor refere que esta viagem mudou algumas das suas ideias feitas sobre as colónias, libertando-o em certa medida do «positivismo jurídico do Estado corporativo». Não esconde, porém, a sua admiração pela obra dos portugueses emigrados e o seu sonho de construírem sociedades multirraciais nas colónias. Este discurso ambíguo permanecerá praticamente ao longo de todo o livro, não se decidindo Adriano Moreira sobre qual a solução mais correcta para o problema do Ultramar.
Em 1956, Adriano Moreira era encarregue de defender na Assembleia Geral da ONU a posição portuguesa face à exigência de descolonizar os «non self-governing territories». O autor critica a posição contraditória da ONU e procura demonstrar como a questão era essencialmente política, representando uma intromissão nos assuntos internos de Portugal, enquanto que os Estados Unidos e a URSS eram ilibados de pretensões colonialistas. Face ao eclodir da crise colonial, Adriano Moreira identifica-se como parte de uma «geração de angústia», em muitos aspectos uma «geração traída» pelo incumprimento das promessas do fim da II Guerra Mundial (liberdade, respeito pelos povos, fim dos conflitos), e à qual restava apenas o império colonial como «consolo», este mesmo império que as duas superpotências queriam agora subtrair à nação portuguesa (p. 189). Para fazer face a esta crise, Moreira defendia a necessidade de criar um clima de confiança, de autenticidade, que atraísse as populações para o Ultramar e evitasse os abusos até aí praticados em relação aos autóctones.
O MINISTRO REFORMISTA PERANTE A GUERRA
É neste contexto que Adriano Moreira assume a pasta do Ultramar, realizando desde logo uma viagem a Angola, onde relata as atrocidades cometidas e a mobilização das populações para o receber. Critica a comunicação social portuguesa, que logo o apelidou de «ministro sem medo» e nele depositou grandes esperanças para a resolução da crise. O autor demonstra também a sua reprovação relativamente ao comportamento da ONU na questão da invasão de Goa, considerando que as Nações Unidas foram aqui claramente instrumentalizadas em favor da competição bipolar. Conta também como interveio no sentido de a República Popular da China poder vir a desempenhar um papel na crise entre Portugal e a União Indiana, embora sem sucesso.
A peça legislativa que mais celebrizou o ministro do Ultramar foi indubitavelmente a revogação do Estatuto dos Indígenas (6 de Setembro de 1961), acto que estabelecia formalmente a igualdade política entre todos os portugueses, brancos e negros. Moreira afirma que tomou esta medida com o objectivo de «restabelecer a justiça social [ ], acreditar a autenticidade de procedimentos do Governo português, e chamar a uma cooperação renovada as populações» (pp. 245-246). Moreira promulgou ainda o Código do Trabalho Rural (27 de Abril de 1962), considerado um dos mais avançados da época, bem como o decreto que proibia as culturas obrigatórias, nomeadamente a do algodão. Adriano Moreira queixa-se das dificuldades que a comunidade internacional teve em aceitar a credibilidade destas medidas, devido ao clima de desconfiança criado. O autor não se estende, porém, quanto aos resultados práticos da legislação por ele decretada.
Moreira fala das resistências que houve ao seu projecto de criar os Estudos Gerais Universitários em Angola e Moçambique, nomeadamente por aqueles que viam os estudos superiores na metrópole como uma das provas da unidade dos espaços do império, e pelos que defendiam ferreamente a exclusividade metropolitana do ensino universitário. Além disso, o governador de Angola, general Venâncio Deslandes, tinha um projecto próprio de criar uma Escola Superior Politécnico – este projecto foi obviamente recusado por Adriano Moreira, que revela que Deslandes chegou a pedir a Salazar a criação de um Governo autónomo para Angola. Deslandes, que também era comandante-chefe das tropas na colónia, supostamente teria efectuado negociações com as elites angolanas no sentido de uma possível declaração unilateral de uma independência branca.
Adriano Moreira descreve o ambiente de tensão em que se desenrolou o último Plenário do Conselho Ultramarino (Outubro de 1962), em que se discutiu a revisão da Lei Orgânica do Ultramar. O autor refere que, no jogo de bastidores, já estava em disputa quem sucederia a Salazar. Destaca também o Comentário supostamente redigido por Marcello Caetano que propunha uma solução federalista para o Ultramar. Na sequência deste plenário, Adriano Moreira pediu a demissão, depois de uma conversa com Salazar em que este lhe confessou a impossibilidade de continuar a linha descentralizadora até então praticada, face às «iniciativas aberrantes que ameaçariam multiplicar-se» (p. 281).
