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Revista Crítica de Ciências Sociais

On-line version ISSN 2182-7435

Revista Crítica de Ciências Sociais  no.133 Coimbra Mar. 2024  Epub Mar 31, 2024

https://doi.org/10.4000/11pr1 

Artigos

A Revolução portuguesa (1974-1976), um modelo específico de democratização no século XX

The Portuguese Revolution (1974-1976), a Specific Model of Democratization in the 20th Century

La révolution portugaise (1974-1976), un modèle spécifique de démocratisation au XX e siècle

1 Faculdade de Letras, Universidade do Porto, Porto, Portugal

2 Instituto de História Contemporânea, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Universidade NOVA de Lisboa / IN2PAST - Laboratório Associado para a Investigação e Inovação em Património, Artes, Sustentabilidade e Território, Lisboa, Portugal, mloff@letras.up.pt


Resumo

A Revolução portuguesa, além de uma consequência lógica dos últimos 15 anos da ditadura salazarista (guerra, migrações, urbanização, desruralização, feminização da esfera pública), deve ser lida no contexto da nova cultura política que, desde o final dos anos 1950 (emancipalismo anticolonial, Revolução cubana, 1968), deu às esquerdas um impulso que tem pouco a ver com o arranque de uma terceira vaga de democratização, como a define Samuel Huntington, e das transições negociadas e de génese liberal-democrática muito diferentes da rutura política e social que ocorreu no país. O exemplo mais estudado desta terceira vaga é o caso espanhol. Neste artigo, discuto a comparação que de forma mais ou menos sistemática se tem feito entre a Revolução portuguesa e a Transição espanhola, a primeira tomada como contramodelo positivo da segunda a partir dos argumentos binários como moderação/radicalidade, violência/reconciliação, negociação/rutura.

Palavras-chave: democratização; revolução portuguesa; Transição espanhola

Abstract

The Portuguese revolution, in addition to being viewed as a logical consequence of the last 15 years of the Salazar dictatorship (war, migrations, urbanization, deruralization, feminization of the public sphere), must be read in the context of the new political culture which, since the end of the 1950s (anti-colonial emancipalism, the Cuban revolution, 1968), gave the Left a boost. This, however, has little to do with the start of a third wave of democratization, as defined by Samuel Huntington and negotiated transitions with a liberal-democratic genesis that are very different from the political and social rupture that happened in Portugal. The most studied example of this third wave is the Spanish. In this article, I discuss the comparison that has been more or less systematically drawn between the Portuguese revolution and the Spanish transition, the latter taken as a positive counter-model to the former based on binary arguments such as moderation/radicality, violence/reconciliation, negotiation/rupture.

Keywords: democratization; Portuguese revolution; Spanish transition

Résumé

La révolution portugaise, en plus d’être une conséquence logique des 15 dernières années de la dictature de Salazar (guerre, migration, urbanisation, déruralisation, féminisation de la sphère publique), doit être lue dans le contexte de la nouvelle culture politique qui, depuis la fin des années 1950 (émancipation anticolonial, révolution cubaine, 1968), a donné à la gauche un élan qui n’a pas grand-chose à voir avec le début d’une troisième vague de démocratisation, telle que définie par Samuel Huntington, de transitions négociées avec une genèse libérale-démocratique très différente de la rupture politique et sociale qui s’est produite au Portugal. L’exemple le plus concret de cette troisième vague est le cas espagnol. Dans cet article, j’aborde la comparaison qui a été faite de manière plus ou moins systématique entre la révolution portugaise et la transition espagnole, la première prise comme un contre-modèle positif de la seconde en s’appuyant sur des arguments binaires tels que modération/radicalité, violence/réconciliation, négociation/rupture.

Mots-clés: démocratisation; révolution portugaise; transition espagnole

Introdução

A Revolução portuguesa de 1974-1976 constitui um caso com características únicas na chamada terceira vaga de democratização, como a define Samuel Huntington (1994), designadamente quando confrontada com o modelo de transições negociadas e de génese liberal-democrática do período que se prolonga até 1991. O processo de rutura política e social que ocorreu em Portugal tem sido lido no contexto da nova cultura política que, desde o final dos anos 1950 (emancipalismo anticolonial, Revolução cubana, 1968), deu às esquerdas à escala mundial um impulso que tem pouco a ver com a leitura liberal-conservadora que Huntington deu à terceira vaga. A Revolução portuguesa constituiu um processo político excecional: sustentado num grau de participação política sem paralelo na história portuguesa, ele representou a crise mais profunda das formas tradicionais do Estado moderno português, incluído o final da sua dimensão colonial e uma redefinição profunda da identidade nacional.

