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Laboreal

On-line version ISSN 1646-5237

Laboreal vol.18 no.2 Porto Dec. 2022  Epub Dec 30, 2022

https://doi.org/10.4000/laboreal.19709 

Pesquisa empírica

Apoio psicológico online, clínicas do trabalho e Ergopsicologia: reflexões a partir de uma experiência de estágio

Apoyo psicológico en línea, clínicas de trabajo y Ergopsicología: reflexiones a partir de una experiencia de prácticas profesionales

Soutien psychologique en ligne, cliniques du travail et ergopsychologie : réflexions d'une expérience de stage

Online psychological support, work clinics and Ergopsychology: reflections from an internship experience

Roberta Belizário Alves1 
http://orcid.org/0000-0002-1206-7427

Thiago Drumond Moraes2 
http://orcid.org/0000-0001-6250-3533

1Departamento de Psicologia Social e do Desenvolvimento da Universidade Federal de Espirito Santo- Secretaria Integrada de Departamentos do CCHN, IC-2, Sl. 1, Av. Fernando Ferrari, 514, Goiabeiras, Vitória - ES, 29075-910. Brasil roberta.alves@ufes.br

2Programa de Pós-Graduação em Psicologia/Departamento de Psicologia Social e do Desenvolvimento da Universidade Federal de Espirito Santo - Secretaria Integrada de Departamentos do CCHN, IC-2, Sl. 1, Av. Fernando Ferrari, 514, Goiabeiras, Vitória - ES, 29075-910. Brasil thiago.moraes@ufes.br


Resumo

Transformações no trabalho no final do século XX intensificam as exigências para a vida psíquica dos trabalhadores. A pandemia de Covid-19 traz novos desafios, aumentando as queixas de adoecimento mental entre os trabalhadores, e restringindo possibilidades de intervenção. Este texto visa analisar se é possível alinhar práticas de apoio psicológico breve online às perspectivas da Ergopsicologia e das clínicas do trabalho. São analisadas experiências de apoio psicológico breve online para trabalhadores de segurança pública e da assistência social, ofertadas por meio de estágio profissional em psicologia. Conclui-se que: as intervenções são pertinentes para trabalhadores em sofrimento em situações agudas; as iniciativas estão alinhadas à Ergopsicologia por buscarem compreender o sofrimento a partir da vivência no trabalho; os atendimentos são fontes de informações sobre condições de trabalho geradoras de sofrimento; a experiência é importante na formação dos estudantes por despertar o olhar clínico para questões do trabalho envolvidas na saúde mental.

Palavras-chave: apoio psicológico; saúde mental; clínicas do trabalho; atendimento online; Ergopsicologia

Resumen

Las recientes transformaciones laborales están intensificando las demandas psicológicas de los trabajadores. La pandemia de COVID-19 ha traído nuevos desafíos, aumentando las denuncias de enfermedades mentales entre los trabajadores y restringiendo las opciones de intervención. Este texto tiene como objetivo discutir si es posible alinear las prácticas de apoyo psicológico en línea con las perspectivas de la Ergopsicología y las clínicas de trabajo. Se analizan experiencias de apoyo psicológico breve, en línea, para trabajadores de seguridad pública y de los servicios sociales, ofrecidas en el marco de una práctica profesional en psicología. Se concluye que: las intervenciones son relevantes para los trabajadores que padecen situaciones agudas; las iniciativas están alineadas con la Ergopsicología porque buscan comprender el sufrimiento a partir de la vivencia en el trabajo; el servicio en línea es una fuente de información sobre las condiciones de trabajo que generan sufrimiento; la experiencia es importante en la formación de los estudiantes porque despierta una visión clínica de las cuestiones laborales relacionadas con la salud mental.

Palabras clave: apoyo psicológico; salud mental; clínicas de trabajo; servicio en línea; Ergopsicología

Résumé

Les transformations du travail à la fin du vingtième siècle intensifient les exigences auxquelles est confrontée la vie psychique des travailleurs. La pandémie de Covid-19 apporte de nouveaux défis, augmentant les plaintes de souffrance mentale parmi les travailleurs, et limitant les possibilités d'intervention. Ce texte veut analyser s'il est possible d'aligner les pratiques de soutien psychologique court en ligne avec les perspectives de l'ergopsychologie et des cliniques du travail. Des expériences de soutien psychologique court en ligne, destinées à des travailleurs de la sécurité publique et de l'assistance sociale, conçues dans le cadre d'un stage professionnel en psychologie, sont analysées. Nous concluons que : les interventions sont pertinentes pour les travailleurs en souffrance en situation aiguë ; cette expérience intègre l'ergopsychologie dans le projet d’une compréhension de la souffrance provoquée par la vie au travail ; les consultations constituent une source d'informations sur les conditions de travail qui génèrent de la souffrance ; la démarche est importante dans la formation des étudiants car elle éveille le regard clinique aux questions que soulève le travail lorsqu’il interfère dans la santé mentale.

Mots-clés: soutien psychologique; santé mentale; cliniques du travail; service en ligne; Ergopsychologie

Abstract

Transformations at work at the end of the 20th century intensify the demands on the psychic life of workers. The Covid-19 pandemic brings new challenges, increasing complaints of mental illness among workers, and restricting intervention possibilities. This text aims to discuss whether it is possible to align brief online psychological support practices with the perspectives of Ergopsychology and clinics of work. Experiences of brief online psychological support for public security, and social care workers, made available in the scope of a professional internship in psychology, are analyzed. It is concluded that: interventions are relevant for workers suffering in acute situations; the initiatives are aligned with Ergopsychology as they seek to understand suffering based on experience at work; the appointments are sources of information about working conditions that generate suffering; experience is important in the students’ training as it awakens a clinical view of work issues involved in mental health.

Keywords: psychological support; mental health; work clinics; online service; Ergopsychology

1. Introdução

Serviços de assistência à saúde dos trabalhadores vêm sendo implementados e estão em funcionamento há algumas décadas no Brasil, sendo a década de 1980, talvez, o momento em que tais serviços começam a ganhar maior relevância como eixo de ação nas políticas públicas (Lacaz et al., 2013). Isso porque foi nesse período que se constitui o campo da Saúde do Trabalhador (Minayo-Gomez, 2011), intimamente atrelado aos movimentos sindicais do país e à luta pela redemocratização e pela construção do Sistema Único de Saúde, no qual se deu a criação de Programas de Saúde do Trabalhador ((Lacaz, 2007; (Minayo-Gomez, 2011).

Apesar de inúmeros avanços observados, há certo consenso acadêmico dos limites com relação à implementação de práticas neste campo, dentre as quais, falta de financiamento, formação insuficiente dos profissionais para realizar o nexo causal entre patologia e trabalho, visão do modelo biomédico ainda predominante, enfraquecimento dos movimentos sindicais reduzindo a pressão por demandas específicas de saúde para esse grupo, ausência de políticas integradas e intersetoriais, ausência de formulações claras e propositivas sobre o campo por parte dos gestores (Minayo-Gomez, 2011; Minayo-Gomez et al., 2018). Além disso, ocorreram transformações substanciais de práticas e organização do trabalho em final do século XX, que intensificam as exigências para a vida psíquica dos trabalhadores e requisitam novas respostas programáticas e institucionais em relação à assistência, proteção e promoção da saúde dos trabalhadores, respostas que ainda carecem de maior desenvolvimento e consolidação. Em outras palavras, um dos desafios que se observa no cotidiano do trabalho, já amplamente relatado (Perez et al., 2017), é o crescente impacto que o trabalho produz na saúde mental dos trabalhadores. O que fazer com essa situação é ainda um desafio social, político, econômico e prático.

Mesmo diante dos desafios de se pensar e intervir nas complexas relações entre saúde mental e trabalho, observa-se a construção de linhas de intervenção que visam promover a saúde mental dos trabalhadores e/ou intervir nos processos potencialmente deletérios nessa dimensão. As intervenções propostas vão desde as ações voltadas para a produção da resiliência e gestão de estresse, até aquelas desenvolvidas por coletivos que visam a reformulação da organização do trabalho. Parece mais evidente, na literatura internacional, que as intervenções voltadas para produzir mudanças no modo como os trabalhadores enfrentam as situações estressoras e o sofrimento mental a elas relacionado têm maior proeminência do que as ações coletivas que visam a transformação do contexto de trabalho (Kompier & Kristensen, 2003), embora tal estratégia de intervenção mais individualizante encontre inúmeras objeções no que tange a seus efeitos ((Kompier & Kristensen, 2003; Miossec et al., 2014).