O autor considera que o modelo governativo praticado por Salazar tinha um cariz autocrático, uma vez que toda a autoridade provinha do Presidente do Conselho. Moreira insiste na falta de institucionalização do regime, na incapacidade de as suas instituições funcionarem autonomamente, baseando-se apenas na figura de Salazar, apoiado pelas Forças Armadas.
SOBRE O FINAL DO REGIME E A DESCOLONIZAÇÃO
Nas suas reflexões sobre os movimentos de descolonização, o autor assinala como alertou para o perigo do «racismo negro» e do «sovietismo», uma ideologia imperialista que se aproveitava da vitória sobre o regime nazi para exercer o seu domínio na Europa de Leste e para fomentar um vazio de poder no Terceiro Mundo. O fenómeno do Maio de 68 prende também a sua atenção, considerando-o uma mistura de violência com «maoísmo, anarquismo, desespero, utopismo» (p. 312), mas sobretudo pelos seus reflexos na juventude portuguesa, no seu combate contra a guerra colonial e contra o regime. Este fenómeno atingiria o seu auge na crise estudantil de 1969, na qual Adriano Moreira demonstra compreensão pela revolta dos alunos e critica ferozmente a atitude de José Hermano Saraiva, então ministro da Educação. O autor mostra-se crítico em relação àquilo que muitos consideraram a «primavera marcelista», apontando as contradições entre a visão colonial de Marcello Caetano e a sua prática política, refém dos mais diversos interesses.
A propósito do seu processo de saneamento depois do 25 de Abril, Adriano Moreira transcreve a sua resposta ao Instituto Superior Naval de Guerra, onde também leccionara. Este texto é de grande interesse para compreendermos a visão que o ex-ministro de Salazar tem sobre a Revolução dos Cravos e a descolonização. O autor critica duramente o MFA, acusando este movimento de destruir totalmente a instituição militar como poder autónomo e moderador. De forma algo exagerada, considera que o 25 de Abril é, depois da vitória aliada de 1945, o acontecimento mais importante no desenvolvimento da estratégia mundial da URSS, ao deixar um vazio de poder que a União Soviética facilmente ocupou, sem que os Estados Unidos e a comunidade internacional nada fizessem para o impedir. O autor considera que nenhuma revolução do passado abdicou dos interesses do Estado sem negociar contrapartidas, nem repudiou a sua História nacional confundindo-a com o regime abatido o 25 de Abril parece ter sido um caso singular, pois significou a entrega da maior parte do território nacional, sem sequer ter havido um apelo a uma negociação multilateral com a comunidade internacional a arbitrar. Quanto aos portugueses brancos que viviam nas colónias, Moreira considera que eles foram as maiores vítimas deste processo, pois não faziam parte do aparelho de poder do Estado colonial, as suas vidas baseavam-se naquilo que haviam construído em África, e foram obrigados a deixar tudo para trás. Quanto aos novos países africanos, o autor considera que estes não foram realmente fruto de uma vontade nacional, mas apenas de projectos nacionais que colocaram no poder uma minoria nativa. Critica também o saneamento de que foi alvo uma boa parte da mão-de-obra mais qualificada do País após o 25 de Abril, obrigada a sair por razões injustificáveis.
QUE FUTURO PARA O ULTRAMAR?
Podemos dizer que estamos perante o relato de uma das figuras incontornáveis do século XX português, quer se concorde ou não com as suas posições ou com as decisões que tomou ao longo da vida. A obra aborda o período que vai até à integração de Adriano Moreira no CDS, momento que assinala a sua reconciliação com o regime do pós-25 de Abril. É um limite compreensível, dado estas memórias se centrarem essencialmente na sua ascensão e queda da pasta do Ultramar, momento que marca sem dúvida um antes e um depois na vida do autor.
É visível o quanto o passado sociocultural em que Adriano Moreira cresceu influenciou as suas concepções políticas, sociais e religiosas. Ao longo de quase todo o livro é possível notar a formação da sua raiz democrata-cristã e que depois confluiu na sua carreira política num partido como o CDS. Porém, é pena que Adriano Moreira fale pouco das suas concepções luso-tropicalistas, que serviram largamente de base ideológica à legislação que promulgou em 1961-1962. Alude circunstancialmente à figura de Gilberto Freyre, por quem não esconde a sua admiração, porém não explora esta temática tão bem como se esperaria.
