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CIDADES, Comunidades e Territórios

On-line version ISSN 2182-3030

CIDADES  no.47 Lisboa Dec. 2023  Epub Dec 29, 2023

https://doi.org/10.15847/cct.28306 

ARTIGO ORIGINAL

Desafios ao planeamento dos territórios suburbanos: o planeamento do desenvolvimento territorial na Amadora

Challenges to the planning of suburban territories: the planning of territorial development in Amadora

1Faculdade de Arquitetura, Universidade de Lisboa, Portugal, jcabral@fa.ulisboa.pt

2CIAUD, Centro de Investigação em Arquitetura, Urbanismo e Design, Faculdade de Arquitetura, Universidade de Lisboa, Portugal, cdh@fa.ulisboa.pt


Resumo

As transformações nos processos e padrões de suburbanização em áreas metropolitanas têm sido objeto de estudo associadas aos desafios ao planeamento urbano. O objetivo principal do artigo é abordar os desafios ao planeamento dos territórios suburbanos respondendo a tendências globais em termos dos padrões de urbanização e a uma crise dos sistemas de regulação e de planeamento. A abordagem é apoiada nos debates sobre a urbanização planetária e a condição suburbana como objeto de estudo aplicando o conceito de planeamento do desenvolvimento territorial (“place-based planning”). A discussão contribuiu para a construção de um quadro analítico da evolução do território do município da Amadora na área metropolitana de Lisboa nas suas dimensões urbanísticas e do planeamento. A análise desta área suburbana diversificada e complexa ilustra a utilidade e as possibilidades de uma abordagem orientada para um planeamento do desenvolvimento territorial.

Palavras-chave: urbanização planetária; suburbanização; place-based planning; planeamento do desenvolvimento territorial; Área Metropolitana de Lisboa; Município da Amadora

Abstract

Transformations in processes and patterns of suburbanization in metropolitan areas have been the subject of study associated with challenges to urban planning. The main objective of the article is to address the challenges of planning suburban territories responding to global trends in terms of urbanization patterns and to a crisis in the regulatory and planning systems. The approach is supported by debates on planetary urbanization and the suburban condition as an object of study applying the concept of territorial development planning (“place-based planning”). The discussion contributed to the construction of an analytical framework of the evolution of the territory of the municipality of Amadora in the Lisbon metropolitan area in its urban and planning dimensions. The analysis of this diverse and complex suburban area illustrates the usefulness and possibilities of an oriented approach to territorial development planning.

Keywords: planetary urbanization; suburbanization; place-based planning; territorial development planning; Lisbon Metropolitan Area; Amadora Municipality

1. Introdução

Este artigo reflete o interesse pela investigação sobre o desenvolvimento e o planeamento urbano dos municípios suburbanos da área metropolitana de Lisboa. A investigação tem envolvido estudos a diferentes escalas geográficas (regional, municipal e de bairro) analisando diversos padrões de desenvolvimento urbano (tipológico e morfológico) para a elaboração de projetos de planeamento e de políticas públicas. Os debates recentes sobre as transformações nos padrões e nos processos de urbanização a partir dos anos 1980, documentadas por Brenner e Schmid (2015), levantaram novas questões sobre como abordar as questões do planeamento urbano. Dois aspetos merecem destaque. Um deles diz respeito às características globais dessas transformações e dos seus impactos em diferentes contextos urbanos. A segunda diz respeito às diferentes abordagens ao nível do planeamento urbano, de países, lugares e instituições como resposta a ameaças e desafios com características semelhantes. Olhar para estes dois níveis de debates permitiu uma reconceptualização do papel dos padrões da urbanização para o estudo das regiões urbanas, reposicionando o conceito de subúrbio na perspetiva da política urbana e do planeamento dos territórios suburbanos.

O artigo está dividido em cinco secções. Na sequência desta introdução, a segunda secção aborda o conceito de urbanização, da sua formação e transformação. Um dos principais temas de debate refere-se ao conceito de ‘urbanização planetária’ para enquadrar transformações emergentes, e às características específicas da suburbanização como componente de tendências mais globais, o que leva a uma discussão sobre as escalas de análise adequadas para abordar os desafios ao planeamento dos territórios suburbanos. A terceira secção explora algumas das questões críticas para a prática do planeamento da suburbanização como objeto de estudo, defendendo uma abordagem de planeamento do desenvolvimento territorial (“place-based planning”)1 de forma a integrar mais adequadamente o papel do nível local e da participação dos atores. Na base destes debates e abordagens, a quarta secção identifica os desafios para a prática do planeamento do desenvolvimento territorial, através de uma análise do desenvolvimento e ordenamento do território do município da Amadora, uma área suburbana diversificada e complexa da área metropolitana de Lisboa. O objetivo é identificar desafios para uma nova leitura do território suburbano, utilizando o caso do município da Amadora, para uma reflexão sobre o processo de planeamento ao nível local. A secção final apresenta uma síntese conclusiva e propõe tópicos para investigações futuras.

2. Urbanização planetária e suburbanização

Esta secção discute o conceito de urbanização, para uma compreensão da sua formação e das mudanças na cidade alargada e suburbana (no caso da área metropolitana de Lisboa), de forma a melhor definir e contextualizar o objeto de estudo. A discussão tem como base as reflexões de Henri Lefebvre na década de 1970, a forma como a urbanização foi problematizada por David Harvey (1996) e explorada por Neil Brenner com outros autores (Brenner et al., 2014; 2015; 2017; 2018), questionando o papel e o lugar do urbano na teoria do planeamento e como objeto de investigação. Um dos principais temas de debate refere-se ao conceito de “urbanização planetária” e à caracterização da suburbanização como um “processo” e do suburbanismo como um “modo de vida” (Keil, 2013; Ekers et al., 2012). Estas reflexões levam-nos a uma discussão sobre as escalas de análise adequadas para abordar os desafios ao planeamento dos territórios suburbanos.