Outra perspectiva, mais voltada para intervenções em coletivos e nos processos organizacionais, tem na linhagem francesa da Ergonomia e da Ergologia seu marco referencial principal. Uma das proposições dessa linhagem versa sobre intervenções em clínicas do trabalho (Bendassolli & Soboll, 2011) focadas nas transformações dos modos de organização e produção. Tratam-se, principalmente, de intervenções coletivas, dialógicas e que visam tanto a transformação dos meios de trabalho quanto dos próprios trabalhadores.

No Brasil, a partir do modo singular como vem se fazendo uso dessa linhagem em psicologia, alguns autores propuseram denominá-la de Ergopsicologia (Athayde & Zambroni-de-Souza, 2015; Roosli et al., 2022), se referindo ao modo como se articulam teórica e metodologicamente produções teórico-conceituais de diferentes abordagens clínicas do trabalho e de outras contribuições epistemológicas. Com o objetivo de situar brevemente essa perspectiva para subsidiar o debate, apresentam-se a seguir, mas não exaustivamente, algumas dimensões da perspectiva da Ergopsicologia:

Metodológica: visa produzir conhecimento ecoando a voz dos trabalhadores, de modo a não somente apreender os sentidos e estruturações dos conteúdos dos discursos dos participantes, ou seja, como “objetos” de investigação em que se reconhece os participantes como “sujeitos de discursos”, mas reconhecendo todos os envolvidos como legítimos atores da produção do conhecimento. Nessa perspectiva, o conhecimento se produz sobre, com e para os trabalhadores. Ao mesmo tempo, não se impõem restrições ou técnicas apriorísticas de pesquisa e produção de conhecimento. Reconhecendo a limitação de qualquer instrumento, privilegia-se aqueles que produzem dialogia entre os participantes da pesquisa, mas não se exclui usos de ferramentas as mais diversas. Em outras palavras, trata-se de uma perspectiva que concilia o sincretismo técnico com um alinhamento epistemológico muito preciso, que tem na Ergologia seu principal referente, de modo a conduzir a produção de conhecimento sempre a partir de uma referência muito bem estabelecida.

Epistemológica: reconhece o conhecimento como produto de sujeitos históricos, encarnados em uma materialidade temporalmente determinada e atravessada por aspectos culturais, organizacionais, sociais que não são harmônicos ou estáveis, mas frutos de negociações e debates contínuos entre esses próprios sujeitos, os coletivos, comunidades e forças políticas às quais pertencem e as condições nas quais se encontram e produzem. Essa perspectiva epistemológica tem profundas raízes em conceitos centrais, dentre os quais o conceito de atividade (Schwartz & Durrive, 2010), saúde (Canguilhem, 2000), clínica e produção de saúde (Oddone et al., 2020; Schwartz, 2015) - mais sobre essa discussão, ver Roosli et al. (2022).

Ético-política: trata-se de uma perspectiva alinhada não somente com a produção de conhecimentos ou com o sentido sobre as coisas, mas sobretudo com a transformação da realidade em prol da emancipação dos trabalhadores, compreendida como a capacidade de viver e produzir modos de vida produtores de saúde, referências pessoais e coletivas, e sentidos para a existência. Trata-se, portanto, de uma linhagem afeita à valorização da vida em sua diversidade, que requer negociação e pactuação contínuas entre as pessoas e delas com as instituições e contextos, e que não se satisfaz com modelizações prontas, mas que enfatiza mais o espaço de reflexão sobre o que o meio propõe a cada instante.

Clínica(s): a concepção de clínica, nesta perspectiva, tende a uma acepção inspirada no termo latim clinamen, que remete aos desvios imprevisíveis, à produção de alternativas, saídas e inovações, e não tanto no termo grego klinein, que se refere à reclinar, se dobrar sobre, inclinar sobre, em outras palavras, debruçar-se sobre algo ou alguém que merece observação, atenção, cuidado (Souza et al., 2018). Ainda que a dimensão da assistência à saúde seja uma das diretrizes bases das ações em Ergopsicologia, trata-se de privilegiar intervenções sobre o contexto em que vivem as pessoas e as relações que ali se operam, ao invés de concentrar-se sobre as pessoas em si e seus recursos pessoais e subjetivos para renormatizar o meio. Não se ignora o valor e a importância dos recursos pessoais para a ação das pessoas em seu meio, mas busca-se ancorar tais recursos em condições, principalmente, coletivamente partilhadas que ampliem a capacidade de agir dos trabalhadores. Em outras palavras, a aposta clínica, e como dito, também política, é pela mudança dos meios e das relações das pessoas com eles, e não somente das pessoas entre si ou consigo mesmas, como mais usualmente se observa nas intervenções individuais da clínica tradicional psicológica.

O grupo de pesquisa-intervenção, cuja prática é objeto da presente reflexão, busca alinhar-se a essa perspectiva da Ergopsicologia, com base na qual já realizou algumas intervenções junto a setores estatais de prestação de serviços à sociedade, com maior ou menor efeito, mas sempre amparadas em seus conceitos e pressupostos. Dentre as intervenções já realizadas, destacam-se as direcionadas para a análise e transformação do trabalho em determinadas políticas públicas, tais como as de Trabalho e Geração de Renda, de Assistência Social, das Forças de Segurança Pública e de Saúde. A partir de 2019, as ações do grupo de pesquisa se voltaram particularmente para os trabalhadores da Assistência Social e das Forças de Segurança Pública.

Em 2020 a pandemia de Covid-19 produziu novas e prementes demandas nos contextos de trabalho no âmbito das políticas públicas. Os trabalhadores, desde então, têm sido confrontados com inúmeras exigências de adaptação ao novo contexto, de forma rápida e com pouquíssimo tempo de preparação. Tais exigências não se referem apenas à incorporação de práticas e procedimentos rigorosos de biossegurança para controle do risco de contágio no ambiente de trabalho, que por si só já se constituem como grande desafio por serem inteiramente novos para a maioria das categorias de trabalhadores. Dizem respeito também às reformulações e à necessidade de adaptação constantes nos processos de trabalho e na dinâmica de oferta de serviços ao público. Ao mesmo tempo, a situação pandêmica impôs uma série de restrições já bastante conhecidas, incidindo diretamente nas possibilidades de intervenção junto aos trabalhadores, uma vez que as práticas presenciais e os trabalhos em grupo estavam limitados.

Essa condição exigiu que refletíssemos sobre como dar continuidade aos projetos iniciados anteriormente, com as limitações impostas pelo contexto emergencial. A alternativa de intervenção que se mostrou possível ao grupo de pesquisa-intervenção naquele momento foi a oferta de apoio psicológico online, em modalidade breve, para trabalhadores e trabalhadoras em sofrimento psicológico. Isso colocou para o grupo alguns dilemas iniciais. Por um lado, tal desenho possibilitaria ampliar o acesso de trabalhadores em sofrimento ao suporte psicológico e dar respostas mais imediatas. Por outro lado, a equipe de trabalho do apoio encontraria dificuldades em acompanhar suficientemente os desdobramentos dos acolhimentos, como por exemplo os encaminhamentos a outros serviços ou ações de intervenção no próprio local de trabalho. Além disso, o alcance das intervenções poderia ser limitado, pois encontra-se restrito ao âmbito individual e online, impedindo em grande medida que se tenha uma visão mais próxima da realidade cotidiana de trabalho.

Em outras palavras: poderíamos incluir o trabalho que realizamos no escopo de práticas alinhado à Ergopsicologia, considerando-se as características metodológicas e os resultados do que foi possível ofertar? Ao realizar essa modalidade de intervenção, poderíamos também denominá-la como uma ação em clínicas do trabalho (Bendassolli & Soboll, 2011)? As condutas adotadas frente às queixas apresentadas nos atendimentos consideraram os aspectos metodológicos, epistemológicos, ético-políticos e clínicos da Ergopsicologia? E quando a condição de restrição imposta pela pandemia se for, a modalidade de intervenção desenvolvida poderá trazer alguma contribuição para novas frentes de trabalho, ou mesmo, ser sustentada por nosso grupo de pesquisa-ação? Partindo de tais indagações que se impõem como um norte para as reflexões do que realizamos e, principalmente, do que realizaremos nas experiências de estágio profissional, o presente texto tem por objetivo apresentar uma experiência de apoio psicológico individual breve online para trabalhadores, e analisar em que medida tal estratégia se alinha às perspectivas da Ergopsicologia e das clínicas do trabalho, considerando o método utilizado, as demandas trazidas durante os atendimentos e os resultados obtidos. Para tanto, apresentaremos duas experiências desenvolvidas com trabalhadores da assistência social e das forças de segurança pública. Inicialmente demonstraremos o processo metodológico de intervenção, destacando como foi a construção da demanda, em que cenários as experiências aconteceram e como as atividades foram realizadas. Em seguida, mostraremos os principais resultados, salientando aspectos como a resolutividade da proposta, as queixas e os fatores geradores de sofrimento presentes no trabalho relatados pelos trabalhadores, e as ações de manejo, encaminhamento e demais desdobramentos posteriores aos atendimentos. Finalmente, analisaremos se o desenho da intervenção e seus resultados são coerentes com a perspectiva da Ergopsicologia.

