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Revista Portuguesa de Medicina Geral e Familiar

Print version ISSN 2182-5173

Rev Port Med Geral Fam vol.40 no.2 Lisboa Apr. 2024  Epub Apr 30, 2024

https://doi.org/10.32385/rpmgf.v40i2.13658 

Estudos originais

Abordagem e orientação de pessoas trans e não binárias nos cuidados de saúde primários: experiência e conhecimento

Approach and guidance of trans and non-binary people in primary health care: experience and knowledge

João Monteiro1 
http://orcid.org/0000-0002-3847-8013

Alexandra Ferreira1 

Bernardo Ramos1 

Beatriz Dantas1 

Maria Inês Couto1 

Jéssica Vieira1 

José Moreira1 

Marco Coelho1 

Mercedes Fernandes1 

Pedro Santos1 

Rodolfo Rezende1 

Sara Fernandes1 

Luísa Russo2 

Miguel Saraiva3 

1. Estudante de Mestrado Integrado em Medicina. Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar, Universidade do Porto. Porto, Portugal.

2. Médica Interna de Medicina Geral e Familiar. USF Valbom, ULS Santo António. Porto, Portugal.

3. Médico Interno de Endocrinologia e Nutrição. ULS Santo António. Porto, Portugal.


Resumo

A prevalência de pessoas assumidamente trans e não binárias tem vindo a aumentar, sendo que no mundo hodierno estima-se representarem 0,39% e 1,19% da população mundial, respetivamente. Deste modo, torna-se cada vez mais imperativo que os cuidados de saúde primários estejam preparados para receber e orientar esta população nas suas necessidades de saúde gerais e específicas. Neste sentido, este trabalho pretende estudar o conhecimento dos profissionais de saúde e a sua abordagem aos utentes trans e não binários nas Unidades de Saúde Familiar adstritas ao Centro Hospitalar Universitário do Porto, tendo sido enviado um questionário online à população em estudo. Constatou-se que, embora exista um significativo contacto entre médicos internos e especialistas de medicina geral e familiar com pessoas trans e não binárias na prática clínica, o grau percecionado de conhecimentos e de formação acerca das necessidades específicas desta população parece ser extremamente diminuto. É, assim, fulcral o investimento na formação pré-graduada, bem como na formação pós-graduada.

Palavras-chave: Trans; Não binário; Cuidados de saúde primários; Disforia de género

Abstract

The prevalence of openly trans and non-binary people has been increasing, and, in today's world, it is estimated that they represent 0.39% and 1.19% of the global population, respectively. Thus, it becomes increasingly imperative that primary health care physicians are prepared to receive and guide this population, in their general and specific health needs. In this sense, this work intends to study the knowledge of health professionals and their approach to trans and non-binary people in the primary care facilities associated with Centro Hospitalar Universitário do Porto, via an online questionnaire that was sent to the population under study. It was found that, although there is significant contact between residents and specialists in general and family medicine with trans and non-binary people in clinical practice, the perceived degree of knowledge and training about the specific needs of this population seems to be extremely small. It is, therefore, crucial to invest in pre-graduate training, as well as post-graduate training.

Keywords: Trans; Non-binary; Primary health care; Gender dysphoria

Introdução

A mais recente décima primeira versão da Classificação Internacional de Doenças define incongruência de género como “uma incongruência marcada e persistente entre o género experimentado e o sexo atribuído” e engloba termos como trans e não binário.1

Não há, em Portugal, estudos epidemiológicos sobre a prevalência de pessoas transgénero, mas tem-se verificado um aumento na procura de cuidados de saúde por esta população. (2 Em contexto dos cuidados de saúde primários (CSP), os resultados de um estudo a nível nacional destacam que 25,3% das pessoas trans experienciou pelo menos um episódio de discriminação e 26,2% dos profissionais de saúde referiram na consulta não ter conhecimento suficiente acerca de saúde trans, sendo incapazes de aconselhar estes utentes, comparativamente com apenas 13,8% que reportaram ter muito conhecimento sobre o assunto3 Ante a procura de cuidados de saúde primários por parte de utentes trans e não binários, os profissionais de saúde devem estar familiarizados sobre as especificidades de saúde desta população, nomeadamente no que concerne às particularidades da história clínica, exame objetivo, eventual referenciação para os cuidados de saúde secundários, promoção de saúde sexual, rastreios oncológicos e preservação de fertilidade. (4-5

Este trabalho pretende estudar o conhecimento dos profissionais de saúde e a sua abordagem aos utentes trans e não binários nas Unidades de Saúde Familiar (USF) adstritas ao Centro Hospitalar Universitário do Porto (CHUPorto).