O exemplo mais estudado desta terceira vaga de Huntington é o caso espanhol (especificamente a transição democrática de 1976-1978, ou 1976-1981 para abarcar o fracasso do golpe deste último ano), pelo que vale a pena debruçarmo-nos na comparação que, tanto no terreno das ciências sociais e políticas quanto no debate político e nas narrativas mediáticas, tem sido feita de forma mais ou menos sistemática entre a Revolução portuguesa e a Transição espanhola, a primeira tomada como contramodelo positivo da segunda a partir dos argumentos binários como moderação/radicalidade, violência/reconciliação, negociação/rutura.

1. Uma revolução portuguesa do seu tempo

Toda a reflexão sobre o papel e o lugar da Revolução portuguesa na história deve começar por recordar, em primeiro lugar, que ela foi uma consequência lógica dos últimos 15 anos da ditadura salazarista. Estes 15 anos coincidem, antes de mais, com o ciclo da Guerra Colonial (1961-1974) que se arrastou nas três colónias continentais que os portugueses ocupavam em África (Angola, Moçambique e Guiné), e que, em 13 anos, se transformou no fenómeno social e político que mais mobilizou e transformou a vida dos portugueses em toda a sua história: numa população que (em grande medida por sua causa) se reduziu de 8,9 para 8,6 milhões de habitantes entre 1960 e 1970, tendo sido mobilizados 920 000 combatentes portugueses nesses 13 anos. A guerra foi inevitavelmente um forte acelerador da mudança, acelerando e dramatizando muitos dos processos históricos já em curso, contribuindo para que a inevitável crise do regime não pudesse ser resolvida, como no caso espanhol, por uma qualquer forma de transição política mais ou menos negociada.

Coincidindo com a fase mais longa e intensa do século xx de crescimento económico contínuo que Portugal partilhou com o resto da Europa (os anos desde o fim da Segunda Guerra Mundial e a crise petrolífera inflacionista de 1973), a guerra constituiu um fator de tensão na sociedade, contribuindo de forma decisiva para a politização das camadas mais jovens da população. O sintoma mais visível deste processo é a sangria de jovens que abandonaram o país: de entre os 1,4 milhões de portugueses que abandonaram o país, cerca de um quarto de milhão são os refratários ao serviço militar, que encontrariam refúgio sobretudo em França, mudando de forma definitiva o padrão migratório dos portugueses. Essa politização, contudo, foi também potenciada pelas mudanças socioeconómicas estruturais que ocorrem na sociedade portuguesa (migrações em massa, urbanização e desruralização, feminização do mercado de trabalho e da esfera pública, entre outros). Se os processos de mudança socioeconómica não têm por que conduzir automaticamente a processos de mudança política, e menos ainda a contextos de rutura como o processo revolucionário português. O sucesso da conspiração do movimento dos jovens capitães que deu origem ao 25 de Abril de 1974, o Movimento das Forças Armadas (MFA), não pode ser explicado senão no contexto desse intenso processo de mudança por que Portugal estava a atravessar. Não é simples coincidência que o 25 de Abril enquanto operação para derrubar a mais velha ditadura da Europa ocidental, ainda por cima em plena guerra, tenha tido sucesso num momento em que as mudanças socioeconómicas na sociedade portuguesa tinham consolidado e/ou reforçado grupos sociais (uma classe operária industrial constituída nos termos clássicos dos processos de industrialização, trabalhadores do setor dos serviços com mais qualificação e mais autonomia social que os das gerações anteriores, uma nova geração de mulheres ativas em proporção incomparavelmente superior às do passado) disponíveis para romper com as lógicas autoritárias da ordem social salazarista. Pelo contrário, tal não acontecera sempre que, em décadas anteriores, se haviam organizado conspirações militares (como em meados dos anos 1940, e na Abrilada de 1961) e/ou tentativas armadas para derrubar a ditadura (como o Reviralho de 1927-1931 e as várias tentativas durante o período 1958-1961) ao longo dos seus 48 anos de vigência. Sem desvalorizar todas as outras causas do seu insucesso, nenhuma delas triunfara porque não encontrara na sociedade um eco que resultasse de um processo de mudança social tão intenso quanto o dos anos 1960 e 1970.

