Introdução
Em meados do século XX um grupo de jovens artistas plásticos de vanguarda iniciaram um movimento de modernização da azulejaria portuguesa. É importante constatar que este movimento foi iniciado por arquitetos e artistas atentos às mudanças que ocorriam na arquitetura moderna em vários países. Este movimento vindo de fora foi utilizado em edificações, espaços públicos, mobiliário e revestimentos arquitetónicos. Neste último caso, os artistas portugueses começaram a explorar o azulejo como revestimento arquitetónico que logo passou a ganhar mais movimento e características mais modernas e criando assim uma fusão entre a arquitetura e artes plásticas e o azulejo sendo reconhecido como “azulejo de autor”. Na origem, os artistas que contribuíram para a renovação da azulejaria nacional foram: Jorge Barradas, Manuel Cargaleiro e Querubim Lapa. Cargaleiro, em 2016, diz numa entrevista que: “O final dos anos 40 e início dos 50 foi importantíssimo para a renovação da cerâmica e do azulejo em Portugal surgiu esse movimento todo, de interesse pela cerâmica, que já estava a acontecer na Europa com Miró e com o Picasso. E sem haver grandes conhecimentos, porque nesta altura Portugal vivia num isolamento bastante grande em relação aos movimentos artísticos da Europa”. (Oliveira, 2016:1)
É neste contexto modernista que a artista Maria Emília Araújo ou Mariaújo, como assina as suas obras, percorre seu caminho na cerâmica e azulejaria. Em finais de 1959 Maria Emília Araújo se forma na Escola Artística António Arroio onde teve como mestres Querubim Lapa e Estrela Faria.
Após a finalização do curso a artista ingressou como um dos artistas da Fábrica de Cerâmica da Viúva Lamego que mantinha estreita colaboração com artistas plásticos. Segundo o Investigador e Historiador José Meco: “A emergência da arquitetura moderna na década de 50, … permitiu o desenvolvimento de uma geração de ceramistas e pintores menos dependentes da tradição secular do azulejo português, que foram apoiados por Jorge Barradas e por Eduardo Leite na Fábrica Viúva Lamego, a qual desempenhou um papel primordial durante as últimas décadas, pelas facilidades técnicas e de mão-de-obra especializada, que permitiram a criação e a execução de alguns dos trabalhos mais representativos da azulejaria moderna portuguesa.” (Meco, 1993, p.93)
É na Viúva Lamego, a qual a artista convive com outros artistas já mencionados e que inicia sua produção e assume como principal forma de expressão artística os painéis de azulejos. Na linha de modernização que Bordalo Pinheiro já abordara e Jorge Barradas estava a desenvolver, estes painéis com cores fortes e variadas, fugindo ao azul e branco que dominara a produção tradicional, possuem algumas características principais que Maria Emília irá adotar, como formas ou figuras relevadas e mesmo esculpidas e azulejos que são na verdade placas cerâmicas menos estandardizadas que na azulejaria tradicional. Como boa mãe-autora de sua obra, Maria Emília faz questão de pintar azulejo por azulejo e acompanhar todo processo de produção até à boca do forno, à queima e ao resultado final da obra. Seus painéis relevados criam novos espaços a partir do próprio azulejo.
Outra característica importante é o tema da “Mulher”, que é uma constante do seu trabalho. Para a artista, a representação da mulher é a forma que ela encontrou de incorporar na sua obra a memória das mulheres que tanto fizeram parte de sua vida: sua mãe, irmã e tantas outras mulheres que para ela representam a força da natureza. Num seu painel, “Mulher nua no sofá”, 1998, a artista se auto retratou como na grande maioria das suas obras através de mulheres. Para além da figura feminina, em suas obras encontramos uma forte ligação aos países em que a artista viveu. Portugal, EUA, Venezuela, Curaçau.
Lambert (1981: 78) considera que “Os artistas são pessoas que reagem ao que está ao seu redor e que registam as próprias reações em uma “caligrafia” própria - ou pessoas que podem tornar tangíveis e visíveis sua realidade interior e sua imaginação. Como todos nós compartilhamos da realidade quotidiana e todos temos imaginação, podemos quase sempre identificar-nos com o artista e com o que ele fez. Nesse sentido, o artista se expressa por todos nós, ainda que sua criação seja estritamente pessoal.” Esta consideração permite-nos perceber de forma mais profunda o trabalho de Mariaújo.