Métodos

Realizou-se um estudo transversal, com intenção analítica, durante o mês de março/2022.

Este estudo teve como população alvo os(as) médico(as) interno(as) e especialistas em medicina geral e familiar (MGF) dos Agrupamentos de Centros de Saúde (ACeS) Porto Ocidental e Gondomar - 322 profissionais, de acordo com a informação do Ministério da Saúde disponível online. O recrutamento de participantes decorreu no período definido através da partilha do questionário online pelos pares. O questionário foi divulgado por partilha de pares com o objetivo de chegar a toda a população. Este questionário incluiu questões qualitativas, de respostas simples Sim/Não, e questões quantitativas, com recurso a uma escala ordinal de Likert variando entre 0 (“Não tenho qualquer conhecimento/experiência quanto ao assunto”) e 6 (“Tenho extenso conhecimento/experiência quanto ao assunto”). Tratou-se de um questionário desenhado pelos autores do estudo especificamente para a execução do mesmo, não validado nem testado previamente em grupo piloto. Não foram recolhidos dados demográficos dos participantes, excetuando a sua categoria profissional (interno de formação específica ou especialista) e o ACeS onde exerciam a sua atividade profissional (Porto Ocidental ou Gondomar). As perguntas eram de resposta obrigatória e inquiriam sobre o grau de experiência profissional com pessoas trans e sobre o grau de conhecimento científico na abordagem a esta população. O questionário aplicado pode ser consultado integralmente no Anexo 1.

A análise estatística foi efetuada com recurso ao software IBM® SPSS® Statistics (v. 25). As variáveis categóricas foram apresentadas como números absolutos e percentagens, não tendo havido necessidade de recategorização de variáveis, e as variáveis contínuas, por seguirem uma distribuição não normal (testada através do teste de Kolmogorov-Smirnov e observação do histograma), foram expressas como mediana e amplitude interquartil. Para analisar a comparação das respostas entre os médicos internos e os médicos especialistas foram realizados os testes Qui-quadrado de Pearson para as variáveis categóricas e Mann-Whitney para as contínuas. O nível de significância estatística utilizado foi p<0,05.

A Comissão de Ética do CHUPorto dispensou a emissão de parecer para o presente estudo (n.º 016-DEFI/016-CE) por não se tratar de um estudo que envolva utentes.

Resultados

Obteve-se um total de 93 respostas, o que corresponde a uma taxa de resposta global de 28,9%. A proporção de respondedores especialistas foi de 51,6%. A maioria dos participantes pertencia ao ACeS de Gondomar (59,1%), correspondendo a uma taxa de resposta deste ACeS de 34,4%; a taxa de resposta no ACeS Porto Oriental foi de 23,5%.

Verificou-se que 76,3% dos participantes se consideravam familiarizados com os termos “pessoa trans” e “pessoa não binária” e 84,9% com o termo “disforia de género”. A proporção de participantes que já tinha prestado cuidados de saúde a pessoas trans foi de 67,7%, sendo inferior a proporção dos participantes que referiram acompanhar regularmente utentes com esta característica (31,2%). Quanto ao contacto em contexto de prática clínica com pessoas não binárias, a proporção foi de 30,1% e de acompanhamento regular em consultas de MGF de 12,9% (Tabela 1).

Tabela 1 Respostas dos participantes ao questionário divulgado 

O contacto clínico com pessoas trans foi mais frequente no subgrupo do(as) especialistas do que no do(as) interno(as), 81,3% e 53,3%, respetivamente, p=0,004. E o mesmo se verificou relativamente às pessoas não binárias, 39,6% e 22,2%, respetivamente, p=0,04. No entanto, os(as) interno(as) estão mais familiarizados com o termo “disforia de género”, 95,6% comparativamente a 75,0%, p=0,006. Não houve diferenças estatisticamente significativas quanto à familiarização com os termos pessoa trans e não binária, p=0,197 (Tabela 2).