Processo especificamente português e explicável num contexto histórico nacional, a Revolução dos Cravos é, ao mesmo tempo, um processo político do seu tempo, perfeitamente legível na experiência histórica dos anos 1970, tento surgido imediatamente após a experiência chilena da Unidade Popular de Salvador Allende, esmagada por um golpe militar sete meses antes da Revolução portuguesa. O 25 de Abril foi, além disso, um fenómeno coerente com a cultura política do pós-1968 e contemporâneo de um processo, inédito desde o fim da Segunda Guerra Mundial, de convergência da esquerda francesa, em plena Guerra Fria. O programa comum da esquerda francesa (cf. Tartakowsky & Bergounioux, 2012) - que abriu um processo de tomada do poder por parte de uma coligação que incluía um dos principais partidos comunistas do Ocidente -, era herdeiro, em certa medida, das frentes populares dos anos 1930 e 1940. A influência cultural e política francesa na esquerda portuguesa era, na altura, significativa também pelo facto objetivo de, na época, cerca de 850 000 portugueses viverem em França. A viragem migratória portuguesa para França nos anos 1960, secundarizando destinos como o Brasil ou as colónias em África, coincidiu com uma fase de politização muito intensa das relações sociais em França, tendo um impacto direto na reflexão política dos emigrantes portugueses naquele país e, através deles, nas esquerdas portuguesas - especialmente nas mais radicais, à esquerda do Partido Comunista Português (PCP), e naquela que daria origem ao Partido Socialista em 1973 (cf. Cardina, 2010; Loff, 2016).

Talvez ainda mais significativo seja o facto de a Revolução portuguesa ter coincidido, no contexto internacional, com a mais grave crise de capacidade internacional dos Estados Unidos da América (EUA) desde a Primeira Guerra Mundial, coincidindo com a derrota americana no Vietname, num processo que se inicia em 1973 com a assinatura dos Acordos de Paris e que termina com a retirada precipitada dos norte-americanos em abril de 1975, precisamente na fase mais intensa do processo revolucionário português e no período mais tenso do processo de democratização. Quando o 25 de Abril ocorre, o presidente Richard Nixon está submergido em plena fase final da crise do Watergate, caso que o levaria à sua demissão três meses depois - caso único na história dos EUA. É razoável deduzir-se que, pelo menos durante os primeiros meses da democratização portuguesa, a Administração norte-americana não estava preparada para evitar que uma situação revolucionária se desenvolvesse num país fundador da NATO como Portugal.

2. A Revolução portuguesa, um modelo específico de democratização no século XX

A natureza histórica e política do modelo português de transição para a democracia tem sido amplamente discutida. Um dos setores dominantes da leitura historiográfica da Revolução portuguesa adotou desde muito cedo a tese de António Reis: os anos de 1974-1976 teriam constituído uma revolução fora do tempo das revoluções, o “auge” da qual ter-se-ia

atingido no preciso momento em que por todo o lado se esvaem os pressupostos das velhas revoluções […]. Foi como se tivéssemos de recapitular em dois anos um século da vida mundial: a luta de classes aberta e aguerrida que os outros já haviam experimentado na época própria, oscilando entre os métodos leninistas e os anarco-populistas, o caudilhismo falhado, o militarismo revolucionário à Terceiro Mundo. (Reis, 1990, p. 8)

A evidente intenção de António Reis - importante dirigente do Partido Socialista (PS) já durante a própria Revolução e um dos mais destacados intelectuais de toda a história do partido -, produzida (e isto é importante) no calor no contexto histórico da queda do Muro de Berlim, era anacronicizar a Revolução, apresentá-la como um fenómeno tardio, fora do seu tempo, suspenso em projetos todos mais ou menos superados (aqueles que ele designa por “métodos leninistas e anarco-populistas”) e incompatíveis com a democracia, ou até mesmo exóticos à realidade europeia de final do século xx (que Reis designa por “caudilhismo falhado” e “militarismo revolucionário à Terceiro Mundo”).