Neste estudo, as análises desenvolvidas baseiam-se em duas grandes vertentes: sua memória e suas viagens pelos locais onde viveu ao redor do mundo.
Tendo como seus mestres Querubim Lapa e Estrela Faria, a artista conseguiu juntar em sua obra a técnica de moldar de um com as cores alegres da outra, mas pode-se dizer que no conjunto seguiu a inovação de Jorge Barradas. E assim ganhou a sua própria autonomia.
Algumas obras
O edifício Caleidoscópio projetado em 1971 pelo arquiteto Nuno San Payo integra um painel de cerâmica em relevo de autoria de Maria Emília Silva Araújo. Na obra “Homenagem a Lisboa” (1972), o painel de azulejos de cerâmica relevada com 7,5m de altura x 3,2m de largura é composto por 231 placas de cerâmicas em relevo e é a sua obra mais representativa e conhecida, até pela sua localização à beira de uma via de grande trânsito. Apesar de ser uma das suas primeiras obras contém já tudo o que a irá distinguir e diferenciar e constitui um exemplo de excelência de integração na arquitetura.
A azulejaria é marcada por formas curvilíneas com volumes e cores cintilantes e variadas texturas em tonalidades claras e escuras. As cores, vermelho, azul, amarelo e branco, parecem não ter limites na sua expansão. No barroco o azulejo por vezes parecia extravasar a arquitetura e dar-lhe forma, mas aqui, o betão está lá, mas parece se harmonizar bem com as formas e figuras da artista, um casamento perfeito entre materiais de épocas diferentes, o antigo (barro) e o moderno (cimento). Assim como num altar barroco, aqui as figuras parecem exaltar toda a natureza à sua volta, as estranhas plantas que se misturam com os seres agitados. Alguns correm, outros namoram e ali está um que me chama a atenção e mais que isso, me encanta. É a figura a olhar para o céu, um garotinho a soltar um papagaio no ar. Essa figura, diferente de todas as outras, não pelo fato de ser uma criança, mas pelo seu olhar dirigido ao observador. Há um quê de surreal nesta figura!
Em suas obras a unidade é composta de fragmentos de memórias vividas por ela e adotados para seus objetivos estéticos. Nesse sentido, podemos perceber a força retórica de suas imagens que surgem a cada passo.
Sobre os materiais utilizados, é mencionado por Trancoso (2007:23) que: “Os materiais usados já não são atualmente, como o barro tradicional e os óxidos de ferro e cobre. Maria Emília enfatiza o quão dispendioso é o relevo em comparação com o azulejo; implica a execução de formas ou moldes, o uso de muito barro para o enchimento, o recorte das placas com relevo feito antes do vidrado, para que este não estale, etc.
A propósito da obra de Mariaújo no Hospital São Francisco Xavier, em Lisboa, Borges (2017: 72): refere que “Seguindo a prática comum às construções edificadas no Restelo, a clínica desenvolveu nos inícios de 70, um programa decorativo tendo por base a azulejaria e convidando para o efeito artistas reputados na produção cerâmica nacional para revestir grandes áreas exteriores e interiores da unidade assistencial, datando a sua produção de 1973 e 1974”.
Nesta obra, que cobre uma das paredes dos átrios de entrada do Hospital, vê-se um casal de amantes abraçados e rodeados de uma paisagem cósmica. A figura masculina encontra-se em segundo plano numa pose de bailarino clássico a tomar posse da sua amada com um abraço.
Enquanto a figura feminina consente o abraço, o seu olhar forte dirige-se fixamente para o observador. Nesta imagem, o poder da figura feminina, que ao mesmo tempo se deixa levar pelo amor, mas também deseja algo mais do que somente o amor, fixa-se no mundo que ele tem a lhe oferecer, o poder, a conquista, o descobrimento. À volta do casal, o mundo é representado por uma natureza de plantas, flores, luas e estrelas, um cenário que está para além da representação homem, mulher e criação. Este casal num espaço hospitalar está ali para lembrar que mesmo em uma instituição de saúde é possível haver beleza e vivacidade num espaço onde começam vidas e terminam outras.
