Introdução
A hipertensão arterial (HTA) é uma doença crónica e progressiva, constituindo um dos principais fatores de risco para doenças cardiovasculares, nomeadamente doença cardíaca isquémica e doença cerebrovascular isquémica e hemorrágica. A HTA está associada a um risco significativo de morbilidade e mortalidade, que pode ser potencialmente minimizado com a deteção precoce e tratamento adequado.1
A intervenção ao nível do estilo de vida revela-se um fator preponderante no tratamento desta patologia, recomendando-se medidas como a adoção de hábitos alimentares saudáveis, a prática regular de exercício físico, a manutenção de um peso adequado e a cessação tabágica. (2-3 Quando esta abordagem se revela insuficiente para controlar adequadamente a pressão arterial, a terapêutica farmacológica anti-hipertensiva deve ser considerada. (2 Existe uma variedade de classes farmacológicas que reduzem a pressão arterial através de diferentes mecanismos de ação, salientando-se a classe dos antagonistas do recetor da angiotensina II (ARA), comummente utilizados na prática clínica devido ao seu distinto perfil de segurança e efeito anti-hipertensivo. (4 Os ARA ligam-se ao recetor da angiotensina II tipo 1, inibindo, assim, o sistema renina-angiotensina e a sua cascata de efeitos de contração arteriolar e retenção de sódio. (5-7 Atualmente existem oito ARA de uso clínico em Portugal - olmesartan, losartan, valsartan, irbesartan, eprosartan, candesartan, telmisartan, azilsartan medoxomilo - que possuem entre si semelhante estrutura e atividade química, mas ligeiras diferenças ao nível da sua farmacocinética. (5,7-8 Os efeitos colaterais desta classe são pouco comuns, mas podem incluir cefaleia, tontura, fadiga, tosse, náusea, dispepsia, edema periférico e erupção cutânea. (5,9-10
O presente relato pretende dar a conhecer um diagnóstico raro nos cuidados de saúde primários (CSP) e, dessa forma, sensibilizar o médico de família (MF) para uma nova hipótese diagnóstica perante um quadro de diarreia crónica.
Descrição do caso
Mulher de 65 anos, de nacionalidade portuguesa, doméstica e autónoma nas atividades de vida diária. Vive com o marido numa moradia própria com água canalizada, mas com acesso a água do poço. Apresenta, como antecedentes pessoais, hipertensão arterial sem lesão de órgão-alvo, dislipidemia, esteatose hepática, osteopenia a nível lombar, patologia nodular benigna da tiroide e macrocitose de etiologia idiopática. A utente está medicada com esomeprazol 20 mg (um comprimido de manhã em jejum), olmesartan 20 mg (um comprimido ao pequeno-almoço) desde 2012, ácido acetilsalicílico 100 mg (um comprimido ao almoço), carbonato de cálcio 1500 mg e colecalciferol 400 U.I. (um comprimido ao jantar) e sinvastatina 40 mg (um comprimido após o jantar). A utente desconhece alergias ou intolerâncias medicamentosas ou alimentares. Consumo de 24 g de álcool por dia; nega outros consumos (tabaco ou drogas). Apresenta antecedentes cirúrgicos de apendicectomia com 20 anos de idade, correção de hérnia inguinal bilateral há 20 anos, correção de fístula anal há 15 anos e facoemulsificação de cataratas bilateralmente em agosto e outubro de 2019, sem outros internamentos. Sem outros antecedentes pessoais de relevo. Antecedentes familiares de pai falecido aos 75 anos por acidente vascular cerebral, mãe falecida por neoplasia gástrica com 68 anos, sem outros antecedentes familiares de relevo. A utente apresenta os rastreios oncológicos atualizados e sem alterações, incluindo o rastreio do cancro colorretal, realizado por estudo endoscópico em agosto de 2018. Tem o Programa Nacional de Vacinação atualizado, incluindo vacinação anual contra a gripe.
Em abril/2020 iniciou quadro de diarreia que motivou onze avaliações médicas no período de dezassete dias: três em contexto de consulta aberta da unidade de saúde familiar, três teleconsultas (dado o contexto da pandemia COVID-19) e cinco no serviço de urgência do centro hospitalar da sua área de residência.