Este tipo de interpretações da Revolução portuguesa inscreve-se num movimento muito mais amplo, que analisei noutro texto (Loff, 2018a), de leitura histórica das revoluções da história contemporânea e, de forma mais geral, da revolução como processo específico de mudança. Desde a década de 1950, na fase mais intensa da Guerra Fria, que começa a triunfar na ciência e na filosofia políticas ocidentais - e na norte-americana em especial -, uma leitura que nesse texto designei como a da desocidentalização das revoluções socialistas e emancipalistas não liberais - que correspondem, na síntese que Von Laue (1987) propõe, à Revolução Russa, às asiáticas, e às “do século xx”, ou seja, as revoluções chinesas, cubana e todas as anticoloniais. Esta tese liberal, euro e ocidentocêntrica - que teve em Robert Palmer (1959, 1964) e em Hannah Arendt (1963/2001) os seus precursores -, presume que a modernização pressupõe a ocidentalização, assumindo aquela como um fenómeno globalmente positivo e fundamentalmente unidirecional, e presume a asiaticidade (ou a orientalização, nunca melhor aplicado, para recorrer ao conceito e à teoria de Edward Saïd [1978]) da Revolução Russa, como se ela, ocorrida numa das culturas políticas que configuram o Ocidente histórico, fosse um fenómeno tipicamente não ocidental. Se lhe somarmos o processo teórico de totalitarização, não somente da Revolução Russa, mas também da própria Revolução Francesa, bem como de todas aquelas que delas tomaram o exemplo, percebemos como o argumento é o de descrever estes fenómenos como ideocráticos - como sustentam François Furet (1978) para o caso francês ou Richard Pipes (1990) para o russo -, fazendo-os inscrever na História como fenómenos artificiais, alheios na sua génese às sociedades em que surgiram, esvaziando de espontaneidade e natureza voluntária os processos de mobilização social de massas. Estes processos passaram assim a ser explicados apenas, ou fundamentalmente, pela manipulação exercida por vanguardas revolucionárias tomadas como protagonistas da violência ideocrática e, como tal, como atores sociais fundamentalmente desligados do conjunto da sociedade.

No nosso caso em estudo, a terceiromundização da Revolução portuguesa está tão presente na leitura que se fez - maioritariamente em Portugal - do que foi a nossa revolução (pelo menos no primeiro quarto de século que se seguiu ao 25 de Abril), que se inscreve numa estratégia de menorização por via da sua exotização, isto é, da sua interpretação como não europeia e não ocidental. E, contudo, a natureza revolucionária do 25 de Abril pode ser interpretada como uma das manifestações mais evidentes de uma nova cultura política que, à escala europeia e mundial, desde o final dos anos 1950 (como mencionado anteriormente), deu às esquerdas um impulso que só a recomposição do capitalismo a partir da crise de 1973 tenderia a parar. Do ponto de vista mais estritamente politológico, uma parte da produção académica portuguesa (e mesmo da internacional) nos campos da Ciência e da Sociologia Política procurou encontrar em Marcello Caetano um equivalente, avant la lettre, de Adolfo Suárez, assumindo que a Guerra Colonial e o seu corolário - a decisão dos jovens capitães de lhe pôr termo derrubando o regime - deveriam ser tomados como fatores suficientes para impedir que ocorresse em Portugal uma transição de tipo espanhol (Loff, 2018b). Em larga medida, tal interpretação, amplamente subscrita por grande parte da cultura política conservadora portuguesa, assenta na adoção de um modelo interpretativo tão equívoco como o de Huntington (1991, 1994). Este procurou reunir naquela que, de forma muito aproximativa, designou como terceira vaga de democratização casos tão diferentes como um processo de democratizador radical, operado por rutura, como o da Revolução portuguesa, e transições negociadas nas quais o poder autoritário nunca perdeu completamente o controlo do processo, como foi o caso da espanhola, nos anos 1970, ou como os da maioria das latino-americanas e as pós-comunistas na Europa Central e Oriental nos anos 1990.