2. Método

O objeto da discussão proposta será o projeto desenvolvido para acolher demandas de apoio psicológico de trabalhadores da assistência social e das forças de segurança pública. As atividades foram desenvolvidas por estudantes do último ano do Curso de Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), com a supervisão dos autores desse artigo, em dois projetos de estágio curriculares obrigatórios. Os estágios foram orientados a partir das mesmas diretrizes teóricas e os mesmos procedimentos gerais, contudo apresentando desenhos ligeiramente diferentes. O serviço de apoio psicológico a trabalhadores é ofertado para cada campo de estágio por uma equipe de estudantes exclusiva de cada um dos campos, a saber: 1) a Secretaria Municipal de Assistência Social (SEMAS) de um município da Região Metropolitana de Vitória, no Estado do Espírito Santo e; 2) algumas unidades das Forças de Segurança Pública do Estado do Espírito Santo, dentre elas, o Corpo de Bombeiros Militares do Espírito Santo (CBMES); a Superintendência da Polícia Rodoviária Federal do Espírito Santo (PRF-ES); a Academia da Polícia Militar do ES (APM); e o Núcleo de Operação de Transporte Aéreo do Espírito Santo (Notaer-ES). Os estágios foram ofertados ao longo de 2020 e 2021, e seguem funcionando em 2022. Ressalta-se que a modalidade de apoio psicológico online continua sendo ofertada, embora atualmente outras ações estejam sendo empreendidas nesses campos, em função do relaxamento das restrições sanitárias.

2.1. Cenário e participantes

2.1.1. Secretaria Municipal de Assistência Social

A SEMAS é responsável pela execução, em âmbito de um Município da região Metropolitana de Vitória, da Política Nacional de Assistência Social por meio de serviços ligados ao Sistema Único de Assistência Social do Brasil. Essa política compreende as ações de Proteção Social Básica, visando prevenir situações de risco de várias ordens (alimentar, financeiro, habitacional, etc.) por meio do desenvolvimento do fortalecimento e da potencialidade dos vínculos familiares e comunitários, e a Proteção Social Especial, que objetiva atuar em situações em que houve violação ou ameaça de direitos e cuja convivência familiar seja prejudicial para a proteção e desenvolvimento do indivíduo. Atuam nos serviços trabalhadores de diferentes formações e experiências profissionais, dentre as quais, assistentes sociais, psicólogos, pedagogos, assistentes administrativos, educadores sociais, cuidadores, entre outros. Muitos desses profissionais são contratados por entidades não governamentais que executam o serviço por meio de convênio com a Prefeitura. Outros são servidores públicos municipais. O serviço de apoio psicológico foi ofertado a todos os trabalhadores da Secretaria.

2.1.2. Forças de Segurança Pública

As Forças de Segurança Pública são responsáveis pela preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, conforme a Constituição Brasileira, e são compostas pelas seguintes instituições: Polícia Federal; Polícia Rodoviária Federal; Polícia Ferroviária Federal; Polícias Civis; Polícias Militares e Corpos de Bombeiros Militares; Polícias Penais Federal, Estaduais e Distrital; e as Guardas Municipais. No âmbito da experiência analisada neste artigo, as unidades em que aconteceram a intervenção foram o Notaer-ES, o CBMES, a APM e a PRF.

O Notaer é um órgão não exclusivamente ligado às ações de Segurança Pública, e que atua a serviço do Gabinete do Governo do Estado do Espírito Santo, mas que oferta suporte aéreo para ações da Polícia Militar do Espírito Santo, do Corpo de Bombeiros, da Polícia Civil e do Serviço Móvel de Urgência (SAMU). Atuam ali membros de algumas forças de segurança pública do Estado e membros do SAMU. Entre os profissionais, encontram-se pilotos, técnicos da manutenção, alguns assistentes administrativos e membros da tripulação. A qualificação dos tripulantes varia em função da natureza do voo: por exemplo, no caso de voos para transporte sanitário (atendimento de emergência) faz parte da tripulação médicos e enfermeiros; no caso de voos aeropoliciais, os tripulantes são membros pertencente às forças operacionais do Batalhão de Missões Especiais.

A APM é responsável pela formação de profissionais de todos os postos e graduações da Polícia Militar do Espírito Santo (Soldados, Sargentos, Oficiais e Oficiais Superiores). Entre esses estudantes, encontram-se: 1) membros efetivos da Polícia Militar do Espírito Santo (PMES) realizando cursos de aperfeiçoamento ou cursos para acessar postos superiores, como o de sargento ou de oficiais superiores; 2) estudantes que visam se tornar soldados policiais e que executam as ações operacionais da PMES; 3) oficiais que exercem a função de comando das operações policiais nos territórios.

O CBMES é responsável pela execução de ações de prevenção e combate a incêndio, e também de defesa civil, busca e salvamento. É uma instituição militar, organizada em vários batalhões, compostos de trabalhadores do serviço operacional (praças) e de gestão (oficiais).

A PRF-ES é responsável pelo policiamento ostensivo das rodovias federais do Estado, atuando tanto na gestão do tráfego, quanto no combate a crimes realizados nas rodovias. Atuam no órgão tanto policiais rodoviários federais, que executam atividades operacionais ou de gestão administrativa, quanto trabalhadores do setor administrativo, sejam eles concursados ou temporários.

2.2. Construção da demanda

2.2.1. Secretaria Municipal de Assistência Social

A proposição da estratégia de intervenção na SEMAS é decorrente de uma pesquisa-intervenção iniciada em 2014 e ainda em andamento (Nascimento & Moraes, 2019), na qual têm sido produzidas informações sobre os processos de saúde-doença de trabalhadores da Secretaria. Em 2019 foi realizado um levantamento das condições de saúde desses trabalhadores (estudo ainda não publicado), que objetivou investigar as relações de trabalho, suas condições e impactos psicológicos. Verificou-se que cerca de 46% dos participantes da pesquisa apresentavam sinais sugestivos de algum nível de ansiedade, depressão ou estresse. Os resultados indicaram, ainda, que tal quadro está mais diretamente relacionado a fatores presentes nas condições e na organização do trabalho do que em aspectos sociodemográficos (idade, gênero, local, escolaridade e profissão).

Tais informações foram apresentadas e debatidas com membros da gestão da Secretaria e, como resultado desse processo, houve o entendimento sobre a necessidade de propor transformações da gestão do trabalho na SEMAS, bem como desenhar algumas práticas de formação profissional focando temas sensíveis à gestão de pessoas. Pactuou-se, também, a oferta de suporte psicológico aos trabalhadores da Secretaria, seja na modalidade individual, seja na modalidade de partilha de vivências entre os trabalhadores.

2.2.2. Forças de Segurança Pública

A estratégia de intervenção entre os profissionais dessas forças emerge em duas frentes paralelas. A primeira frente é fruto de demanda por intervenção psicológica entre os profissionais do Notaer-ES após acidente aéreo em 2018. Após o sinistro, e na ausência de profissionais da psicologia integrantes da equipe da instituição, solicitou-se apoio de alguns psicólogos que atuavam direta ou indiretamente com profissionais das forças de segurança do Estado, dentre os quais alguns integrantes de nosso grupo de pesquisa-intervenção. Um dos desdobramentos foi um projeto de estágio curricular no curso de psicologia da UFES iniciado em 2019. Neste mesmo ano, por consequência dos resultados de pesquisa realizada entre os anos de 2016-2018 no CBMES (Breda, 2019; Oliveira & Moraes, 2021), que apontaram intenso sofrimento psíquico entre os profissionais, a equipe de psicologia da corporação deliberou pela necessidade de ampliação das ações de apoio psicológico ofertadas aos trabalhadores da corporação. Dá-se, então, início a um projeto de estágio curricular no 1º Batalhão do CBMES, junto ao efetivo operacional (praças). As ações realizadas na APM e na PRF iniciaram-se em 2021 a partir de demandas de gestores de setores dessas corporações ao Curso de Psicologia da UFES, após tomarem conhecimento do trabalho realizado no Notaer-ES e no CBMES.