Tabela 2 Comparação das respostas ao questionário, entre os médicos internos e médicos especialistas 

O grau de conforto da população amostrada em ser médico(a) assistente de pessoas trans foi avaliado com 5,0 (4,0-6,0) pontos. No entanto, a formação pré e pós-graduada nesta área foi avaliada com uma mediana de 1,0 ponto e o grau de conhecimento sobre os rastreios oncológicos preconizados nesta população com uma mediana de 2,0 pontos (Tabela 1).

Não foram encontradas diferenças significativas nos dois subgrupos [interno(as) e especialistas] quanto ao conforto em ser médico(a) assistente [5,0 (4,0-6,0) em ambos os grupos, p=0,693], formação pré [1,0 (0,0-1,0), 0,5 (0,0-1,0), p=0,557] e pós-graduada [1,0 (0,0-2,0), 1,0 (0,0-1,0), p=0,326], familiarização com os conceitos, conhecimentos semiológicos específicos [e.g., particularidades da história clínica: 2,0 (1,0-3,5), 3,0 (2,0-4,0), p=0,069], opções de tratamento [e.g., conhecimento sobre terapêutica hormonal: 1,0 (1,0-2,0), 2,0 (1,0-2,75), p=0,219], rastreios oncológicos [2,0 (1,0-3,0), 2,0 (1,0-3,75), p=0,645], referenciação [4,0 (2,0-4,0), 3,0 (2,0-5,0), p=0,876] e vigilância preconizada (Tabela 2).

Discussão

No presente estudo elabora-se uma análise descritiva e comparativa do conhecimento, experiência e conforto dos médicos internos e especialistas em MGF das USF adstritas ao CHUPorto, em relação ao contacto e acompanhamento de utentes trans e não binários.

O facto de 67,7% e 30,1% dos participantes considerarem terem prestado cuidados de saúde a pessoas trans e não binárias, respetivamente, evidencia uma prevalência expressiva, o que se coaduna com a crescente prevalência de pessoas trans ou não binárias, segundo dados internacionais. (6 No entanto, o referido contacto não se parece traduzir em seguimento ativo, dado que apenas 31,2% e 12,9% dos médicos referiram proporcionar acompanhamento regular a utentes trans e não binários, respetivamente, na sua consulta de MFG. Apesar de este estudo demonstrar que 76,3% dos participantes estão familiarizados com a terminologia “pessoa trans” e “pessoa não binária”, o grau reportado de formação pré [1,0 (0,0-1,0) e 0,5 (0,0-1,0)] e pós-graduada [1,0 (0,0-2,0) e 1,0 (0,0-1,0)] sugere que este conhecimento não decorreu da formação técnico-científica dos profissionais nesta área.

Um estudo anterior centrado na perceção dos utentes trans sugeriu a falta de conhecimento do(as) médico(as) na abordagem de questões específicas, em contexto da MGF, (3 o que pode ser uma das explicações plausíveis para o diferencial observado entre o contacto e acompanhamento posterior destes indivíduos. Estudos internacionais publicados recentemente7-8 também apontam para a necessidade de melhoria do conhecimento dos médicos de MGF em matéria de saúde trans, de forma a melhorar o acesso desta comunidade aos serviços de saúde e promover a qualidade dos serviços prestados. Além do exposto, uma experiência negativa com as instituições e serviços de saúde ou com os(as) profissionais de saúde, decorrente do estigma e de estereótipos sociais associados a pessoas trans e não binárias, é passível de contribuir para o abandono do acompanhamento clínico, uma vez que pode afetar a relação médico-utente. De acordo com as recomendações da Estratégia de Saúde para as pessoas Lésbicas, Gays, Bissexuais, Trans e Intersexo, da Direção-Geral da Saúde, devem ser prevenidos os entraves à afirmação da identidade de género e da expressão da sexualidade dos utentes. (9

Na análise comparativa entre médico(as) interno(as) e especialistas encontraram-se diferenças estatisticamente significativas no conhecimento do termo “disforia de género”, estando o primeiro grupo mais familiarizado, e no contacto com pessoas trans e pessoas não binárias, apresentando o segundo grupo frequências superiores. Os(as) médico(as) interno(as) de MGF integram uma geração provavelmente com maior sensibilização e de mais fácil acesso a normas de orientação clínica sobre pessoas com diversidade de género, enquanto que os(as) médico(as) especialistas apresentam mais prática clínica e inerente maior experiência no acompanhamento de utentes em consulta, nomeadamente com estas características. (10

