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Revista Portuguesa de Medicina Geral e Familiar
Print version ISSN 2182-5173
Rev Port Med Geral Fam vol.34 no.2 Lisboa Apr. 2018
CLUBE DE LEITURA
Poderá a continuidade de cuidados diminuir as admissões hospitalares urgentes?
Can the continuity of care reduce urgent hospital admissions?
Ana Rente*, Diana Tomaz*
*Médica interna de Medicina Geral e Familiar. USF Jardins da Encarnação
Tammes P, Salisbury C. Continuity of primary care matters and should be protected. BMJ. 2017;356:j373. doi: 10.1136/bmj.j373.
Introdução
Em muitos países tem-se assistido a um aumento das admissões hospitalares em contexto de urgência. Grande parte destas poderia ser evitada através duma abordagem efetiva em ambulatório. A solução tem passado pelo aumento do acesso aos cuidados de saúde primários (CSP) através da implementação de centros de atendimento complementar e do prolongamento do horário de funcionamento. Todavia, estas medidas têm demonstrado um impacto negativo na satisfação dos doentes e na continuidade dos cuidados, especialmente nos doentes crónicos.
Até à data nenhum estudo examinou o benefício que a continuidade de cuidados tem no padrão de utilização dos CSP. Analisam todas as causas de admissão hospitalar em contexto de urgência em vez de diferenciarem as condições preveníveis através da prestação de CSP de qualidade.
Este estudo teve como objetivo averiguar se a continuidade de cuidados por parte do médico de família (MF) influencia a admissão hospitalar de idosos em condições geríveis em ambulatório – ambulatório-sensíveis.
Método
Trata-se dum estudo retrospetivo observacional transversal onde se usou uma base de dados representativa dos doentes utilizadores dos CSP ingleses, cujos dados se cruzaram com os de outra base relativa aos hospitais ingleses.
Foram incluídos doentes dos 62 aos 82 anos que tiveram pelo menos dois contactos com um MF entre abril de 2011 e março de 2013.
O outcome foi o número de admissões de condições ambulatório-sensíveis para cada doente, tendo-se estabelecido 22 situações com base numa revisão literária, como, por exemplo, gastroenterites, infeções respiratórias superiores, hipertensão e complicações de diabetes mellitus.
A continuidade de cuidados foi avaliada através do Usual Provider of Care Index Score (UPCIS), definido como a proporção de contactos do doente com o seu médico mais regular. Um doente com dez contactos com MF, mas apenas seis com o mesmo médico, teria um score de 0,6.
Resultados
Dos 263.829 doentes de 200 clínicas que cumpriam os critérios de inclusão e de exclusão, 230.472 tiveram pelo menos dois contactos com o MF no período analisado. Em média, cada um destes teve 11,4 contactos com o MF e uma continuidade de cuidados de 0,61.
O grupo com baixa continuidade de cuidados abrangeu 52.550 doentes (22,8%), o de média 96.902 (42,1%) e o de grande 81.020 (35,2%). Os grupos eram idênticos em termos de idade, género e estado socioeconómico. Os doentes do grupo de baixa continuidade de cuidados tiveram em média mais contactos com MF do que os doentes dos outros grupos (13,11 comparado com 11,34 e 10,37, respetivamente, nos grupos de média e grande continuidade de cuidados).
Em média, cada doente teve 0,16 admissões hospitalares por condições ambulatório-sensíveis durante os dois anos e 89,57% não tiveram nenhuma admissão.
A continuidade de cuidados foi inferior nas clínicas com mais médicos, tendo sido de 0,59 nas clínicas maiores e de 0,70 nas mais pequenas. Verificou-se que uma continuidade de cuidados elevada se associou a menos admissões hospitalares para condições ambulatório-sensíveis.
Os doentes mais idosos, com mais comorbilidades, que tiveram mais referenciações para os cuidados hospitalares ou mais contactos com os MF, apresentaram mais admissões hospitalares de condições ambulatório-sensíveis do que outros utentes (p<0,001). As mulheres tiveram menos admissões por estas causas, ao contrário dos doentes com maior dificuldade socioeconómica (p<0,001). Após ajuste destas covariáveis, os indivíduos com elevada e média continuidade de cuidados apresentaram, respetivamente, menos 12,49% (IC95%, 9,45%-19,29%; p<0,001) e 8,96% (IC95%, 5,63%-14,22%; p<0,001) admissões por condições ambulatório-sensíveis em comparação com o grupo de baixa continuidade.
De uma forma geral, em todos os doentes com pelo menos dois contactos com um MF, um aumento de 0,2 no UPCIS associou-se a uma redução de 6,22% (IC95%, 4,87%-7,55%; p<0,001) das admissões hospitalares para condições ambulatório-sensíveis.