O conceito de urbanização planetária aqui utilizado e desenvolvido por Neil Brenner, permite enquadrar as mudanças à escala global das formas e padrões de transformação do território e dos sistemas de produção e regulação do ambiente construído. Os padrões emergentes de urbanização caracterizam-se por formas fragmentadas, concentradas e extensas, de rápido crescimento e com variações, mas também com muitas semelhanças entre países. Estes novos padrões são também um reflexo de desenvolvimentos que ocorreram nas últimas duas décadas nos sistemas de produção e regulação (Brenner e Schmid, 2015, p.172). As mudanças referem-se à desregulamentação dos sistemas financeiros globais e nacionais, à neoliberalização da governança económica global, nacional e local, à revolução digital mundial, à flexibilização dos processos produtivos e à generalização e influência das redes de produção globais (ibid.). Estes realinhamentos criaram um novo quadro regulatório que incentiva investimentos urbanos especulativos, não apenas nos mercados imobiliários e no ambiente construído das principais cidades do mundo, mas também na construção das redes de infraestruturas (ibid., p.173). O novo quadro regulatório ocorre a diferentes escalas e de diversas formas. Swyngedouw (2004) associa a reconfiguração das escalas de regulação ao processo que chama de “glocalização”, que será a combinação dos processos de globalização e das reconfigurações territoriais ao nível local.

Entre as sete teses avançadas por Brenner e Schmid (2015) propondo um quadro epistemológico reflexivo para a abordagem do urbano, a tese 3, que apresenta os “três momentos mutuamente constitutivos” envolvendo a urbanização, é particularmente relevante para o nosso objeto de estudo. Os três momentos são a ‘urbanização concentrada’, a ‘urbanização alargada’ (ou extensiva) e a ‘urbanização diferencial’, e referem-se, respetivamente, (i) à concentração territorial das populações, dos meios de produção, infraestruturas e investimentos, (ii) à transformação dos lugares e territórios na sua relação com os processos de concentração e, (iii) ao resultado da destruição criativa e da produção de espaços urbanos no capitalismo refletindo “várias formas de luta urbana” (ibid., pp.166-169). Como afirma Schmid (2018a, p.592) “informa o contexto mais amplo de um território urbano e traça os efeitos das várias relações e interações mútuas entre centralidades e periferias”. Tais interações são aspetos críticos para o estudo do desenvolvimento dos territórios suburbanos e da conceptualização da suburbanização como processo e como objeto do planeamento. O objetivo aqui é recolocar o papel e o conceito da suburbanização como parte do debate sobre a urbanização planetária como uma “reorientação epistemológica útil” (ibid., p.175), distinguindo e destacando processos gerais e particulares.

Estas considerações refletem a produção de vários autores que se apoiaram no trabalho de Henri Lefebvre para uma compreensão mais alargada da globalização dos processos de desenvolvimento urbano e, em particular, do desenvolvimento dos padrões da suburbanização (ver, por exemplo, Hamel e Keil, 2015; Keil, 2013, 2018; Ekers et al., 2012; Harris e Lehrer, 2018; Mace, 2013; Schmid, 2018b; Lefèvre e Pinson, 2020). Keil (2013) refere-se a um interesse na 'revolução suburbana', definindo “suburbanização como a combinação de um aumento da população da cidade não central e das atividades económicas, assim como da expansão territorial urbana” (ibid., p.9). Voltando à discussão dos níveis e escalas de análise adequadas, Brenner e Schmid (2015, pp.176-177) também comentam na tese 7 que “o urbano é um projeto coletivo em que as potencialidades geradas pela urbanização são apropriadas e contestadas”, enfatizando “o caráter essencialmente político” das suas considerações epistemológicas. Neste sentido, a componente política é central para a nossa análise, pois o planeamento é sobre participação e ação coletiva, devendo a suburbanização ser entendida como o território para a ação no ambiente politizado da cidade alargada.

Estas afirmações necessitam de alguns esclarecimentos, dado que o trabalho de Brenner e Schmid foi objeto de várias críticas. Particularmente importantes foram os comentários de Davidson e Iveson (2015a; ver também 2015b), referindo-se ao caráter redutor atribuído por Brenner e Schmid ao conceito de cidade na teoria urbana que considera o caráter “planetário” da urbanização como determinante, argumentando que a cidade não pode ser vista como um objeto de investigação urbana isolada do processo de urbanização. A argumentação de Davidson e Iveson vai no sentido de defender a relevância da componente política representada pela cidade em constante diálogo com a tensão gerada pelo próprio processo de urbanização.

3. Planeamento da suburbanização e desenvolvimento territorial - algumas questões críticas

A secção anterior fez referência a alguns dos debates sobre o lugar dos processos de urbanização na abordagem da economia política como parte de um processo global, destacando o caso da suburbanização como processo e objeto de planeamento. Assim, tendo discutido os principais conceitos e definido a escala e o objeto de análise, esta secção explora algumas questões críticas para a prática do planeamento no quadro de uma abordagem de planeamento do desenvolvimento territorial. Não sendo exclusivas em relação a contextos particulares, estas questões têm particular relevância para a prática do planeamento dos territórios suburbanos.