As formas dominantes através das quais se tem narrado os processos de democratização dos 15 anos que antecederam o “fim da história” de 1989-1991 estão carregadas de uma leitura a-histórica que está presente na obra de Fukuyama (1992) - a de um fim obrigatório ou, pelo menos, inevitavelmente liberal da história - e na amálgama simplista em que se sustenta a tese de Huntington. Nelas, os processos de mudança que conduzem ao fim dos regimes autoritários1 aparecem como se estivessem inscritos na ordem do tempo, como se a evolução operada na sociedade as tivessem tornado praticamente inevitáveis. Isto faz com que quem subscreve estas teses tenda a procurar encontrar, entre as intenções das elites sociais e políticas dominantes (especialmente nos casos espanhol e latino-americanos), as mudanças que, uma vez efetivamente postas em prática, tornaram a democracia possível. Por outras palavras, nestes casos, estamos a falar de relatos retroativos da história que, deliberada ou inadvertidamente, contribuíram para fazer passar como democratizantes aquelas elites e/ou o seu comportamento político - como se tivessem sido elas a escolher a democracia.

No calor da queda do regime soviético e daqueles que com este se articulavam no Pacto de Varsóvia, Huntington defendia que os processos pós-autoritários em Portugal e Espanha tinham constituído o início de uma terceira vaga de democratização, por ele descrita como “uma vaga esmagadoramente católica” (Huntington, 1991, p. 13). O esquema em que se sustenta esta argumentação passa por desenhar três fases históricas de democratização (1820-1926, 1945-1962, 1974-1989), a terceira das quais ter-se-ia manifestado em três partes diferentes do mundo: primeiro, na Europa do Sul (Portugal, Grécia e Espanha), entre 1974 (Revolução portuguesa) e 1978 (aprovação da Constituição espanhola); depois, na segunda metade da década de 1980, em vários países da América Latina e, finalmente, na Europa Central e Oriental, entre 1989 e 1991.

Há vários aspetos fundamentalmente equívocos nesta tese. A Revolução portuguesa insere-se no ciclo pós-1968, na fase final da dinâmica progressista que se desenvolveu em todo o mundo desde o fim da Segunda Guerra Mundial. Esta longa vaga de transformações democratizantes (derrota do fascismo, descolonização, novos direitos sociais, emancipação das mulheres e das minorias, etc.) perdeu força no final dos anos 1970 e início da década seguinte, basicamente entre a eleição de Margaret Thatcher, em 1979 - que desencadeou uma viragem à direita à escala internacional -, e a derrota da longa greve dos mineiros britânicos (1984-1985) contra ela e o seu governo, naquele que constituiu um momento simbólico do refluxo do movimento operário à escala europeia.

O processo revolucionário português, do qual emergiu o novo regime democrático, terminou em abril de 1976, com o encerramento do processo constituinte, e a direita portuguesa regressou ao poder pela primeira vez nas eleições de dezembro de 1979. Até então, porém, as práticas políticas e sociais que asseguravam o caráter revolucionário do processo democratizador português e os valores políticos que foram hegemonicamente invocados (sublinho o verbo invocar, diferente de aplicar ou concretizar), ao longo dos 23 meses que decorrem desde o 25 de Abril até à aprovação da Constituição, foram em grande medida refletidos no texto constitucional. Esses valores eram integralmente oriundos de um quadro ideológico socialista que nunca ganhou preponderância política nos processos grego, espanhol ou latino-americano e foram, sobretudo, abertamente rejeitados nos processos de transição da Europa Central e Oriental. É justamente por isto que (entre outros fatores) não creio ser correto que se encerre o processo revolucionário no 25 de Novembro de 1975, mas sim no momento constituinte do novo regime democrático, a partir do qual, é certo, terá começado imediatamente um processo desconstituinte do que havia de socialista na Constituição de 1976.2