Os grandes utilizadores dos CSP tiveram menos continuidade de cuidados e mais admissões hospitalares de condições ambulatório-sensíveis. Apresentaram uma média de UPCIS de 0,56 (comparado com 0,69 nos menos utilizadores) e 0,36 admissões (comparado com 0,04 nos menos utilizadores). Constatou-se ainda que a ligação entre a continuidade de cuidados e as admissões hospitalares foi maior para os grandes utilizadores.
Conclusão
De acordo com os autores deste estudo, a continuidade de cuidados, razão pela qual muitos médicos escolheram a MGF, além de ser importante para os doentes correlaciona-se com um menor número de admissões hospitalares de condições ambulatório-sensíveis.
Este artigo realça a importância da continuidade de cuidados, evidenciando o seu papel no desenvolvimento de estratégias para a redução das admissões hospitalares, principalmente dos grandes utilizadores dos cuidados de saúde.
Comentário
A pertinência deste estudo remete-nos para um dos maiores problemas do nosso sistema de saúde: a utilização excessiva dos serviços de urgência (SU), muitas das vezes por condições geríveis nos CSP.
Este estudo associa a utilização excessiva do SU por condições ambulatório-sensíveis à continuidade de cuidados, um dos pilares da MGF. Esta constitui, também, um aspeto importante em termos de cuidados preventivos, de satisfação dos utentes, de eficiência das consultas e de redução dos custos.1-2 No entanto, tem sido uma variável difícil de definir e avaliar,3 sendo que vários estudos se depararam com grandes limitações devido a definições inconsistentes e a desafios metodológicos complexos.3-5 Alguns concluíram que não existe evidência suficiente para afirmar que a continuidade de cuidados uniformemente, melhora os cuidados.4-6 No entanto, outros estudos verificaram que uma maior continuidade de cuidados leva a menos episódios de urgência,7 mais cuidados preventivos,8 menos internamentos,9 melhor controlo de doenças crónicas10 e menos uso das unidades de cuidados intensivos.11
O presente artigo examinou apenas as situações com maior probabilidade de serem preveníveis pela prestação de CSP de qualidade e a sua associação ao grau de utilização dos centros de saúde, o que é uma vantagem perante a literatura existente que se limita a analisar as causas de admissão hospitalar urgente.12 O estudo concluiu que nos doentes com pelo menos dois contactos com o seu MF houve uma redução de 6,2% nas admissões hospitalares para condições ambulatório-sensíveis. Observou ainda que os grandes utilizadores dos CSP tinham menos continuidade de cuidados e mais admissões hospitalares de condições ambulatório-sensíveis. Pensando na realidade portuguesa, estes resultados parecem fazer sentido, considerando que os utentes mais utilizadores provavelmente serão observados por um maior número de médicos diferentes.
Em Portugal, os custos com as admissões hospitalares e os gastos no serviço de urgência têm um grande impacto na despesa do SNS, tendo havido um aumento de 38,1% nos episódios de urgência de 1986 para 2015.13-14
As atuais listas de 1.900 utentes criam uma barreira à acessibilidade, com repercussões ao nível da qualidade de cuidados, nomeadamente em termos de tempo disponível para consulta e para investir na continuidade de cuidados. Todos estes aspetos são obstáculos para um seguimento individualizado adequado.
Por outro lado, as políticas de saúde nacionais têm-se focado no aumento do acesso aos CSP, em especial à custa dos regimes de atendimento complementar e não da consulta do próprio MF. Este estudo reforça que não é este o caminho que conduzirá à solução da problemática dos SU, uma vez que os resultados revelam um impacto desfavorável quando a consulta é realizada por outro médico que não o próprio MF, na qual prevalecem contactos informais e impessoais. É essencial questionar estas medidas no que concerne não só aos seus eventuais efeitos negativos na saúde dos doentes, mas também ao aumento do consumo de recursos e respetiva repercussão económica.
É necessário desenvolver estratégias que permitam reforçar o acesso à saúde e aperfeiçoar o acompanhamento longitudinal dos doentes, que só será possível com listas adequadas a uma população cada vez mais envelhecida, promotoras de uma relação médico-doente efetiva, baseada na confiança no profissional de saúde. É imperativo desenvolver políticas que reduzam o uso desadequado do SU, o que passa pela educação da população, quer em grande escala, com envolvimento dos media através de campanhas publicitárias lideradas por profissionais de saúde, quer através de contactos individuais com estes, onde os CSP ganham um relevo especial.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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12. Tammes P, Salisbury C. Continuity of primary care matters and should be protected. BMJ. 2017;356:j373. [ Links ]
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14. Administração Central do Sistema de Saúde. Ministério da Saúde: relatório e contas 2015 [Internet]. Lisboa: ACSS; 2016. Available from: http://www.acss.min-saude.pt/wp-content/uploads/2016/09/Reletorio_e_Contas_2015.pdf [ Links ]
Conflitos de interesse
As autoras declaram não ter conflito de interesses.