Em primeiro lugar, para além dos trabalhos de diferentes autores discutidos na secção anterior, outras contribuições podem ser referidas no sentido de melhor enquadrar o objeto de estudo. A primeira diz respeito à definição de subúrbio avançada por Forsyth (2012) (ver também Harris, 2010) como “construções sociais ou abstrações deliberadas”, dependendo da sua relevância para os estudos urbanos e para o planeamento. Ao analisar a lista compilada pela autora sobre as dimensões-chave para definir os subúrbios, percebe-se o seu amplo espectro (de “localização” a “atividades” e “processo”) e o argumento de que “o subúrbio representa um conceito assumido e viável para descrever o desenvolvimento urbano para além da cidade central” (Forsyth, 2012, p.279). No caso do município da Amadora, o seu caráter suburbano pode estar associado a todas as diferentes dimensões, nomeadamente a de ser um ‘lugar político’ definido pelos limites municipais, onde se desenvolve a prática do planeamento e o desenho das políticas. Um segundo aspeto é que a suburbanização, como fenómeno global (Keil, 2013), é inseparável de um processo de urbanização extensiva envolvendo transformações socio-ecológicas com implicações em termos da mobilidade e das mudanças demográficas, das infraestruturas e da governança. Finalmente, o papel da governança nas áreas suburbanas tem características particulares derivadas da dinâmica da urbanização extensiva e de um “modo de vida suburbano” (ver Ekers et al., 2012) em termos de permanência física e social e de identidade cultural face à cidade central.

Em segundo lugar, a leitura do desenvolvimento urbano nos seus diferentes padrões - as áreas centrais e a cidade extensiva - foi sempre um tema central de discussão sobre o processo de planeamento. Três contribuições merecem especial destaque. A primeira vem da história e da prática do planeamento urbano que é rica em lições sobre como ler e avaliar as expansões urbanas. Tal inclui a teoria dos lugares centrais e a teoria dos sistemas no processo de planeamento, conforme descrito por Hall (1992, particularmente o capítulo 9), e o conceito de legibilidade desenvolvido por Lynch (1960). A questão de como ler e compreender as mudanças nas paisagens urbanas foi mais tarde desenvolvida por Thomas Sieverts (2003) ao defender a necessidade de revisitar as tradições e convenções urbanísticas e ver as novas oportunidades para projetar oferecidas pela “urbanised landscape or the landscaped city” (o caso do Zwischenstadt) que precisa de ser “inteligível, legível e, portanto, imaginável” para a intervenção do planeamento. Particularmente importante foi a identificação de cinco conceitos “como ferramentas para compreender e intervir na cidade”: urbanidade, centralidade, densidade, uso misto e ecologia (Sieverts, 2003, pp.19-43). Em linha com estes interesses, mas numa outra perspetiva, a segunda contribuição vem de Simin Davoudi (2012) ao confrontar o “legado do positivismo” e a sua influência na prática do planeamento, com a emergência de uma abordagem interpretativa do ordenamento do território, necessária para uma compreensão relacional do processo de desenvolvimento urbano. Entre os aspetos-chave que ilustram estes desafios destaca-se a necessidade de uma conceptualização dos tempos futuros num quadro de incertezas e contingências, como uma frente de possibilidades e do uso da evidência para informar (e não determinar) o processo de planeamento (Davoudi, 2012). A terceira contribuição vem dos autores referidos na primeira secção, ao refletirem sobre a condição planetária das tendências de urbanização e as perspetivas para a compreensão do lugar e do papel da vida urbana (Brenner e Schmid, 2015; Brenner, 2000). Particularmente relevantes para a nossa investigação são as três dimensões da urbanização - “práticas territoriais”, “regulação territorial” e “vida quotidiana” - e o papel dos processos sociais e coletivos que conformam os projetos e formas urbanas. As três dimensões derivam da tese de que o tecido da urbanização é multidimensional, associado aos “momentos mutuamente constitutivos” da urbanização concentrada, extensiva e diferencial (Brenner e Schmid, 2015, p.166). Esta associação proporciona uma leitura mais abrangente dos três momentos, destacando e ilustrando os processos que produzem o ambiente construído (práticas territoriais), as regras e procedimentos que conformam estes processos (regulação territorial) e as práticas quotidianas representativas da socialização do espaço urbano (quotidiano) (Brenner e Schmid, 2015, pp.169-172). Um exemplo da aplicação dos métodos e abordagens para considerar e medir as três dimensões é feito no estudo do desenvolvimento urbano do município da Amadora.

Para a prática do planeamento estas reflexões levantam dois tipos de desafios. Um dos desafios refere-se às escalas do planeamento e da tomada de decisão. A questão da escala urbana é crítica para abordar a perspetiva das práticas quotidianas e políticas na construção do espaço urbano e da cidade (ver Nielsen e Simonsen, 2003). Um segundo desafio está ligado às condições para a ação do planeamento - informação adequada e canais de comunicação, participação e avaliação. Ambos os desafios estão associados a preocupações com a eficiência do setor público no planeamento e regulação do desenvolvimento urbano, particularmente em termos do uso e disponibilidade dos recursos públicos. Ambos estão, também, associados ao objetivo de tornar as políticas urbanas mais responsáveis perante a comunidade e os atores locais, promovendo melhor governo e uso dos recursos. A escala adequada e as condições para a ação são, portanto, questões-chave para o planeamento urbano. A teoria e a prática do planeamento têm, ao longo dos anos, integrado, de forma diferenciada, as noções geográficas de lugar, espaço e localidade para enquadrar adequadamente as especificidades dos territórios e dos contextos urbanos e sociais. Dentro deste quadro de análise, os conceitos operativos de “place development” (Healey, 2009), “place-based” (Barca, 2009), “place-shaping” (Lyons, 2007) e “place-making” (Friedmann, 2010) têm sido utilizados como ferramentas complementares no planeamento e desenho das políticas. Para os objetivos deste artigo, o conceito do local, ou do territorial, e a forma como tem sido aplicado na formulação das políticas, particularmente na política de coesão, e no planeamento, é útil para abordar as questões que aqui foram levantadas.