A utente relatava queixas de diarreia com cerca de um mês de evolução, com seis a dez episódios por dia de dejeções aquosas, de pequeno volume, por vezes com muco, mas sem sangue. As múltiplas dejeções não tinham relação com as refeições e ocorriam sobretudo durante o período noturno. Associadamente apresentava cólica abdominal, náuseas, vómitos alimentares, astenia progressiva e perda ponderal percecionada pela utente, mas não quantificada. A utente em nenhum momento apresentou febre, cãibras, fraqueza muscular, alterações cutâneas, visuais ou outra sintomatologia. Desconhecia contacto com conviventes doentes. Ainda, da história clínica salienta-se o facto de ter acesso a água de poço sem estudo de salubridade prévio e contacto com galinhas e cão com vacinação atualizada. A utente negava alterações dos hábitos alimentares e consumo de lacticínios não pasteurizados. A utente negava também viagens recentes.
No exame físico das várias avaliações apresentava-se com bom estado geral, hemodinamicamente estável e sem sinais de desidratação. O abdómen era mole, depressível, encontrava-se timpanizado, com dor difusa e ligeira nos quadrantes inferiores, mas sem sinais de irritação peritoneal. Ao exame objetivo, em nenhum momento, apresentou outros achados de relevo.
Ao longo das múltiplas avaliações a utente foi medicada com probióticos, antidiarreicos, procinéticos, soros polieletrolíticos, multivitamínico, inibidores da bomba de protões e antiácidos, sem reposta terapêutica.
No decorrer das avaliações efetuadas no serviço de urgência, a utente foi submetida a múltiplos estudos analíticos, que não apresentaram alterações relevantes (hemograma, parâmetros inflamatórios, pesquisa de SARS-CoV-2, bioquímica com função renal e hepática).
Paralelamente, em ambulatório, o estudo foi complementado com avaliação dirigida às fezes: estudo parasitológico e bacteriológico (pesquisa de salmonella, shigella e campylobacter, exame cultural, identificação e TSA), que revelou negativo. Ainda: foi solicitada a repetição do estudo imagiológico (endoscopia digestiva alta e baixa), que não foi realizado dada a decisão de internamento ainda no decurso do estudo.
Na última visita à urgência, a utente foi internada no serviço de medicina interna do hospital de referência para estudo etiológico do quadro clínico.
Do estudo efetuado em internamento destaca-se, analiticamente, uma ligeira elevação das enzimas hepática (TGO de 45 UI/L e TGP de 51 UI/L), ligeira trombocitose de 405 103/µL, hipoalbuminemia de 3,4 g/dL, discreto pico na fração alfa 1 na eletroforese de proteínas. Sem outras alterações analíticas, incluindo parâmetros inflamatórios, função tiroideia e renal, ionograma, doseamento vitamínico (ácido fólico e vitamina B12), serologias víricas (HIV-1 e 2 e anti-HCV negativo; não imune a HBV e herpes simplex 2; imune a herpes simplex 1, CMV, VZV, sarampo e EBV); urina tipo II normal; radiografia do toráx e abdominal (aerocolia) sem alterações; parasitológico das fezes sem alterações; coprocultura negativa para pesquisa de salmonella, shigella, campylobacter, e. Coli 0157 e yersina enterocolítica; pesquisa de SARS-CoV-2 negativa.
No decorrer do internamento, a suspensão da terapêutica com olmesartan por tendência para perfil hipotensivo resultou numa melhoria do padrão de eliminação intestinal (fezes mais moldadas, em quantidade e frequência reduzida e ausência de dejeções registadas no período noturno). A utente teve alta hospitalar quatro dias após a data de internamento com o diagnóstico de enteropatia sprue-like induzida pelo olmesartan, medicada para ambulatório com domperidona 10 mg em SOS e butilescopolamina 10 mg em SOS, mantendo a restante medicação habitual à exceção do olmesartan. Ainda: à data de alta, o estudo dos parâmetros da calcitonina, gastrina, peptídeo intestinal vasoativo, ASCA, anticorpos antitrasnglutaminase IgA/G, anticorpos citoplasma neutrófilo (MPO e PR3) e anticorpos anti-sacaromyces ainda se encontravam em curso, revelando-se posteriormente negativos, com exceção da calprotectina fecal (937 µg/g), que correspondia a um estado inflamatório intestinal grave. A utente ficou orientada para consulta externa de gastroenterologia. Dada a evolução favorável do quadro teve alta após a primeira consulta, com indicação para vigilância de sinais e sintomas e ajuste terapêutico com suspensão da estatina e reforço das medidas de estilo de vida para controlo de fatores de risco cardiovascular.
Atualmente, passado um ano desde o início do quadro, a utente mantém vigilância pelo seu MF. A utente encontra-se estável, sem registo de novas intercorrências do foro gastrointestinal ou outros sistemas. Uma vez assintomática, a utente não pretende a realização de estudo endoscópico, mantendo-se em vigilância de sinais e sintomas, com os fatores de risco cardiovascular controlados com cuidadosas medidas de estilo de vida.