2.3. Desenho das intervenções

Conforme dito anteriormente, os projetos de estágio na SEMAS e nas forças de segurança estavam planejados para serem iniciados ou retomados em 2020, quando se deu a pandemia de Covid-19. O cenário que se desenhou naquele ano contribuiu para o agravamento das situações geradoras de sofrimento no trabalho, já identificado em pesquisas anteriores. Diante desse quadro setores responsáveis pela gestão de pessoas ou saúde dos trabalhadores das instituições citadas demandaram a manutenção da oferta de apoio psicológico aos trabalhadores, mesmo que à distância, dada a preocupação com os impactos que tal conjuntura pudesse provocar na saúde mental, como tem sido documentado em diversos estudos (Silva, 2022). Dessa forma, para atender a essa nova demanda e dar continuidade às parcerias institucionais que já vinham sendo realizadas no âmbito destas políticas públicas, iniciamos novas frentes de ação procurando aprimorar e desenvolver intervenções que já tinham se iniciado, como será explicado a seguir.

2.3.1. Secretaria Municipal de Assistência Social:

A proposta de intervenção ofertada à SEMAS no projeto de estágio abrange:

Apoio psicológico individual breve online aos trabalhadores.

Ações de educação em saúde mental e trabalho por meio de elaboração e divulgação de materiais educativos e informativos sobre o projeto a fim de construir conhecimentos quanto às temáticas de saúde mental e sua relação com o trabalho, sensibilizar quanto à importância dos cuidados em saúde mental e da busca de ajuda especializada quando necessário, e divulgar o serviço entre os trabalhadores de forma permanente.

Reuniões de avaliação e monitoramento das ações com gestores da Secretaria e elaboração de relatório semestral de atividades. Foram realizados encontros regulares entre os integrantes do projeto de estágio e o grupo de representantes da gestão da Secretaria para planejamento integrado, participativo e pautado nas demandas da Secretaria, como também para realizar retorno sobre o andamento da intervenção e os resultados, incluindo as principais questões relacionadas aos processos de trabalho trazidas pelos trabalhadores. O relatório semestral inclui os dados consolidados sobre os atendimentos, perfil da demanda, sinais de sofrimento/ adoecimento, e fatores associados, de acordo com a percepção dos trabalhadores. Por intermédio destas estratégias visa-se promover o debate, a reflexão e a ampliação da compreensão do grupo, não apenas sobre o panorama de sofrimento e adoecimento dos trabalhadores, mas também e especialmente sobre as situações de trabalho geradoras de sofrimento que deveriam ser objeto de atenção por parte da gestão.

2.3.2. Forças de Segurança Pública

A proposta de intervenção ofertada às Forças de Segurança no projeto de estágio abrange:

Apoio psicológico individual breve online aos trabalhadores.

Ações de educação em saúde mental e trabalho por meio da elaboração e divulgação de material educativo e informativo sobre o projeto, seguindo as mesmas orientações do que se realizou na SEMAS.

Levantamentos das condições de saúde mental e percepção do contexto de trabalho e riscos psicossociais, por meio de questionários quantitativos online autoaplicados pelos trabalhadores. Esta atividade foi realizada no Notaer-ES e na PRF-ES e ofertada a todos os trabalhadores dessas unidades. Além de responderem aos questionários, os trabalhadores foram convidados para entrevistas devolutivas individuais sobre a análise de suas respostas. Houve um esforço suplementar por parte da equipe de estágio para acessar participantes cujas respostas indicavam casos moderados, graves ou extremamente graves segundo a escala Depression, Anxiety and Stress Scale-21 (DASS-21) (Vignola & Tucci, 2014). Estas entrevistas devolutivas foram estruturadas visando apresentar a análise das respostas, confrontar a percepção dos respondentes sobre esses resultados, acolher e realizar orientações, encaminhamentos ou pactuações em torno da situação observada.

Reuniões com gestores, com a mesma estrutura descrita anteriormente na intervenção na SEMAS. A diferença é que nos relatórios foram acrescidas informações produzidas por meio dos levantamentos realizados.

2.3.3. O apoio psicológico individual breve online

Por ser o objeto de análise do artigo, descreveremos de forma mais detalhada a estratégia de apoio psicológico ofertada aos trabalhadores da SEMAS e das Forças de Segurança.

Diante das limitações acarretas pela pandemia, como já descrito, decidimos pela oferta de atenção em saúde mental e trabalho tendo como desenho básico uma modalidade de apoio psicológico individual breve, de livre demanda - semelhante a um plantão psicológico (Pereira et al., 2021) - e online, também denominado de remoto (mediado por tecnologias da informação). Trata-se de um tipo de apoio pontual que busca, a partir da escuta compreensiva e acolhedora da vivência trazida pelos trabalhadores, auxiliá-los a sentirem-se mais apoiados para lidarem com as situações desencadeadoras de sofrimento, como também produzir reflexões sobre as situações de trabalho que de alguma forma contribuem para a vivência de sofrimento(Fiocruz, 2020; Organização Pan-Americana de Saúde, 2015). A partir desta escuta, procura-se promover alívio imediato da vivência de sofrimento e redução do estresse agudo, bem como a reflexão sobre as possibilidades de agir individuais e coletivas em relação às situações de trabalho geradoras de sofrimento.

Ressalta-se aqui que a escuta e a intervenção são pautadas na vivência singular do trabalhador trazida no momento do acolhimento, mas que tal vivência é colocada sob uma perspectiva psicossocial que não privilegia a dimensão intrapsíquica, mas a relação dialética entre as características pessoais dos trabalhadores e as dinâmicas coletivas presentes nos contextos de trabalho. Desse modo, a compreensão dos processos de saúde-doença mental produzida na relação entre o atendente e os trabalhadores remete invariavelmente ao exame da situação de trabalho, e não exclusivamente às questões intrapsíquicas destes últimos. Portanto, as ações de apoio ao trabalhador em situação de sofrimento ofertadas nos projetos estão atentas às condições de produção do sofrimento ou do adoecimento, ainda que sejam delineadas para o suporte individual. Este cuidado é essencial nas intervenções clínicas em saúde mental e trabalho, para que não se atribua o problema à pessoa, e não haja um foco excessivo em estratégias exclusivamente centradas na mudança de comportamentos do trabalhador, reiterando o compromisso da clínica com a transformação dos processos de trabalho (Bendassolli & Soboll, 2011; Kompier & Kristensen, 2003; Schwartz, 2015).

Por tratar-se de uma modalidade de acompanhamento breve, prestado num momento de urgência psicológica (Fiocruz, 2020; Organização Pan-Americana de Saúde, 2015), a proposta busca lidar pontualmente com a demanda imediata, ser resolutivo em relação a ela, e encerrar a intervenção em até três atendimentos em média. Porém, se identificada a necessidade, pode-se estender os encontros, como também recomendar a busca por outras ofertas de cuidado em saúde mental que se julgue necessárias. Neste sentido, não se trata de oferta de acompanhamento psicoterápico de longa duração para acolhimento de demandas subjetivas que requerem especificidade no acompanhamento do caso.

Para acessar o serviço os trabalhadores utilizam um aplicativo de mensagem cujo número para contato é disponibilizado nos materiais educativos divulgados pelos projetos. Os atendimentos são realizados pelos estagiários, sob supervisão dos professores, por meio de plataformas de videoconferência ou videochamada, em encontros individuais com duração de 40-50 minutos e periodicidade semanal.

Cada atendimento efetuado é registrado numa planilha, contento as seguintes informações: nome (ou as iniciais, caso o trabalhador não queira se identificar), idade, gênero, cargo, serviço e setor onde trabalha, data e horário do atendimento, indicação da queixa principal, encaminhamentos necessários, observações, e estagiário responsável pelo atendimento. As informações produzidas no serviço de apoio psicológico, por meio dos registros nas planilhas, juntamente com as produzidas nos levantamentos, subsidiaram a elaboração de relatórios sobre as intervenções que foram disponibilizados aos gestores que demandaram a intervenção. A fim de resguardar os cuidados éticos relativos ao sigilo profissional, foram apresentados apenas dados gerais, de modo a não permitir a identificação dos trabalhadores atendidos nem detalhes sobre os casos. A partir disso, foram realizadas reuniões devolutivas regulares, com a participação dos estagiários, dos professores responsáveis pela supervisão e de gestores das políticas de saúde dos trabalhadores para análise do cenário, avaliação do andamento dos projetos e planejamento de novas ações. O espaço das reuniões constituiu-se como importante dispositivo para aperfeiçoamento e consolidação das atividades dos projetos, facilitando a sua continuidade e promovendo maior institucionalidade.