O conceito de planeamento do desenvolvimento territorial (“place-based planning”) (ver nota de rodapé 1) está associado a preocupações de territorialização das políticas no sentido de garantir que estas e os programas de desenvolvimento respondem de forma efetiva aos problemas locais e regionais, contribuindo para a descentralização da capacidade de decisão e de gestão e a melhor utilização dos recursos (Portas et al., 2011, pp.258-259). O conceito ganhou expressão nas políticas da União Europeia após o Relatório Barca, que defendeu que as conexões entre lugar e política enquadram duas componentes críticas para a eficiência da política de coesão - a promoção da inclusão social e a integração de recursos, tanto financeiros como institucionais (Barca, 2009; ver também Barca et al., 2012). No entanto, como o conceito indica, o que importa é que as políticas de base territorial incorporem uma abordagem para o desenvolvimento que reconheça que o contexto e as necessidades de cada cidade e região oferecem oportunidades únicas para o desenho e implementação das políticas (Beer et al., 2020).

A associação do conceito “place-based” à teoria e à prática do planeamento não tem sido, porém, muito investigada. Farnum e Kruger (2008) e Kruger e Williams (2007) produziram trabalhos aplicando uma abordagem de base territorial para o planeamento e conservação de áreas naturais. A transcrição de conceitos “place-based” para o planeamento municipal e local é também enfatizada por Healey (2009) quando se refere à importância das “agendas de desenvolvimento local” (“place development agendas”) na construção de estratégias integradas de desenvolvimento. Untaru (2002) é mais objetivo, questionando a prática de um sistema de zonamento por ser pouco adaptado a cenários de incerteza. O autor defende um “quadro regulatório centrado no local” (“place-focused regulatory framework”) em que as decisões sobre o uso do solo são apoiadas numa governança local e num sistema de informação sobre as características e o melhor uso dos espaços.

4. Leitura da suburbanização para um planeamento do desenvolvimento territorial - o caso da Amadora

Esta secção aborda os desafios em passar à ação os conceitos para uma abordagem de planeamento do desenvolvimento territorial, através da análise de um território suburbano. A ação no planeamento é determinada pelos objetivos e pela estratégia informada e resultante das narrativas e da leitura do território. O caso do município da Amadora é utilizado para identificar processos de urbanização e construir uma leitura dinâmica e relacional para uma estratégia de planeamento multiescalar numa área suburbana complexa da área metropolitana de Lisboa. A secção está dividida em duas partes. A primeira parte apresenta um retrato do desenvolvimento e do ordenamento do território do município da Amadora. A segunda parte analisa o Plano Diretor Municipal (PDM) e o processo da sua revisão pelo município e propõe um quadro de análise das transformações urbanas e uma abordagem de planeamento do desenvolvimento territorial.

4.1 Um retrato do desenvolvimento e do planeamento urbano do município da Amadora

O município da Amadora, criado em 1979, altura em que deixou de ser uma freguesia, com o mesmo nome, do município de Oeiras, é um dos 18 municípios que compõem a área metropolitana de Lisboa (AML). O rápido crescimento urbano da Amadora está relacionado com a expansão urbana da cidade de Lisboa para noroeste, com início principalmente na década de 1950, ao longo das redes ferroviária e rodoviária (Figura 1) (Nunes, 2011, pp.175-201).

Fonte Figura 1  DGT, 2018, 2021; OpenStreetMap, 2015  Localização do município da Amadora face a Lisboa 

Com a eletrificação da rede de caminho de ferro entre Lisboa e Sintra em 1957, as deslocações casa-trabalho tornaram-se mais rápidas e o processo de suburbanização do território da Amadora foi extensivo e de grande dimensão. Entre 1960 e 1970, a taxa de crescimento populacional foi de 137%, continuando a crescer nas duas décadas seguintes. Os valores da população residente evidenciam claramente um processo de suburbanização onde a cidade de Lisboa perde população e a AML quase duplica os seus valores demográficos. No último censo (2021), a população residente da AML era de cerca de 2,8 milhões e a do município da Amadora rondava as 171 mil, correspondendo a 6% da população da AML. Com uma área de 23,78 km2, o município da Amadora é o município português com maior densidade populacional (7221,2 hab./km2). (Tabela 1).

INE, 2021

Fonte Tabela 1 Evolução da população residente e percentagem em relação à AML entre 1960 e 2021, nos municípios de Amadora e Lisboa 

Neste processo de suburbanização, a expansão do centro urbano mais antigo, localizado próximo da linha de caminho de ferro, dá-se com a criação de novas urbanizações, numa primeira fase junto às estações ferroviárias da Damaia e Amadora e junto à fronteira com Lisboa (Figura 2a). Posteriormente, surgiram novos conjuntos habitacionais, alguns deles em áreas com pouca aptidão para construção, como último recurso para as necessidades das famílias com baixos rendimentos (Figura 2b). No início do novo milénio, o território da Amadora caracterizava-se por um tecido urbano heterogéneo, fragmentado, em muitas situações de má qualidade urbana, com muitos vazios entre os espaços urbanizados (Figura 2c). As duas últimas décadas proporcionaram uma melhoria das acessibilidades, nomeadamente com ligações rodoviárias aos eixos regionais, que promoveram novas urbanizações aproveitando a utilização do transporte individual e, mais recentemente (2004), o alargamento da rede de metro de Lisboa, que permitiu o adensamento das áreas consolidadas através do preenchimento de vazios e da reabilitação de quarteirões na zona central da Amadora.

Elaboração própria a partir de fotografia aérea

Fonte Figura 2 Evolução do tecido urbano do município da Amadora entre 1960 e 2020 

Como referido no início, o objetivo principal do artigo é identificar os desafios para uma nova leitura do território suburbano, utilizando o caso do município da Amadora, para uma reflexão sobre o processo de planeamento ao nível local. Interessa, neste sentido, fazer uma breve caracterização do sistema de planeamento antes de introduzir os instrumentos e as regras de planeamento que conformaram o território urbano da Amadora.