Nesta obra de 1996, o corpo feminino é apresentado em frações distribuídas de formas casual, mas que podemos ver através de formas curvilíneas no seu todo de corpo feminino. A imagem aqui não representa a beleza feminina, mas a sua condição de mulher total em toda a sua existência e atividade
Aqui a mulher é representada em diferentes facetas ou fases da sua vida. Um lado juvenil e sensual. A plenitude da felicidade e do pensamento e, finalmente, o inevitável envelhecimento. Tudo reunido numa única totalidade.
Na “Mulher no sofá” de 1998, a figura da mulher nua no sofá abraçada ao gato mostra o lado afetuoso. A artista tem uma paixão por gatos, já possuiu vários desses bichanos e se identifica com este animal devido ao seu caráter independente. Aqui vemos a figura da artista representada em um sofá coberto de plantas e ao mesmo tempo em um ambiente intimista doméstico abraçada ao gato. Esta obra foi pintada em uma altura em que a artista vivia em Petrópolis, Rio de Janeiro. E costumava vir a Portugal para visitas e trabalhos como este que foi realizado no seu atelier na Fábrica Viúva Lamego. Ela estava em Lisboa, mas tinha a necessidade de mostrar a sua outra casa que era o Brasil, aqui representado por um sofá aconchegante, suas plantas tropicais e mais a gata Luca que ficou em terras brasileiras.
Já de volta a Lisboa, no ano 2018 Maria Emília continua a sua obra de memórias e viagens. Em “Mata Adentro”, a artista volta às matas tropicais, representadas aqui por um emaranhado de cores e formas que para ela evocam asflorestas que conheceu nas suas longas estadas, não só no Brasil, como na Venezuela e em Curaçau.
Curiosa de descobrir o mundo, a artista gostava de viver no meio da natureza, ‘dava-me energia para a vida’. Numa ilha das Antilhas Holandesas, da minha janela eu alimentava as cabras que apareciam junto da casa. Eu comprava frutas para dar a elas. Adorava este contacto com os bichos, com a natureza, com o viver no mato. Nunca gostei de barulho de cidade”. (Maria Emília em conversa pessoal, janeiro, 2020).
Maria Emília vive atualmente entre Lisboa e Rio de Janeiro e continua a produzir no seu atelier na Fábrica Viúva Lamego.
Conclusão
Ao analisar a obra da artista pude ver a diversidade de criação que existe em suas obras. Em algumas é possível encontrar elementos que a artista ia colhendo nas suas viagens pelos trópicos. Algo que para ela é importante manter vivo em sua memória, suas viagens e lugares onde viveu e passar para o azulejo como uma linguagem plástica. Apesar de trabalhar tanto na cerâmica quanto na azulejaria, parece ser esta segunda opção a que a artista prefere.
Uma vez perguntaram a Maria Emília a definição sobre o que era o azulejo e a artista comentou de forma poética essa questão:
Azulejo é emoção, é êxtase ao tocar beleza, é energia condensada a narrar a nossa alma lusa. Mergulhados na sua dimensão onírica, convivem em harmonia estética batalhas sem fim e juras de amor eterno, heróis e rostos sofridos, miséria e júbilo de fartas colheitas, gente antiga e de agora, o gosto salgado das conquistas ultramarinas, o aroma da clorofila de distantes terras quentes. Nele soa o fado, ecoa saudade funda e a certeza de se atravessarem os tempos. (Araújo, Maria Emília In Silva & Carvalho, 2018:18)
Através de sua obra, a artista Mariaújo nos mostra que seu trabalho consegue ir para além de uma técnica. Tratando não somente de memórias, mas de marcar seu espaço no tempo, na história da arte azulejar.
A sua obra é grande, com trabalhos não só em Portugal e no Brasil, como também na Venezuela, Curaçau, EUA e Angola, e não existe um levantamento exaustivo e devidamente repertoriado e documentado com os modernos meios tecnológicos de alta resolução. Há ainda muito a ser estudado e desenvolvido sobre a obra desta artista.