3. Principais resultados

3.1. Secretaria Municipal de Assistência Social

Em 2021, o projeto da SEMAS acolheu 14 trabalhadores e realizou 35 atendimentos, em encontros individuais com duração de 40-50 minutos. Observou-se uma regularidade de procura e de realização dos atendimentos ao longo dos meses, indicando que a proposta vem se constituindo como importante ponto de acesso para os primeiros cuidados em saúde mental para os trabalhadores.

O número de atendimentos por trabalhador variou entre um e sete, porém a maior parte dos trabalhadores (7) teve dois atendimentos. Para a maioria dos atendidos (9), o apoio psicológico se mostrou resolutivo como forma de acolhimento em situações de sofrimento agudo, uma vez que não houve necessidade de manutenção de cuidados em saúde mental, tanto no projeto, como em outros serviços. Dentre aqueles trabalhadores que necessitaram de continuidade dos cuidados (5): a) quatro foram encaminhados ou orientados a procurar acompanhamento psicológico em outros serviços, tais como atenção primária em saúde, rede privada, serviços oferecidos por Instituições de Ensino Superior públicas ou privadas, e; b) dois foram encaminhados ou orientados a procurar avaliação psiquiátrica nestes variados serviços. Houve ainda uma trabalhadora que foi direcionada a um serviço especializado na atenção a mulheres em situação de violência.

No conjunto dos relatos dos trabalhadores da SEMAS há referência a variados sinais e sintomas relacionados à saúde mental, com predominância de indícios de ansiedade (7 referências), seguidos de traços de depressão (6), alterações do sono (4), e fadiga ou exaustão (4). Outras condições citadas incluem alterações da alimentação, comportamento suicida (ideação ou tentativa de suicídio) e angústia relacionada ao futuro (3 referências cada); e com menor frequência (1 referência) observou-se irritabilidade ou mudanças de humor, uso prejudicial ou abusivo de álcool e outras drogas, dificuldades de concentração, esgotamento emocional e sequelas da covid-19.

Um dado que chama a atenção é a referência de comportamentos suicidas recentes ou pregressos, associados a sintomas de depressão e/ou uso prejudicial de álcool e outras drogas. Sobre este aspecto é interessante ressaltar a importância do apoio psicológico como dispositivo capaz de identificar oportunamente situações mais graves ou de maiores riscos, e promover intervenções para mitigar o agravamento das condições de saúde mental e evitar desfechos fatais.

Durante os atendimentos, além dos sinais e sintomas referidos, os trabalhadores relataram situações e fatores que, em sua percepção, estão relacionados aos processos de sofrimento e/ ou adoecimento mental. Tais fatores podem ser classificados em três grandes categorias, a saber: 1) os aspectos diretamente relacionados ao contexto de trabalho, que constituem a maioria dos fatores citados (26 referências) como relacionados às situações de sofrimento; 2) os elementos associados à interface trabalho/família (2); 3) os aspectos referentes aos âmbitos individual e familiar (25). Nesse apanhado percebe-se sem dificuldades a presença expressiva de fatores do trabalho considerados pelos trabalhadores como associados ao sofrimento. Os principais citados pelos trabalhadores foram, nesta ordem, alta demanda no trabalho/ sobrecarga; angústia relacionada a mudanças (com relação à gerência, cargo ou readaptação); falta de reconhecimento e; problemas de comunicação interna. Importante destacar também as menções quanto a dificuldades específicas do contexto laboral na pandemia geradoras de sofrimento, tais como o risco de contágio e as constantes adequações e mudanças nos processos de trabalho, incluindo o home office, o retorno presencial ao trabalho, e modificações nas dinâmicas de atendimento ao público-alvo dos serviços da Assistência Social. Também são citados com menor frequência relações interpessoais insatisfatórias, insegurança em relação ao emprego, alta complexidade do conteúdo das demandas, falta de autonomia, e insatisfação profissional.

A presença expressiva de componentes laborais geradores de sofrimento nas narrativas dos trabalhadores atesta o papel do contexto de trabalho na saúde mental e põe em relevo a necessidade de o considerar nas análises e intervenções neste campo, superando a visão tradicional e ainda predominante na clínica psicológica que se concentra nas questões intrapsíquicas e familiares dos sujeitos. Sinaliza, ainda, que a clínica em saúde mental e trabalho deve estar articulada com o esforço indispensável de incitar a promoção de saúde mental no contexto laboral, por meio de seu replanejamento (Sato, 2002).

Muitos destes fatores relacionados ao trabalho foram evocados espontaneamente pelos trabalhadores atendidos, enquanto outros são citados após estes serem interpelados pelos estagiários. Apesar das referências a aspectos do trabalho geradores de sofrimento terem sido frequentes nos atendimentos, não se deve descartar que o peso do trabalho nos quadros apresentados pelos trabalhadores atendidos possa ser ainda maior, pois deve-se considerar que a emergência destes conteúdos guarda relação com a maior ou menor acuidade da escuta clínica para a dimensão do trabalho realizada por cada um dos estagiários. Os trabalhadores nem sempre fazem instantaneamente a relação entre o sofrimento psíquico vivenciado e o contexto de trabalho no qual estão inseridos, cabendo ao profissional que realiza a escuta auxiliá-lo a produzir esta reflexão. No entanto, este olhar para o trabalho por parte de quem realiza a clínica também não está dado necessariamente, e de fato o que se observa em nossa prática, de modo geral, é que os estudantes finalistas do curso não desenvolveram ao longo da formação um olhar voltado para a compreensão das relações entre o trabalho e a saúde mental. Desse modo, estas competências precisam ser desenvolvidas ao longo do estágio, e neste processo observa-se diferenças nos percursos de cada estudante ou turma de estudantes e, portanto, desigualdades quanto à capacidade de captar esta relação.

De modo geral, a análise dos atendimentos realizados mostra que a estratégia utilizada promove o cuidado em saúde mental de maneira resolutiva quanto ao que se propõe, ou seja, o alívio momentâneo de situações agudas de sofrimento, em sua maioria ligadas a ansiedade e transtornos de humor. Esta análise se apoia nos dados dos atendimentos que, como descrito anteriormente, não necessitaram de continuidade ou de outros encaminhamentos. Ao mesmo tempo, a estratégia foi importante para captar e analisar a forma como o sofrimento se apresenta e sua associação com alguns componentes do trabalho que estão implicados nas situações de sofrimento, o que possibilitou produzir reflexões sobre a relação entre os quadros apresentados e o trabalho, tanto com os trabalhadores atendidos, quanto com a gestão, por meio das reuniões de avaliação e planejamento.

3.2. Forças de Segurança Pública

A quantidade de trabalhadores atendidos no ano de 2020 e 2022, por meio do serviço de apoio psicológico online, foi de 4 trabalhadores dos CBMES, 3 da APM e 1 da PRF-ES. Durante o período de atividades remotas, não houve demanda de atendimento por profissionais do Notaer-ES. Em comparação com a SEMAS, a quantidade de profissionais que buscaram o serviço de apoio psicológico foi inferior. As razões para tal procura reduzida nos chamam a atenção e serão fruto de investigações posteriores, principalmente porque os levantamentos realizados com os trabalhadores, utilizando-se a Escala DASS-21 (Vignola & Tucci, 2014), sugerem níveis importantes de sofrimento mental. Os resultados do levantamento no Notaer-ES indicam que 18.9% dos servidores respondentes apresentaram indícios de sintomas de algum nível - leve, moderado, grave ou extremamente grave - de depressão, ansiedade ou estresse. No levantamento também analisou-se os fatores organizacionais utilizando-se a escala COPSOQ (Lima, 2019). Os resultados demonstram que as dimensões com pior avaliação por parte dos respondentes foram o intenso ritmo de trabalho, as exigências laborais e a percepção de ambiguidade de demandas e tarefas, provenientes de níveis hierárquicos e funções operacionais distintas. Na PRF-ES o levantamento indica um quadro ainda mais deteriorado das condições de saúde mental dos trabalhadores. Os resultados da Escala DASS-21 mostram que 40.2% dos respondentes apresentaram sintomas sugestivos de ansiedade, estresse ou depressão em nível moderado, grave ou extremamente grave. O contexto laboral também apresenta pior avaliação geral, em comparação ao Notaer-ES, embora alguns dos fatores mais mal avaliados sejam os mesmos - ambiguidade de demandas, exigências laborais e ritmo de trabalho - acrescido do fator conflito trabalho-família, fator percebido como bastante negativo nessa população. Vemos, portanto, que a procura menor pelo apoio psicológico não corresponde, necessariamente, a menor vivência de sofrimento mental entre os profissionais das forças de segurança, embora talvez estejam operando aí alguns processos que dificultam transformar tais vivências em demandas por apoio, e que carecem de maior compreensão.