O atual sistema de planeamento do território português é o resultado de um processo legislativo iniciado em 1974 pelo regime democrático e que criou as condições para que as autarquias locais definissem os objetivos de desenvolvimento e o planeamento do uso do solo no território da sua jurisdição. O sistema de planeamento estabelece uma hierarquia em termos dos instrumentos de planeamento, atribuindo ao nível municipal a tarefa de promover e implementar a maioria dos planos e regulamentos estatutários. Os municípios têm a responsabilidade de produzir planos de uso do solo, os Planos Municipais de Ordenamento do Território (PMOT) para o território da sua jurisdição, constituídos pelo Plano Diretor Municipal (PDM), obrigatório para todos os municípios, e pelos planos de urbanização e planos de pormenor.

Apesar de o território da Amadora estar inserido na extensão e expansão natural da área urbana de Lisboa, não foi objeto dos planos de urbanização equivalentes aos promovidos no município de Lisboa, o que afirma a sua condição suburbana, mesmo ao nível das instituições formais de planeamento. O plano de urbanização de 1949 foi a exceção para a área urbana central na envolvente da linha de caminho de ferro e das estações ferroviárias. Ao longo dos anos a imagem e o carácter suburbano do território acentuaram-se, caracterizados por formas polarizadas e diferenciadas de expansão urbana na sua maioria promovidas por empreendedores privados e como resultado de assentamentos informais (CMA, 2016) (Figura 2).

Na sequência da publicação da legislação que definiu os princípios e as regras para a elaboração dos planos de ordenamento do território, a década de 1990 assistiu à conclusão dos PDM para todos os 278 municípios de Portugal continental. Em 1994, o PDM da Amadora foi homologado após um período de recolha e organização de informação de base, atribuição partilhada por todos os municípios que, pela primeira vez, produziram um levantamento territorial completo para apoiar o planeamento do uso do solo. Em 2016, o município da Amadora aprovou o início de um processo de revisão do PDM de 1994. A justificação para a revisão foi baseada, de acordo com a legislação, na necessidade de adequação do plano às mudanças ambientais, económicas, sociais e culturais entretanto ocorridas e descritas no “Relatório do Estado do Ordenamento do Território da Amadora” (CMA, 2014). O PDM de 1994, o Relatório de 2014 e outros levantamentos e documentos produzidos pelo município para informar a revisão do PDM, constituíram o material utilizado para abordar os objetivos deste artigo: propor um quadro de análise do desenvolvimento dos territórios suburbanos e das oportunidades para uma abordagem de planeamento do desenvolvimento territorial, utilizando o caso da Amadora.

4.2 O Plano Diretor Municipal, o processo de revisão e um quadro de análise

Conforme acima referido, a análise do processo de planeamento da Amadora é informada pelos conteúdos e realizações do PDM de 1994 e pelos parâmetros definidos para a sua revisão com base numa avaliação da implementação do plano e das transformações entretanto ocorridas. Os termos de referência do documento para a revisão do PDM identificaram seis tipos de alterações que influenciaram a estrutura e funcionamento económico, demográfico e social do território, a sua posição na AML, a reconfiguração do espaço urbano e as condições para a eficiência da gestão municipal (CMA, 2016). Um dos principais objetivos estratégicos do PDM de 1994 era a “correção das situações urbanísticas deficientes projetando, a partir das possibilidades identificadas no modelo de ordenamento um espaço urbano mais equilibrado e qualificado” (CMA, 2016, p.8). No entanto, este objetivo foi considerado como de longo prazo e ambicioso, dado “que a reconversão urbanística e funcional de um subúrbio já muito enraizado exige um espaço temporal alargado que supera o horizonte temporal do plano” (CMA, 2016, p.8).

CMA, 2016, pp 8-14 e 17-19

Fonte Tabela 2 Termos de referência para a revisão do PDM da Amadora de 1994  

A Tabela 2 lista os seis tipos de mudanças associadas a transformações em áreas-chave, juntamente com os cinco objetivos para a revisão do PDM especificados nos termos de referência. Os dois últimos objetivos são particularmente importantes, pois representam um desafio às tradições do planeamento físico. Por um lado, porque abordam e integram as questões da construção da identidade urbana da Amadora e, por outro, porque procuram incorporar plataformas e procedimentos de participação cidadã e de condições de representação comunitária nas estruturas de planeamento. As duas etapas, a produção do PDM de 1994 e os estudos para sua revisão, que ocorreram mais de vinte anos depois, também podem ser associadas a duas abordagens distintas do planeamento referidas na secção anterior, respetivamente o legado positivista e a emergência de uma posição interpretativa (Davoudi, 2012), seguindo a tendência para a adoção de modelos de planeamento mais estratégicos. Em Portugal a evolução do sistema de planeamento reflete estas tendências gerais, desde os instrumentos de controlo da expansão e do zonamento das cidades promovidos pelo governo central até 1974, aos planos municipais e regionais, integrando no planeamento objetivos de desenvolvimento. Neste sentido, a revisão dos PDMs da década de 1990 indicia a passagem de um quadro regulatório, caraterístico dos primeiros planos de ordenamento do território, para a utilização de instrumentos de gestão que se pretendem mais integrados em relação aos interesses em presença (públicos e privados), procurando garantir princípios de participação, juntamente com a avaliação do processo de planeamento2. A discussão sobre a reforma do sistema de planeamento em Portugal acompanha debates semelhantes noutras culturas de planeamento, como reação e adaptação ao que também é considerada uma crise do sistema de planeamento ocidental3. Assim, as caraterísticas particulares do desenvolvimento e ordenamento da suburbanização na Amadora e na área metropolitana serão também parte das grandes tendências e mudanças globais (ver seções anteriores). Nomear e estruturar uma leitura dessas tendências, das possíveis mudanças e da sua operacionalização, são componentes críticas da nossa análise4.