Comentário
A diarreia crónica, caracterizada pela alteração da consistência das fezes e o aumento da sua frequência durante pelo menos quatro semanas, acarreta um importante impacto na qualidade de vida. (11 Dada a complexidade da fisiopatologia da diarreia e o amplo leque de diagnósticos diferenciais, uma história clínica detalhada é o ponto de partida na orientação do clínico na determinação da sua etiologia. Paralelamente, o estudo complementar de diagnóstico deve ser considerado para apoiar a identificação do local de origem ou do mecanismo fisiopatológico subjacente ao processo de diarreia crónico. Entre os diagnósticos diferenciais para diarreia crónica importa distinguir entre diarreia osmótica (e.g., por intolerância à lactose), diarreia secretora (e.g., VIPoma, carcinoide, gastrinoma), síndromas de má absorção (e.g., doença celíaca, doença de Whipple, sprue tropical), doenças inflamatórias intestinais, colite isquémica, doença maligna, infeciosa e medicamentosa. (12-13 A Tabela 1 pretende representar as recomendações da British Society of Gastroenterology disponíveis nos CSP para o estudo da diarreia crónica no adulto. (11
Entre as causas medicamentosas de diarreia crónica salienta-se o olmesartan, que foi associado a casos de enteropatia sprue-like. A sintomatologia pode surgir meses ou anos após o início da terapêutica anti-hipertensora com o olmesartan. As formas mais frequentes de apresentação são a diarreia crónica, a perda ponderal não intencionada e o desconforto abdominal. (4-5,13 Sem características analíticas patognomónicas destaca-se pelos achados histológicos no estudo endoscópico ao nível do intestino delgado, com achatamento, ou mesmo atrofia, das vilosidades duodenais, assemelhando-se aos da doença celíaca. Distingue-se desta última pela ausência de marcadores sorológicos (anticorpos antitransglutaminase e endomísio) e inexistência de resposta a uma dieta sem glúten. A suspensão do ARA resulta numa melhoria significativa do quadro de diarreia/gastrointestinal e resolução progressiva dos achados endoscópicos. (5,7,13 Por este motivo, este é um diagnóstico de exclusão com uma resposta favorável à prova terapêutica com suspensão do ARA em curso. A patogénese desta enteropatia, apesar de ainda não totalmente esclarecida, considera-se que compreenda uma resposta inflamatória imunomediada com linfocitose intraepitelial, espessamento do colagénio subepitelial e inflamação da lâmina própria. (7,10,12-13 Este fenómeno não é exclusivo do olmesartan, existindo vários relatos associados a outros ARA (telmisartan, valsartan, losartan, irbesartan). (5,7,14
Em suma, este caso ilustra a importância de uma anamnese completa e detalhada, incluindo a atualização da listagem da medicação habitual, sem esquecer de mencionar medicamentos não sujeitos a receita médica, produtos de ervanária ou outros consumos. Pretende, ainda, alertar para a possível inclusão do diagnóstico de enteropatia sprue-like induzida pelo olmesartan nas hipóteses diagnósticas de um utente com diarreia crónica e com antecedentes pessoais de HTA sob ARA, mesmo que o início dessa prescrição tenha anos de evolução. Assim, o MF é o médico mais habilitado para levantar a suspeita diagnóstica, dado ser conhecedor dos antecedentes do utente e gestor da sua terapêutica. (15 Sendo também característica da disciplina de medicina geral e familiar a prestação de cuidados continuados, longitudinalmente ao longo da vida dos utentes, caberá ao MF o acompanhamento, com consequente reavaliação deste quadro. (15 Neste caso em particular deverão ser vigiadas queixas gastrointestinais, a evolução ponderal e a reintrodução alimentar nos casos em que foi recomendada a evicção de determinados alimentos. Ainda: estudos sugerem uma reavaliação analítica (recaindo sobre a vigilância de parâmetros analíticos alterados durante a fase ativa de enteropatia) e imagiológica (incluindo biópsias duodenais) entre dois a cinco meses. (10,12 Por fim, um novo desafio prende-se com o controlo tensional, devendo ser promovida a adoção de medidas de estilo saudável e, se insuficientes, evitando a reintrodução de fármacos da mesma classe farmacológica, mas optando por outros com bom perfil de tolerância e controlo tensional, seja inibidores da enzima de conversão da angiotensina, bloqueadores dos canais de cálcio ou bloqueadores beta. (6,12
Agradecimentos
As autoras agradecem à Dra. Liliana Mota por todos os ensinamentos, apoio e exemplo ao longo deste percurso.