Relativamente às variáveis contínuas não se constataram diferenças significativas entre os dois subgrupos ao nível da qualidade da formação pré e pós-graduada em cuidados de saúde específicos para pessoas trans e não binárias, tendo estas revelado ser praticamente inexistentes nos curricula, com valores a figurar no extremo negativo da escala: 1,0 (0,0-1,0) e 1,0 (0,0-2,0), respetivamente. Sendo a formação dos profissionais de saúde, de um modo geral, conjuntamente com a promoção da literacia em matéria de saúde de pessoas trans e não binárias, fulcral para a melhoria do acesso aos cuidados de saúde e da qualidade da sua prestação, (9 infere-se que estes resultados se revestem de particular importância no âmbito do presente estudo - é necessário apostar na formação dos profissionais de saúde nesta área.

Uma das responsabilidades de um(a) médico(a) de MGF é proporcionar um ambiente seguro de prestação de cuidados, que possibilite corresponder às expectativas e necessidades dos utentes. (11 No caso de indivíduos trans e não binários, o momento da anamnese e exame físico pode aumentar a sua disforia e, desta forma, a segurança e o conforto tornam-se requisitos fundamentais para a diminuição do mal-estar dos utentes e para fortalecer a relação médico-utente. O profissional de saúde deve utilizar uma linguagem adequada à identidade de género e à terminologia preferencial da pessoa em questão, comunicando antecipadamente a importância que as perguntas da anamnese e as manobras mais sensíveis do exame objetivo assumem na sua avaliação clínica. Assim, os resultados obtidos quanto ao conhecimento das particularidades da história clínica e exame objetivo ficaram aquém do esperado.

O grau de conhecimento acerca das particularidades da história clínica em pessoas trans e não binárias foi avaliado com 3,0 (2,0-4,0) pontos. Faz parte das competências básicas de um médico de MGF a abordagem holística dos utentes e competências específicas de resolução de problemas.6 Desta forma, perante utentes trans ou não binários, o(a) médico(a) de família deve saber quais as especificidades da anamnese e deve ter em conta o contexto psicossocial de cada utente, que lhes pode conferir um risco acrescido de ansiedade e depressão pelas condições de fragilidade social a que esta população é sujeita. (9

No que concerne às particularidades do exame objetivo em pessoas trans e não binárias, os dados analisados indicam desconhecimento, tendo-se obtido uma mediana de 2,0 (1,5-3,0) pontos nos participantes do estudo. Como na história clínica, no exame objetivo é fundamental uma abordagem personalizada a cada utente, conhecendo as particularidades da sua anatomia que podem advir não só das intervenções médico-cirúrgicas realizadas como também de outras práticas de afirmação de género, nomeadamente o binding, em pessoas transmasculinas, ou o tucking, em pessoas transfemininas. (12 Acresce ainda que o ato de despir, ao expor os caracteres sexuais secundários da pessoa trans ou não binária, pode ser um fator precipitante da sua disforia de género. Assim, a avaliação mamária, genital ou retal pode ser particularmente suscetível e ser percecionada como intrusiva, só devendo ser realizada quando necessária de modo a diminuir o desconforto. (12

O conhecimento dos médicos sobre terapia hormonal de afirmação de género (THAG) e o estudo analítico preconizado para se iniciar a THAG em segurança ficou aquém do esperado [2,0 (1,0-2,0) pontos e 1,0 (0,0-2,0) pontos, respetivamente]. Os(as) médicos(as) de família devem conhecer as opções terapêuticas disponíveis para o início de THAG para poderem melhor esclarecer e encaminhar as pessoas utentes. Fazendo parte das competências específicas em MGF a coordenação de cuidados, (11 os(as) médico(as) devem ter conhecimento geral sobre o estudo analítico preconizado para iniciar o processo de transição médico-cirúrgico, a fim de sublimar a articulação entre os cuidados de saúde primários e os secundários.

No âmbito da terapêutica cirúrgica de afirmação de género, suas indicações e contraindicações, tipos de cirurgia e alterações anatómicas que delas advêm com implicações no exame físico, denota-se um nível de conhecimento semelhante ao observado face à terapêutica hormonal e igualmente insatisfatório: 2,0 (1,0-2,0) pontos.