A Tabela 3 segue este raciocínio e propõe um quadro de análise para uma leitura do planeamento do território do município da Amadora. A coluna um refere-se às dimensões identificadas por Brenner e Schmid (2015) (acima referidas) para uma compreensão multidimensional da urbanização representada por (i) as “práticas territoriais” que transformam e estruturam o ambiente construído e a paisagem urbana, (ii) as formas de “regulação territorial” constituídas pelas regras, padrões e procedimentos de gestão que regulam a produção do ambiente construído, e (iii) o “quotidiano” e as práticas quotidianas que representam e conformam o processo de socialização e apropriação do espaço urbano.

(1) Brenner e Schmid (2015) e elaboração própria

Fonte Tabela 3 Quadro de análise para uma leitura do planeamento do território suburbano do município da Amadora 

As colunas dois e três referem-se ao processo de planeamento na Amadora, e dizem respeito, respetivamente, à produção e revisão do seu PDM e às principais questões a ser levantadas para a adoção de uma abordagem de planeamento interpretativo para o desenvolvimento territorial. Para além disso, o conteúdo da Tabela 3 ganha coerência organizado por linha e pelas dimensões da urbanização. Não estando concluída, à data da finalização deste artigo, a revisão do PDM de 1994, e de forma a ilustrar as características contrastantes das duas abordagens, selecionámos aquilo que podemos considerar como aspetos chave para o planeamento do território da Amadora e a sua articulação com áreas e temas críticos para uma abordagem de desenvolvimento territorial. Ao nível da abordagem do planeamento do uso do solo, associada ao “legado positivista”, seguindo Davoudi (2012), que foi a matriz que conformou a primeira geração de PDM, a principal preocupação do município foi estabelecer regras de zonamento para todo o território, regulando os direitos de construção e de propriedade (uma das principais preocupações era a regularização dos assentamentos informais) e criando as condições infraestruturais para o desenvolvimento económico e social. A abordagem de planeamento do desenvolvimento territorial está associada à adoção de uma posição interpretativa (de novo, seguindo Davoudi), uma vez que, como já referido, a capacidade de resposta às agendas de desenvolvimento local requer mudanças ao nível das abordagens e dos métodos, requisito que precisa de ser avaliado no local e informado por narrativas e leituras dedicadas. Nesse sentido, como tentaremos explicar em seguida, a inovação nas redes de infraestruturas e de equipamentos, a promoção de centralidades e a consolidação dos bairros serão bons exemplos para ilustrar os desafios de uma abordagem de planeamento do desenvolvimento territorial.

A primeira dimensão, das práticas territoriais, através das quais o uso do solo é intensificado assim como as infraestruturas de conetividade e as transformações “socio-metabólicas” (Brenner e Schmid, 2015, p.170), relaciona-se com a transformação e estruturação do ambiente construído e da paisagem urbana em diferentes momentos e sujeitos a diferentes decisões do planeamento. O que importa nesta dimensão é a forma como as redes de infraestruturas, como instrumento das políticas de planeamento, são projetadas para serem integradoras dos espaços urbanos, dando coesão aos territórios face a dinâmicas globais de fragmentação, como explicam Graham e Marvin (2001) (ver Figura 2 para a Amadora)5. O PDM de 1994 é paradigmático desta abordagem, com um modelo de ordenamento do território organizado em quatro sistemas, (i) estrutura viária, (ii) estrutura verde, (iii) oito áreas estratégicas de intervenção urbana e, (iv) seis unidades operativas de planeamento e gestão para a implementação do PDM. Esse modelo pressupõe a permanência e o funcionamento de uma estrutura organizacional articulada entre departamentos municipais e órgãos descentralizados da administração central para o seu desenho e implementação. Os novos termos de referência com cinco objetivos para a revisão do PDM (ver Tabela 2) têm, além disso, uma natureza transdisciplinar, exigindo uma abordagem interdepartamental e uma leitura transversal do desenho e do planeamento das redes de infraestruturas e de equipamentos orientadas para a comunidade. Num desenvolvimento desta abordagem, Young et al. (2011) e Young e Keil (2014) sublinham a importância da criação de redes locais de infraestruturas para responder aos desafios da “conectividade e vulnerabilidade” nas zonas urbanas de transição da “in-between city” (uma noção introduzida por Sieverts, 2003) atravessadas pelas infraestruturas e corredores viários que ligam os centros urbanos históricos e os polos industriais.

A segunda dimensão, da regulação territorial, refere-se às regras e procedimentos de gestão que intervêm na produção do ambiente construído (Brenner e Schmid, 2015) e diz respeito ao papel do planeamento através dos seus instrumentos, como os planos de composição urbana ou os contratos de urbanização entre agentes públicos e privados. A Figura 3 mostra o mosaico de conjuntos urbanos resultantes de diferentes processos e iniciativas (planeamento do setor público, loteamentos e urbanização privada, habitação social, autoconstrução ilegal, autoconstrução precária) cuja regulação em termos do uso do solo e dos direitos de propriedade e da integração territorial de conjuntos urbanos polarizados e áreas funcionais foi a principal tarefa de planeamento do PDM de 1994.

Elaboração própria

Fonte Figura 3 Mosaico de conjuntos urbanos (planeamento do setor público, loteamentos e urbanização privada, habitação social, autoconstrução ilegal, autoconstrução precária) 

No âmbito do PDM foi também identificado e classificado um conjunto de localizações centrais, tendo em conta a concentração e diversidade de funções urbanas, suportadas por boas acessibilidades, nomeadamente transportes públicos e com espaços públicos de qualidade (Figura 4). Em 2010, um novo estudo mostrou que a hierarquia destes lugares centrais não sofreu mudanças significativas, mas seis novas centralidades foram identificadas como resultado da expansão das áreas urbanas (CMA, 2018). Por outro lado, como não se verificou um aumento demográfico neste período, este reforço da rede de centralidades resultou numa melhor prestação dos serviços prestados aos habitantes. Na revisão do PDM, a estratégia do município passa pela consolidação dessas centralidades, de forma a construir uma cidade mais equilibrada e inclusiva, sobretudo aquelas de maior importância em termos populacionais e funcionais. Algumas dessas áreas são referidas no Relatório do Estado do Ordenamento do Território (CMA, 2014) como tendo perdido vitalidade económica e social. Através de ações de reabilitação urbana o objetivo é promover o seu dinamismo e reforçar o seu papel funcional (CMA, 2012).