Constitui um dos maiores pontos de interesse do livro o relevo que o autor dá a alguns episódios menos conhecidos da história do Estado Novo, como o golpe abortado de Marques Godinho em 1947 ou as iniciativas realizadas no âmbito do cedi e da Sociedade de Geografia de Lisboa. O autor dá-nos uma visão interessante sobre vários fenómenos e conjunturas históricas do século XX, por vezes com uma clareza e um rigor historiográficos.
Contudo, o segmento em que aborda a sua passagem pela pasta do Ultramar deixa bastantes questões em aberto. Em primeiro lugar, Adriano Moreira praticamente não revela que modelo pretendia aplicar às colónias (meramente mais descentralizador, federalista, unitário, ou com vista à independência) e a que prazo queria a sua concretização. Esta lacuna está em grande parte relacionada com a ambiguidade latente nas suas reflexões gerais sobre o Ultramar português, que são escassas, talvez pelo facto de lá ter estado relativamente pouco tempo. De igual modo, não especifica que interesses se sobrepuseram à continuidade do seu projecto de rever a Lei Orgânica do Ultramar. Por outro lado, Adriano Moreira revela-se incapaz de atribuir as maiores responsabilidades pela interrupção da sua política a Salazar, como ele próprio defende, o homem sem o qual o regime cairia. E não se questiona em que medida Salazar alguma vez tenha tido vontade política para mudar o estatuto do Ultramar.
O autor critica ferozmente o processo de descolonização, mas não propõe em concreto uma solução alternativa, perante uma conjuntura de 1974-1975 em que era basicamente impossível negociar – as Forças Armadas estavam contra a continuidade da guerra, o 25 de Abril fora feito primeiramente para acabar com esta. Ainda alude vagamente à possibilidade de se recorrer à comunidade internacional para arbitrar as negociações com os movimentos de libertação. Porém, haveria realmente condições para negociar, tendo em conta uma conjuntura internacional marcada pela détente, numa altura em que se assinavam os Acordos de Helsínquia e se caminhava para uma melhoria nas relações do Ocidente com a URSS? Que interesse real teriam os Estados Unidos em salvaguardar os interesses portugueses em áreas que já estavam na área de influência estratégica da União Soviética?
Por outro lado, a afirmação de que os brancos foram vítimas indefesas da descolonização é questionável, na medida em que muitos tinham consciência dos riscos que corriam em permanecer nos territórios ultramarinos, além de que não estariam assim tão desligados das orientações políticas do regime. É certo que a descolonização nos moldes em que foi feita em nada beneficiou os portugueses que lá estavam, muitos dos quais realmente contribuíram para a construção dos futuros países, mas para quem foi alheio a este processo a crítica é fácil. Por fim, a alusão que Adriano Moreira faz ao repúdio e à destruição dos símbolos do passado nacional é em parte verdadeira, porém, este «passado nacional» a que se refere não seria mais uma construção ideológica do Estado Novo que propriamente um retrato fiel da história de Portugal? É certo que esta foi a única história que lhe foi incutida pela escola e pela sociedade que o rodeava, porém, como o próprio afirma, o Estado Novo falhou em grande medida na sua tarefa de educar o povo português para a realidade do Ultramar. No fundo, talvez seja essa a grande lacuna das memórias de Adriano Moreira: a de responder à pergunta sobre qual era a verdadeira realidade do Ultramar português, e que futuro lhe dar.
NOTAS
1 Saldanha Sanches aponta esta lacuna na sua recensão da obra – SANCHES, José luís Saldanha, Adriano Moreira – A Espuma Do Tempo. Memórias do tempo de Vésperas, disponível em: http://caminhosdamemoria.wordpress.com/2009/01/07/adriano-moreira-a-espuma-do-tempo-memorias-do-tempo-de-vesperas/, consultado em: 26 de Janeiro de 2010.
2 Disciplina cuja introdução em Portugal é, de resto, atribuída a Adriano Moreira. cf. PINTO, José Filipe – Adriano Moreira. Uma Intervenção Humanista. Coimbra: Almedina, 2007.