Ainda assim, os poucos atendimentos realizados nos permitem observar alguns aspectos semelhantes ao indicado nos resultados da SEMAS, bem como algumas diferenças. Tal como na SEMAS, os sintomas de ansiedade (4 referências) também foram os mais frequentes, seguido da presença de sinais de depressão (1 referência). Sobre as razões para a procura pelo atendimento, a maior parte da demanda foi motivada por conflitos nas relações familiares (4 casos), seguido de conflitos na interface trabalho e família (3 casos). No que se refere aos problemas em relação à dinâmica familiar, as demandas eram variadas - questões conjugais, isolamento, por exemplo -, mas em alguns casos tocavam tangencialmente a condição de serem profissionais das forças de segurança. Como exemplo, tem-se o caso de uma policial que se queixava amplamente de sua relação com o pai, que também era policial militar, motivando sua procura pelo atendimento. A história da família era mediada por valores e normas tipicamente manifestas entre profissionais de segurança, tais como condutas e valores morais rígidos e conservadores. A respeito dos conflitos trabalho-família, destaca-se a dificuldade de os profissionais relaxarem nos horários de folga, afetando as relações familiares, ou terem que se afastar de suas residências para trabalhar. Este último aspecto foi manifestado por profissionais da APM, que se encontravam distante de suas famílias para a formação profissional.

As questões profissionais também se apresentaram nos atendimentos realizados. As queixas giravam em torno de questões financeiras (3 referências), excesso de demandas (2 referências), falta de profissionais ou relacionamento socioprofissional insatisfatório no ambiente de trabalho (2 referências). Em um caso, houve menção a conflitos com a chefia. De todo modo, os problemas internos ao trabalho não foram os motivos principais que mobilizaram a procura pelo apoio psicológico.

A partir dos resultados dos levantamentos e dos atendimentos, e das reflexões com a equipe responsável pelo acompanhamento do estágio nas corporações, foram construídas e realizadas duas formações com profissionais das forças de segurança: uma formação sobre a qualidade do sono no Notaer-ES, temática de especial sensibilidade entre os pilotos de helicóptero, dado os riscos que a sonolência diurna excessiva implica para a segurança dos voos; e uma formação sobre as relações entre saúde mental e trabalho entre gestores de unidades da PRF-ES.

4. Discussão

Feita a apresentação dos resultados, podemos, a partir daí, realizar as considerações necessárias sobre a pertinência de relacionar tais ações realizadas como estratégias no âmbito da Ergopsicologia.

Para orientar a reflexão sobre as ações por nós realizadas, é necessário ter sempre em mente que, preservando as orientações teórico-epistemológicas às quais nos alinhamos, reconhecemos que, de partida, havia diante de nós demandas de trabalhadores e trabalhadoras, em diversos contextos de trabalho, em situação de sofrimento mental. O senso ético-político da intervenção não poderia privar-se de acolher e ofertar apoio aos trabalhadores e trabalhadoras, sobretudo em momento de extrema incerteza e insegurança. Esse aspecto, por si só, já nos sinaliza uma questão sobre a qual avaliamos justo nos deter por uns instantes: as estratégias necessárias para lidar com o sofrimento mental identificado em intervenções situadas. Se é verdade que as intervenções nas diversas clínicas do trabalho são, em tese, orientadas por demandas de trabalhadores que clamam por suporte ao sofrimento enfrentado no cotidiano laboral, na literatura relacionada a essas intervenções, talvez com exceção da Psicodinâmica do Trabalho (Dejours, 2012), não há discussões suficientes que orientem sobre como acolher, apoiar e conduzir a demanda individual de alguns trabalhadores que se encontram em tamanho grau de sofrimento mental.

Em parte, poder-se-ia supor que a própria reconfiguração e ressignificação das ações coletivas em torno da atividade de trabalho seja em si construtora de saídas (desvios, na perspectiva clínica do clinâmen) para situações de sofrimento nas quais as pessoas se encontram. Porém, a experiência cotidiana nos demonstra que nem sempre há acesso dos trabalhadores a esse tipo de intervenção, e em alguns casos, a temporalidade de análise do grupo sobre o trabalho, até produzir efeitos na saúde dos trabalhadores, não é suficiente para minimizar o intenso sofrimento mental vivido por alguns, que em muitos casos é vivenciado de maneira muito solitária. Nesse sentido, faz-se necessário ofertar alguma modalidade de apoio aos trabalhadores, que pode ser também individual, na qual se abra espaço para uma escuta compreensiva desse sofrimento. A questão que se coloca, a partir da Ergopsicologia, passa a ser como ofertar modelos de apoio psicológico que não se limitem a práticas individualizantes, desconectadas do contexto geral dos grupos, e que coloquem as vivências no trabalho como eixo central de reflexão.

Como uma das orientações para contornar o risco de reprodução de práticas individualizadoras e psicologizantes, podemos nos valer de experiências desenvolvidas por alguns grupos de pesquisa-intervenção no país, que visam ofertar certos tipos de suporte para trabalhadores também individualmente. Dentre eles as desenvolvidas em serviços públicos de atenção à saúde dos trabalhadores (Merlo, 2014) ou no âmbito de sindicatos (Perez, 2014), que comungam do entendimento de que no âmbito das clínicas do trabalho é necessário construir também estratégias para o acolhimento e acompanhamento de demandas individuais agudas e imediatas, tendo como norte de atuação a compreensão das relações entre a saúde e o adoecimento associados à organização do trabalho, e orientando-se para a reflexão de possibilidades de agir frente a isso. Aqui é importante ressaltar também que, no âmbito da Saúde Coletiva - berço no qual a Saúde do Trabalhador surge e se desenvolve - a Política Nacional de Saúde do Trabalhador e da Trabalhadora (Brasil, 2012) () prevê a assistência ao trabalhador, sendo ela individual ou em grupo, como um dos componentes dos eixos de ação, ao lado da promoção da saúde e da vigilância em saúde.

Considera-se, portanto, que as demandas individuais podem ser conduzidas e analisadas a partir de uma perspectiva ampliada. Vejamos os dados apresentados sobre as queixas dos trabalhadores atendidos. Estes nos sugerem algumas características do sofrimento relatado que são em alguma medida compartilhadas pelo conjunto de trabalhadores. Tais informações são consideradas importantes quando analisadas juntamente com os dados relativos aos elementos do contexto de trabalho que são citados nos atendimentos como associados ao quadro de saúde. Tal análise nos informa sobre um padrão de sofrimento psíquico que se repete, e no qual estão implicados elementos laborais também partilhados por diversos trabalhadores. Isto auxilia a apreender esse padrão de adoecimento como algo que é coletivo e não individual, reafirmando o papel do trabalho como determinante social do processo saúde-doença e, portanto, se constituindo como uma contribuição significativa da clínica individual na sinalização de necessidades de intervenções no âmbito coletivo e organizacional.

Ainda quanto a esse aspecto, verifica-se nos resultados que os atendimentos prestados pelos projetos de estágio indicam efetividade tanto no que tange ao encaminhamento adequado para serviços de referência com os quais foram construídos vínculos institucionais, quanto pelo acolhimento resolutivo em termos do alívio momentâneo das pressões e sofrimento vivenciado no trabalho, para as variadas queixas apresentadas. Ressalta-se que o registro neste texto da concepção da momentaneidade do alívio pontual não equivale a um serviço de menor importância, mas ao reconhecimento dos limites temporais de tal suporte. Ainda assim, é relevante observar que esse acolhimento, mesmo que reconhecidamente momentâneo e pontual, está amparado nas bases éticas da Ergopsicologia, quando se toma na intervenção o princípio da busca de alternativas para uma vida que se encontra, de algum modo, restrita. Daí, então, que o apoio individual não se iguala a uma estratégia individualista e individualizante. Estar atento ao trabalho, mesmo que também não se perca de vista as ferramentas e recursos psicológicos para lidar com esse trabalho, é um compromisso ético-político em direção à transformação do contexto, mais que do trabalhador.