Elaboração própria a partir de dados da CMA, 2018

Fonte Figura 4 Centralidades no município da Amadora (1994 e 2010) 

O foco no papel das centralidades representa uma mudança no planeamento bidimensional pelo uso do solo e o zonamento, que estruturou o PDM de 1994, para novas formas de regulação integrando forma e funções urbanas enquadradas por objetivos de acessibilidade e coesão. O conceito de centralidade “implica concentração e diversidade de funções, tendo como condições de suporte a acessibilidade a mobilidade diferenciada, com acesso através de transporte público e com oferta de espaço público” (CMA, 2018, p.32). Este conceito orientou o “Levantamento Funcional do Município” realizado pela Câmara Municipal da Amadora para o PDM de 1994 e posteriormente atualizado em 2010 (ver CMA, 2018, pp.30-35). O conceito de centralidade deve ser, porém, mais abrangente, entendido como parte da abordagem dialética construída por Henri Lefebvre (1991, pp.321-340) no quadro do 'direito à cidade’ garantindo as condições de vida das comunidades das periferias face à importância dos centros urbanos formais (ver também Marchal e Stébé, 2013). Neste sentido, para uma abordagem de planeamento do desenvolvimento territorial, a integração do papel das centralidades e do espaço público implica enquadrar os padrões de mobilidade e de acessibilidade aos serviços, infraestruturas e espaço público nas regras do zonamento e da forma urbana.

Por fim, a terceira dimensão, do ‘quotidiano’ e das práticas quotidianas, representativas do processo de socialização do espaço urbano (Brenner e Schmid, 2015), corresponde ao processo de planeamento e governança e à integração e participação cidadã. A participação dos cidadãos e dos agentes interessados no processo de planeamento está prevista na legislação nas fases de consulta e discussão pública. Este procedimento formal representa uma visão de curto prazo do papel da participação do público e das partes interessadas nos processos de planeamento. As condições de participação pública e envolvimento dos cidadãos na gestão das cidades e nas decisões políticas registaram grandes avanços em todo o mundo e Portugal não é exceção. Em 2014 o município da Amadora afirmou, como uma das quatro principais opções de planeamento, “modernizar o quadro de gestão municipal, promovendo a transparência, a qualidade dos serviços e a aproximação da Câmara Municipal aos Cidadãos” (CMA, 2016, p.15). Além disso, entre os cinco objetivos estratégicos na revisão do PDM, um era construir uma identidade urbana para a Amadora como cidade “na sua diferenciação urbana e diversidade sociocultural” e outro era aprofundar as formas de governação e gestão do planeamento urbano, prosseguindo “novas formas de relacionamento com os diversos atores sociais, económicos, culturais e com os cidadãos em geral“ (CMA, 2016, p.19).

Para o planeamento do desenvolvimento territorial, as tarefas em termos das dimensões do “quotidiano” para garantir uma sociedade mais participativa exigem, por um lado, a produção e o acesso a informações territoriais e de planeamento adequadas por meio de plataformas colaborativas dedicadas e, por outro lado, a criação de condições para formas efetivas de participação e colaboração no processo de planeamento. Essas considerações reforçam o papel do lugar não apenas como espaços para acesso a serviços e redes, mas como espaços com forma e escala (Friedmann, 2010, p.152). Este foi o foco do argumento de John Friedmann (2010, p.161) “making place is everyone’s job”, chamando a atenção para a estrutura e a identidade à escala do bairro6. O desafio para o planeamento do desenvolvimento territorial será o de criar condições para a construção de bairros como “projetos territoriais” (Madden, 2014, p.480)7. O município da Amadora pode ser um caso exemplar na promoção do planeamento através de projetos para bairros que criem estrutura e condições para processos participativos de base territorial. A Figura 5 mostra a diversidade de formas e de conjuntos urbanos associados a comunidades distintas com as suas características e qualidades particulares. A ideia de planeamento ao nível do bairro através de projetos como estratégia de promoção da coesão territorial está também em linha com os novos limites das freguesias locais com competências de “serviços de proximidade” (Henriques et al., 2020; Costa e Silva, 2015) geridos por estruturas descentralizadas do planeamento municipal. Este processo de reorganização administrativa, levado a cabo no município da Amadora de forma singular e diferenciada dos restantes municípios (Pereira et al., 2015), recuperou ainda as delimitações de unidades de gestão e planeamento previstas no Plano Diretor Municipal (Costa e Silva, 2015; CMA, 2012a).

Elaboração própria e parte integrante de CMA, 2018

Fonte Figura 5 Diversidade de formas e de conjuntos urbanos 

5. Síntese conclusiva

O principal objetivo deste artigo foi abordar os desafios ao planeamento dos territórios suburbanos enquadrando, ao mesmo tempo, tendências globais em termos de mudanças nos padrões de urbanização. Localizadas nas periferias urbanas e como espaços críticos da expansão das áreas metropolitanas, as formações suburbanas podem ser consideradas paradigmáticas para o estudo e a prática de um planeamento urbano e territorial mais eficaz. Além disso, as lógicas globais que conformam os padrões de urbanização e a sua gestão exigem uma compreensão adequada das particularidades de cada formação suburbana. Esta abordagem foi informada por uma revisão dos debates sobre o conceito de urbanização planetária e dos seus críticos afirmando a sua condição política (secção 2) e pelos debates que enquadram a condição suburbana como objeto de estudo para a prática no planeamento e para a aplicação do conceito de planeamento do desenvolvimento territorial (secção 3). Estes debates contribuíram para a construção de um quadro analítico integrando a diversidade das dimensões da urbanização e as particularidades do processo de ordenamento do território na Amadora, ilustrando a utilidade de uma abordagem de planeamento do desenvolvimento territorial (“place-based planning”) (secção 4).