Para determinadas pessoas trans e não binárias, o seu processo de afirmação de género pode incluir a realização de procedimentos cirúrgicos, sendo estes uma possível opção terapêutica da disforia de género que estas pessoas podem experienciar. De modo a orientar e a aconselhar adequadamente estes utentes é fundamental que os(as) médicos(as) de família estejam familiarizados com a existência de tratamentos cirúrgicos e a referenciação dos utentes para cuidados de saúde especializados, nos quais possam obter informação mais pormenorizada sobre os procedimentos disponíveis e respectivo modo de acesso. Para pessoas transfemininas, a terapêutica cirúrgica disponível pode abranger a mamoplastia de aumento, vaginoplastia, cirurgia de harmonização facial, entre outras, enquanto para pessoas transmasculinas, as opções cirúrgicas são a mastectomia e cirurgia de reconstrução mamária, histerectomia/ooforectomia, metoidioplastia ou faloplastia. (4 Considerando a possibilidade de os planos no âmbito do processo de transição de género variarem ao longo do acompanhamento nos cuidados de saúde primários (CSP), os(as) médico(as) devem rever periodicamente as opções cirúrgicas da pessoa trans ou não binária. (13

Embora, na sua generalidade, a THAG não seja um pré-requisito necessário à realização de procedimentos cirúrgicos, de forma a gerir e adaptar as expectativas dos utentes em relação aos timings cirúrgicos, os(as) médico(as) de MGF devem ter presentes as recomendações internacionais da World Professional Association for Transgender Health (WPATH) que, a título de exemplo, aconselham o adiamento de terapêutica cirúrgica, com exceção da mastectomia, a pessoas transmasculinas até estas terem completado um ano de THAG. (13

É igualmente necessário que os profissionais dos CSP tenham conhecimento acerca das implicações futuras da cirurgia genital. Em pessoas transfemininas, estas referem-se à possibilidade de adquirirem distúrbios funcionais do trato urinário inferior, nomeadamente bexiga hiperativa ou incontinência urinária ou infeções de repetição. (4 Também a sua saúde sexual deve ser considerada, sendo necessário avaliar não apenas a dimensão física e o ato sexual, mas também o bem-estar, as preocupações e as especificidades relacionadas aos procedimentos cirúrgicos realizados. Neste sentido é importante aconselhar a estas utentes algumas estratégias preventivas e promotoras de bem-estar, nomeadamente a prática de dilatação vaginal com o objetivo de preservar as características da neovagina. Desta forma, depreende-se a importância de um acompanhamento regular e adequado, ao longo da vida da pessoa trans ou não binária, pelos CSP após a realização dos referidos procedimentos cirúrgicos. (4

Outro parâmetro fundamental que se avaliou foi o nível de conhecimento acerca das particularidades dos rastreios oncológicos nesta população, destacando-se o cancro da mama em pessoas transfemininas que tenham realizado previamente THAG e o do colo do útero em utentes transmasculinos. (9 Porém, novamente os participantes revelaram não ter cabal conhecimento neste tópico, observando-se uma mediana de 2,0 (1,0-3,0) pontos.

Os(as) médico(as) dos CSP devem abordar medidas de prevenção primária e de promoção da saúde antes, durante e após quaisquer intervenções médicas e cirúrgicas de afirmação de género. A escassez de evidência científica sobre rastreios oncológicos acarreta diferentes consequências: por um lado, o excesso de exames de rastreio associa-se a maiores custos em saúde tanto a nível financeiro, com a mobilização de um maior número de profissionais de saúde, como a nível pessoal, pela ansiedade gerada nos utentes e pela exposição desnecessária a radiação e/ou a posteriores intervenções diagnósticas invasivas; por outro lado, a não inclusão de pessoas trans e não binárias nos programas de rastreio afasta-as dos cuidados de saúde e resulta simultaneamente em diagnóstico e intervenção tardios, associando-se a uma morbimortalidade superior, comparativamente à população geral submetida aos referidos rastreios. (4 Em Portugal, foi recentemente (abril/2023) aprovada e publicada em Diário da República uma Recomendação da Assembleia da República que passou a regular a inclusão de pessoas trans nos rastreios oncológicos para o cancro de mama, colorretal e de colo do útero. (14