Além da manutenção de uma referência explícita das vivências do trabalho para nortear a clínica, devemos destacar que essas estratégias são também oportunidades fundamentais de produção de dados e informação, bem como de pesquisa. No caso das ações por nós realizadas, demonstramos que mesmo com intervenções breves, os desdobramentos dos atendimentos não se resumiram apenas ao acolhimento, alívio do sofrimento, encaminhamento e registro. Também foram realizadas análises das informações produzidas em todos os contextos possíveis do estágio, que foram devolvidas e debatidas em reuniões contínuas com equipes gestoras num esforço frequente de colocar em evidência as vivências no trabalho e produzir orientações para subsidiar alterações amplas na organização do trabalho. Ademais, a partir dessas reuniões, já foi possível realizar algumas formações em saúde com os trabalhadores, cujo desenho partiu dos problemas e vivências observados durante o estágio.

Vale ressaltar, ainda, que a produção de informações sobre o trabalho a partir da escuta individual apresentou resultados tão reveladores quanto os obtidos por meio de levantamentos. Isso demonstra a importância do registro cuidadoso e da análise rigorosa das produções discursivas e das queixas realizadas ao longo dos atendimentos como instrumento complementar à produção de informações e vigilância em saúde. Porém, não se pode considerar que os dados produzidos a partir dos atendimentos representem o conjunto dos trabalhadores por, pelo menos, duas razões. Primeiro, pelo fato de não refletirem a situação de grupos homogêneos de trabalhadores (Oddone et al., 2020), a saber trabalhadores que estão sujeitos a condições de trabalho e de nocividade semelhantes, visto que os trabalhadores que buscaram o apoio psicológico eram de formações distintas, atuavam em diferentes serviços e em alguns casos com vínculos contratuais bem diferentes (p. ex., servidores estatutários e trabalhadores de contrato temporário). Segundo, porque pode haver as mais variadas razões para estes trabalhadores procurarem espontaneamente o serviço, incluindo a facilidade do acesso e as expectativas quanto ao que é oferecido. Em função disso, não necessariamente são atendidos aqueles que vivenciam contextos de trabalho mais prejudiciais, ou tampouco apresentam condições de saúde mais comprometedoras. Apesar disso, os dados gerados sinalizam alguns aspectos da situação que devem se somar a outros esforços de avaliação e análise das condições de saúde mental dos trabalhadores e das condições de trabalho, como aqueles já realizados, a exemplo da pesquisa inicial que gerou a demanda desta intervenção, em 2019 na SEMAS, e cujos resultados ainda não foram publicados.

O ponto que se defende aqui, portanto, é que apesar da produção desse tipo de material discursivo não poder ser generalizado - e nem é esse o objetivo da Ergopsicologia ou de qualquer intervenção clínica no trabalho -, o que importa é que tais informações têm sido pertinentes para um diálogo entre trabalhadores, gestores e grupo de intervenção, visando, sobretudo, o delineamento para ações de promoção e prevenção em relação à saúde mental, ampliando os efeitos das intervenções individuais em direção ao âmbito organizacional. Ressalta-se, exatamente nesse ponto, que não foi senão por meio de um rigoroso cuidado na organização das informações produzidas que pudemos apresentar e discutir com os gestores estratégias de ampliar as ações junto aos setores em que atuamos. Em outras palavras, avaliamos que as práticas de apoio psicológico serviram, em nosso caso, também como uma porta de entrada para que negociássemos com a gestão a construção de política abrangente, consistente e integral em outras frentes. A partir daí, o esforço passa a ser como construir outras possibilidades de cuidado, além da assistência, sem, no entanto, deixar de ofertar essa modalidade de apoio. Como exemplo, podemos indicar a demanda de condução de grupos reflexivos que já foram pactuados com os trabalhadores da SEMAS, e o desenvolvimento de ações de formação nas forças de segurança já citadas. Essas ações ampliam o escopo do apoio psicológico realizado, talvez sinalizando para mudanças mais efetivas e permanentes no ambiente de trabalho que, esperamos, contribuam para a manutenção da saúde mental tanto dos que buscaram apoio psicológico individual conosco, e que encontrarão condições mais suportáveis de trabalho, bem como entre os trabalhadores de modo geral.

Vale reafirmar, ainda quanto a esse ponto, que as análises produzidas a partir dos registros dos atendimentos individuais foram corroboradas pelos levantamentos quantitativos realizados em algumas das Forças de Segurança Pública descritos anteriormente, indicando a importância dessa estratégia de produção de informações. Contudo, há uma vantagem das informações discursivas em comparação às obtidas por meio dos dados estatísticos dos levantamentos: aquelas produzidas na clínica remetem a conteúdo linguageiro situado e carreado de sentidos sobre a vivência do trabalho, o que amplia a compreensão da realidade de trabalho por parte dos membros da equipe de apoio psicológico, facilitando a negociação para intervenções mais eficazes. A título de exemplo, em uma devolutiva para profissional da PRF, que apresentava conflito na gestão temporal e relacional entre as vivências no trabalho e na família (usualmente conhecido como conflito trabalho-família), foi possível compreender em que medida esse conflito estava assentado na função profissional do trabalhador: como membro de equipe de ações especiais na corporação, e na condição de líder de um grupo dentro dessa equipe, a prontidão se fazia para ele necessária a todo tempo, mesmo em momento de folga, para salvaguardar sua resposta eficiente e segura em caso de acionamento. Ainda que esse tipo de acionamento em momento de folga seja extremamente raro, a percepção da possibilidade de cometer equívocos em meio a ações complexas e críticas, seja quando for, ampliavam sua autocobrança para não descansar e se entregar integralmente nas atividades cotidianas em momentos de folga. Esse tipo de informação não se fazia presente nos questionários e seria impossível de ser deduzida, mesmo por parte de membros da PRF que acompanham mais intimamente a intervenção realizada. Dada essa realidade, ocorre que o conflito trabalho-família não será resolvido apenas pela redistribuição de trabalho para diminuir o excesso de demandas ou pela reorganização das escalas de trabalho, sendo também necessárias outras ações ainda a serem pensadas em conjunto com os trabalhadores. Verifica-se, portanto, que a multiplicidade metodológica, princípio também da Ergopsicologia, amplia o entendimento sobre os nexos entre o processo saúde-doença e o trabalho, propiciando desenvolver ações também ampliadas e diversas.

Finalmente, por tratar-se de um projeto de estágio, não é de menor importância um aspecto crucial: o estágio constitui-se em espaço de produção de psicólogos e psicólogas que sejam sensíveis e atentos para intervir a partir da compreensão de que o sofrimento individual não se resume ao conteúdo e às vivências afetivas intrapsíquicas, estando ligado também às relações das pessoas com o trabalho. Esta relação deve ser considerada como eixo central de análise e como experiência contínua de normatização. Tal modelo de raciocínio clínico-analítico é essencial para uma prática de maior alcance e consoante à complexidade da saúde mental, seja na atuação de psicólogos em cenários de trabalho, seja em outros cenários sociais, organizacionais e até mesmo contextos de clínica individual.

Esse aspecto é crucial porque temos verificado que o estudante, ao experenciar a clínica individual, muitas vezes é levado a não valorizar as vivências do trabalho tanto quanto as de outros setores da vida. Um caso evidencia isso muito bem: um estudante acolheu uma trabalhadora da assistência social que recorreu ao apoio psicológico com queixas de intenso sofrimento mental. Relata ter perdido a capacidade de resolver problemas por apresentar comportamento impulsivo e irritável perante situações que envolvem demandas típicas do trabalho e que requerem a colaboração da chefia e de colegas, que em sua percepção estão aquém do necessário. Alega sobrecarga de trabalho, angústia, isolamento social no trabalho e na vida pessoal, e crises de choro que acontecem de madrugada, geralmente no domingo, como reflexo da antecipação de situações laborais estressantes com as quais irá se deparar no decorrer da semana. Relata ainda solidão - que se intensificou com a pandemia - e insônia, que teve início há quatro anos, após o término de um relacionamento amoroso. Gosta muito do trabalho, mas deseja trocar de setor em função de haver muitos conflitos interpessoais e de ser demandada para tarefas urgentes que envolvem alto grau de responsabilidade sem prévia pactuação e preparação. Diante do quadro, o estudante propõe a hipótese de que a insônia é decorrente do rompimento do relacionamento amoroso ocorrido anos atrás e que as dificuldades apresentadas no trabalho são decorrentes de falta de habilidades sociais e distorções cognitivas. Sugere, então, que para abordar essas questões seria necessário realizar treino de habilidades sociais, construção de estratégias de coping e modificação das crenças. Durante o relato do caso na supervisão, a orientadora de estágio indaga se ele percebia relações entre as queixas da trabalhadora e aspectos do trabalho. O estudante nega e afirma que as queixas eram, sobretudo, relativas à falta de habilidades sociais. Nesse momento, a orientadora faz algumas reflexões com os estagiários acerca dos inúmeros elementos trazidos pela trabalhadora que possuem relação com o trabalho, tais como as crises que acontecem no domingo quando pensa no trabalho, a sobrecarga, as demandas não previstas e pactuadas, a percepção de que não se sente ouvida e atendida pela chefia, os constantes conflitos no setor onde trabalha. Refletiu-se, então, sobre a importância de relativizar o peso atribuído à falta de habilidade da trabalhadora, e de compreender melhor estes aspectos do trabalho para verificar em que medida estariam contribuindo para o sofrimento apresentado. Ponderou-se também sobre as estratégias propostas pelo estudante para lidar com o sofrimento, que estariam estritamente centradas na modificação de crenças e comportamentos individuais sem, no entanto, cogitar a necessidade de promover a reflexão com a trabalhadora sobre aspectos do contexto, para além do plano individual, que atuam em comportamentos disfuncionais como a irritabilidade e a impulsividade, ou na insônia e no isolamento social relatados. Esta reflexão foi imprescindível para chamar a atenção para o fato de que intervenções como as propostas pelo estudante acabam por culpabilizar o trabalhador pelos problemas enfrentados e atribuir a ele exclusivamente a responsabilidade por resolver os problemas, na medida em que é ele quem deve mudar, e não o contexto. Foi, então, a partir dessas reflexões que o estudante conseguiu reconstruir o sentido das falas da trabalhadora e observar que havia ali, também, uma centralidade do trabalho interferindo nos problemas relatados. Percebe-se que foi necessária uma outra concepção sobre a relação das pessoas com o trabalho, para que o estudante pudesse incorporar mais intensamente a dimensão do trabalho na saúde mental e pudesse analisar o caso de outra forma, pensando outras possibilidades de intervenção para além da mudança comportamental.