Para além destas considerações, outras lições podem ser retiradas. Em primeiro lugar, planeamento do uso do solo e planeamento do desenvolvimento territorial, conforme aqui apresentados, representam duas abordagens distintas, mas complementares, com implicações em relação à organização do processo de conceção e implementação dos planos e à maturidade e práticas das instituições de planeamento. A perspetiva do planeamento do uso do solo assume um processo ‘top-down’ que reflete a estrutura administrativa municipal, o que significa que as diferentes dimensões da urbanização (práticas territoriais, regulação territorial e vida quotidiana) estão afetas a diferentes departamentos que gerem, de forma autónoma, nomeadamente em termos de prioridades e prazos, as infraestruturas, os projetos urbanos e os processos de consulta pública. Por outro lado, a perspetiva territorial só pode ser eficaz na base da articulação dos diferentes projetos (redes de infraestruturas e equipamentos, centralidades e bairros) e da sua conceção e gestão com contributos ‘bottom-up’ que garantam a integração e a colaboração institucional e comunitária.

Em segundo lugar, as possibilidades das duas abordagens (planeamento do uso do solo e planeamento do desenvolvimento territorial) e da sua articulação com as dimensões da urbanização têm uma relação direta com o debate “cidade versus urbanização” de Davidson e Iveson (2015a), na resposta a Brenner e Schmidt (2015) (ver secção 2), ao chamar a atenção para o imperativo da relação dialética entre cidade e urbano. Neste sentido, a abordagem de base territorial reforça a relevância da componente política do planeamento integrando as agendas para o desenvolvimento local que não podem ser só competência do Estado e das estruturas municipais, como escreveu John Friedmann (2010, p.161) “making place is everyone’s job”.

Finalmente, para tirar o melhor partido das oportunidades para uma abordagem de planeamento do desenvolvimento territorial, o acesso e a organização da informação territorial para as práticas comunicacionais são aspetos fundamentais. Faz alguns anos que as instituições e as autarquias locais têm acesso a dados digitais urbanos e a programas informáticos para análise espacial para caracterizar o seu território e produzir planos municipais. No entanto, muitos destes dados, baseados principalmente em informações administrativas, censos recorrentes e estatísticas, acabam por ser uma caixa negra acessível apenas às instituições que detêm estas informações. Neste sentido, a recolha de dados obtidos de várias fontes (por exemplo, sensores, agentes locais, projetos académicos e de investigação científica) com vista a uma compreensão compartilhada do território aberta à comunidade é uma componente crítica para o desenho de uma estratégia de planeamento ‘bottom-up’ apoiada nas redes de infraestruturas locais, nas centralidades e nos bairros.

Agradecimentos

Este trabalho só foi possível com o apoio de Deolinda Costa, João Carlos Antunes, João Carlos Silva e Susana Pereira, da Câmara Municipal da Amadora. Os autores agradecem aos editores e aos dois revisores anónimos pela análise, comentários e sugestões que permitiram melhorar significativamente o manuscrito inicial.

Este trabalho foi financiado por fundos nacionais através da FCT - Fundação para a Ciência e a Tecnologia, I.P., no âmbito do Projeto Estratégico com a referência UIDB/04008/2020

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1 O termo “place-based planning” é aqui traduzido como “planeamento do desenvolvimento territorial”, associando o planeamento como um processo ao desenvolvimento territorial (Portas et al., 2011, pp.258-259). A perspetiva de territorialização das políticas (tradução livre de “place-based policies”) é um tema recorrente nos documentos de diferentes governos e da UE, associado à eficiência do planeamento territorial, à subsidiariedade das políticas e à melhor utilização dos recursos públicos (ver Barca, 2009; Barca et al., 2012 e Beer et al., 2020).

2Expresso na Lei nº 48/98, de 11 de agosto (Lei de bases da política de ordenamento do território e de urbanismo) e no seu desenvolvimento jurídico, alterado pelas Leis nº 54 /2007, de 31 de agosto e nº 31/2014, de 30 de maio (Lei de bases gerais da política pública de solos, de ordenamento do território e de urbanismo).

3Sobre este tema ver a introdução de Ponzini e os artigos do número temático da European Planning Studies de 2016.

4Neste sentido concordamos com o argumento de Idalina Baptista (2011) de necessidade da desconstrução de uma narrativa sobre Portugal como um “Unplanned Country” baseado em evidência e literatura ‘despolitizada’.

5Esta referência à organização e à abordagem política do papel das infraestruturas é também o tema do livro de Amin e Thrift “Seeing Like a City” (2017) em que propõem uma interpretação das cidades como 'living things' feitas de redes construídas pela ação dos diversos atores.

6O conceito de bairro é aqui entendido, associado ao processo de urbanização, “como um esquema sócio-espacial com significado para as pessoas que conhecem os seus limites”, correspondendo “à dimensão de território ideal para a reivindicação coletiva. Esta especificidade do bairro torna-o, em determinados contextos, uma unidade politicamente importante” conforme explicado e ilustrado por Crespo (2012, pp.65-74) (ver também Mendes et al., 2012).

7Como escreve David Madden “I want to use the concept of spatial projects in a more general way, to signify coordinated, continuous, collective campaigns to produce and format space according to identifiable logics and strategic goals, pursued by specific actors utilizing particular techniques” (Madden, 2014, p.480). Para uma análise crítica do conceito de “neighbourhood planning” ver Madanipour (2001) e Davoudi e Madanipour (2015).

Recebido: 17 de Outubro de 2022; Aceito: 28 de Junho de 2023

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