Recomenda-se que a elegibilidade de pessoas trans e não binárias para os programas de rastreio se baseie na realização de um inventário de órgãos com base numa anamnese cuidadosa, abordando os tratamentos hormonais e cirúrgicos realizados por cada utente, em detrimento da sua identidade de género. Adicionalmente, os(as) médico(as) de família devem ter presente que os procedimentos de rastreio podem ser fatores precipitantes de disforia de género, como se verifica frequentemente em utentes transmasculinos submetidos a citologia cervicovaginal para rastreio de cancro do colo do útero, o que pode também afastar estas pessoas de importantes medidas de prevenção primária.12 Apesar das particularidades dos rastreios oncológicos nesta população, a WPATH recomenda que os profissio-nais dos CSP sigam as normas de recomendação nacionais. (4 Assim, demonstra-se que os CSP têm um papel nobre no âmbito dos rastreios oncológicos, através da referenciação dos seus utentes trans e não binários para os programas nacionais de rastreio do cancro da mama e do cancro do colo do útero.

Adicionalmente, antes de iniciarem qualquer tratamento de afirmação de género, os utentes trans e não binários devem ser informados das opções de preservação de fertilidade, como são a criopreservação de esperma em pessoas transfemininas e a criopreservação de oócitos ou embriões em pessoas transmasculinas. (13 Uma vez mais constatou-se que o conhecimento dos médicos internos e especialistas em MGF é insuficiente também neste tópico: 1,0 (1,0-2,0) pontos.

Relativamente à rede de cuidados para pessoas trans em Portugal, num primeiro nível situam-se os CSP que constituem a “porta de entrada no Serviço Nacional de Saúde” para utentes trans que possam pretender intervenções médicas e/ou cirúrgicas de afirmação de género. Neste âmbito, as USF destacam-se na sua função de acolhimento, acompanhamento e referenciação para consulta de sexologia a nível hospitalar, que se enquadra num segundo nível da rede de cuidados. (9 Neste âmbito em particular, os resultados parecem mais satisfatórios comparativamente com os parâmetros abordados anteriormente, apresentando uma mediana de 3,0 (2,0-4,5) pontos, mas, ainda assim, a carecer de melhoramento, dado ser um dos pilares de atuação dos CSP.

Finalmente avaliou-se o grau de conhecimento sobre a vigilância clínica e analítica preconizada durante e após a realização de terapêutica de afirmação de género, tendo-se obtido perceções de conhecimento insuficientes: 1,0 (0,0-2,0) pontos, como já tinha sido apontado noutros estudos. (3 Sendo a gestão de CSP uma competência básica dos médicos de MGF, (11 é fundamental que estes tenham conhecimento sobre as especificidades da vigilância ao longo da vida destes utentes.

O facto de não terem sido encontradas diferenças estatisticamente significativas entre os dois subgrupos em relação às variáveis contínuas demonstra que o desconhecimento e a necessidade de formação nesta área são transversais a toda a população amostrada.

A taxa de resposta foi de 28,9%, o que poderá comprometer a generalização dos resultados.

Conclusão

O estudo evidencia que, apesar de o contacto dos médico(as) interno(as) e especialistas em MGF com pessoas trans e não binárias ser prevalente na prática clínica, o grau percecionado de formação e conhecimento acerca das necessidades específicas desta população é percecionado como insuficiente, o que pode constituir uma barreira à prestação de cuidados de saúde às pessoas trans e não binárias. Desta forma, depreende-se que é importante investir na formação, de modo que se traduza em ganhos em saúde para as pessoas trans e não binárias.

Contributo dos autores

Conceptualização, JM, LR e MS; metodologia, LR e MS; validação, LR e MS; análise formal, MS; investigação, AF, BR, BD, MIC, JV, JM, MC, MF, PS, RR e SF; recursos, LR e MS; redação do draft original, JM, AF, BR, BD, MIC, JV, JM, MC, MF, PS, RR e SF; revisão, validação e edição do texto final, JM, LR e MS.

Conflito de interesses

Os autores declaram não possuir quaisquer conflitos de interesse.

Financiamento

Os autores declaram que o estudo não foi objeto de qualquer financiamento ou bolsa de agências de financiamento nos setores público, comercial ou sem fins lucrativos.

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Recebido: 16 de Novembro de 2022; Aceito: 25 de Setembro de 2023

Endereço para correspondência João Monteiro E-mail: joaonemonteiro@hotmail.com

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