Dessa forma, temos visto que estar vigilante aos problemas do trabalho requer uma formação acadêmica que compreende a centralidade do trabalho como um dos eixos da vida (Dejours, 2012), e como um dos determinantes centrais da saúde (Laurell & Noriega, 1989). Daí que essa experiência por nós desenvolvida, tem contribuído para que os estudantes se vejam convocados a desenvolver o olhar e a escuta clínicos direcionados às questões laborais. Outro caso foi bastante ilustrativo sobre a complexidade das relações entre trabalho e saúde mental, e a necessidade de investigação cuidadosa e atenta sobre a vida integral: outra estudante atendera um bombeiro de um batalhão de uma cidade rural de pequeno porte do Estado do Espírito Santo. Queixava-se de ansiedade, alegando, sobretudo, problemas familiares como o disparador dos quadros de ansiedade. Residente de área rural do município, a solidão, a saída dos filhos de sua casa para estudarem em outro estado e a necessidade de convivência com uma esposa com a qual já apresentava alguns conflitos, vinham provocando quadros de ansiedade. No primeiro acolhimento, observou-se que a experiência do trabalho não se apresentava como elemento ansiogênico. Na supervisão, discutiu-se a possibilidade de o trabalho ser, inclusive, uma condição que contribuía para a saúde. Num segundo encontro verificou-se que o cotidiano de trabalho era de fato um momento de elaboração e compensação para o sofrimento vivenciado em momentos de folgas. As reflexões sobre os efeitos positivos do trabalho foram resgatadas numa segunda supervisão, demonstrando um equilíbrio sempre dinâmico da dupla centralidade, da sexualidade e do trabalho, a partir de (Dejours, 2012), de modo a deixar evidenciado que muito provavelmente o quadro que se apresentava nesse momento não significava necessariamente uma trajetória profissional incólume. Num terceiro atendimento, e conhecendo melhor o caso, foi possível identificar alguns eventos causadores de ansiedade que ocorreram também no trabalho e que, aparentemente, estavam relacionados a determinadas características de atividades e contextos ali exercidos, mas também das características do próprio profissional. Os estudantes puderam verificar, então, quão intrincadas são as relações entre o trabalho e o fora-trabalho, de modo a tentar não buscar interpretações prontas e apressadas sobre a saúde mental e o mundo do trabalho.

Revisitando, em suma, as intervenções apresentadas a partir da Ergopsicologia, verificamos inúmeras congruências que permitem afirmar que a oferta de apoio psicológico individual breve, por modalidade online, pode fazer parte das estratégias de intervenções possíveis em Ergopsicologia ou em clínicas do trabalho, desde que atenda a quatro condições: a) ter compromisso ético-político com a busca de emancipação no trabalho e de produção de saúde, sem privilegiar um ou outro caminho de intervenção - intervenção em grupo ou individual, por exemplo; b) alinhar-se mais ao campo epistemológico e conceitual que dá suporte aos diversos caminhos metodológicos experimentados - produções linguageiras discursivas ou uso de escalas, por exemplo - que a um método específico de intervenção; c) espaço para a expressão dos trabalhadores e suas vivências laborais, não as reduzindo a análises individualizantes que muitas práticas de apoio e acolhimento aos trabalhadores incitam; e d) ampliar os canais dialógicos entre os trabalhadores e a gestão, no compromisso das transformações do contexto de trabalho, em vias de produção de saúde. Se tais aspectos forem levados em conta na utilização do apoio psicológico breve online, amplia-se a possibilidade desta estratégia servir como ponto de partida ou instrumento - i.e., como um meio - que viabiliza a elaboração de acordos para se compreender↔transformar o trabalho e suas relações com a saúde. Ademais, o uso desse dispositivo não inviabiliza que outros, já consagrados na literatura, como as ações coletivas explicitadas na Ergologia, na Psicodinâmica do Trabalho ou na Clínica da Atividade, sejam utilizadas antes, durante ou posteriormente à oferta de apoio psicológico online ou presencial.

Verificamos, além disso, que essa modalidade de atendimento possibilitou o acesso a muitos trabalhadores que de outro modo não teriam condições de obter cuidados em saúde mental, sobretudo os que se encontravam em localidades distantes da Universidade. Aliado às ações que vêm se desdobrando a partir das intervenções realizadas, verificamos a necessidade de manter a oferta dessa modalidade de intervenção, não nos furtando de ofertar atendimento psicológico também presencial, bem como de realizar outras atividades tipicamente alinhadas à Ergopsicologia, tais como Grupos de Encontros sobre o Trabalho (Schwartz & Durrive, 2010), entre outros possíveis.

5. Considerações finais

No presente texto apresentamos a experiência de apoio psicológico online para trabalhadores das políticas públicas de segurança e de assistência social. Evidenciamos a pertinência desse tipo de intervenção para a atenção ao trabalhador em sofrimento em situações agudas e imediatas, especialmente aquelas de maior gravidade, as quais podem ser identificadas precocemente, e sobre as quais se pode intervir em momento oportuno para evitar o agravamento. Refletimos sobre a conformidade de tais iniciativas no escopo da Ergopsicologia, desde que a clínica seja assentada na compreensão do sofrimento também a partir da vivência no trabalho, e com foco na ação sobre essas condições associadas ao sofrimento. Refletimos sobre a importância dos elementos trazidos pelos trabalhadores nos atendimentos como fonte de informações que, somadas a outras, fornecem pistas importantes para a gestão sobre as condições de trabalho geradores de sofrimento, e que por isso devem ser objeto de atenção e compromisso quanto à sua transformação. Finalmente, mostramos como esta experiência tem sido importante na formação dos estudantes de psicologia por romper com os modelos tradicionais de clínica psicológica e despertar o olhar clínico para as questões do trabalho envolvidas na saúde mental.

Contudo, nossa reflexão teve alcance limitado em termos da análise dos desdobramentos e efeitos da intervenção não só com relação ao sofrimento vivenciado, mas principalmente com relação aos componentes do trabalho envolvidos nos processos de saúde/ sofrimento/ adoecimento.

As intervenções realizadas sugerem algumas linhas de pesquisa em torno das estratégias e efeitos das práticas de apoio psicológico e suas relações com o trabalho. Dentre elas, destacam-se estudos longitudinais com os usuários do apoio e os setores em que eles atuam, visando averiguar possíveis efeitos de longo prazo entre trabalhadores atendidos pelo apoio psicológico. Outra linha de pesquisa a ser desenvolvida refere-se à investigação mais detalhada entre as categorias profissionais que mais solicitam os atendimentos, como é o caso dos educadores sociais da assistência social, cuja atividade é relativamente menos investigada em comparação com outros profissionais deste setor, mas que demandaram sobremaneira a nossa intervenção.

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Recebido: 01 de Abril de 2022; Aceito: 14 de Julho de 2022

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