Se é claro que nestas três regiões do planeta (Europa do Sul, América Latina e Europa Central e Oriental) os processos de democratização acabaram por produzir sistemas liberal-democráticos (salvo na Nicarágua sandinista, no período de 1979-1990) que procuraram mimetizar o modelo maioritário do mundo ocidental desde os anos 1950, as suas origens e fundamentos são muito diferentes se considerarmos o caso português e o contrastarmos, por exemplo, com os casos espanhol ou polaco. Neste sentido, seria até admissível falar de uma vaga de democratização liberal-democrática que terá começado na Grécia e em Espanha, sem incluir o caso português - o qual, por seu lado, deveria ser colocado no fim de um ciclo histórico de progresso social e político diretamente resultante dos triunfos antifascistas de 1945 e dos triunfos anticoloniais das décadas de 1950 e 1960. Para Huntington (1991, p. 12), e de forma reveladora da sua leitura política conservadora da história da segunda metade do século xx, este ciclo incluiria não apenas a segunda vaga de democratização, mas também, e em sentido contrário, uma “segunda vaga inversa” (isto é, de desdemocratização) que teria ocupado o período de 1960-1975.

Se os conceitos com que pretendemos organizar cronológica e contextualmente os ciclos históricos devem respeitar um mínimo de coerência e consistência na sua aplicação às diferentes realidades concretas (que pretendem representar), não faz sentido juntar sob uma mesma designação processos políticos tão diferentes como a Revolução portuguesa e a transição polaca liderada pelo sindicato Solidariedade, ou ainda, por exemplo, as transições nacionalistas pós-jugoslavas e pós-soviéticas. Se na maioria destes casos existe uma democracia (formalmente) liberal no final do processo, isso não se deve certamente ao facto de todos eles terem origens, procedimentos e valores idênticos. Lech Wałęsa nada teve a ver com Vasco Gonçalves, e Franjo Tuđman nada partilhou com Otelo Saraiva de Carvalho, e nem sequer é legítimo afirmar que Adolfo Suárez tenha desempenhado um papel semelhante ao de Mário Soares.

3. A Revolução é , a Transição é boa...

Centremo-nos agora na comparação com o processo de democratização mais próximo do português, o espanhol. Não simplesmente porque ele é o mais próximo, mas porque muita da análise que é feita da Revolução portuguesa na história a coloca sistematicamente em comparação com a Transição espanhola. A Revolução portuguesa começou em abril de 1974, dois anos antes do início da reforma política (como lhe chamavam os reformistas do franquismo) em Espanha - e três meses antes da transição grega (a Metapolitefsi, no período de 1974-1975), com a qual partilha poucos aspetos em comum -, e terminou em abril de 1976 com a aprovação da Constituição, quando, em Espanha, com Arias Navarro a presidir ao Governo da ditadura, ainda não havia sinais claros de qualquer tipo de democratização. Enquanto o caso português se tornou “indiscutivelmente [n]o processo de transição mais radical” das últimas três décadas do século xx, associando “a revolução social à construção de novas instituições democráticas”, o caso espanhol foi, “em contraste, uma das transições democráticas menos radicais” (Fishman, 2019, p. 19). Embora haja quem garanta que os três casos europeus dos anos 1970 “foram invariavelmente saudados como ‘histórias de sucesso’ de democratização” (Kornetis & Cavallaro, 2019, p. 2), o caso espanhol foi, no ambiente pós-moderno e neoliberal do final do século xx, proposto como o estudo de caso perfeito sobre como sair com “elegância” (Linz & Stepan, 1996, p. 89) de uma ditadura e chegar à democracia de forma segura.

Se esta fase inicial do que Huntington entende ser a terceira vaga só é inteligível como parte das exigências democráticas globais dos longos anos 1960, os casos português e espanhol relacionam-se de forma muito diferente com o legado de 1968: enquanto a experiência portuguesa, uma revolução social temporariamente triunfante, constitucionalizada em 1976 e fundamentalmente revertida no final da década de 1980, foi um exemplo marcante do fim da viragem progressista e emancipatória que conquistou vitória após vitória em todo o mundo desde 1945 e até meados da década de 1970, a Transição espanhola foi um processo político conduzido pelo Estado, em que uma elite autoritária, sob forte pressão vinda de baixo, foi forçada a desmantelar as instituições políticas autoritárias (com exceção das Forças Armadas e das forças de segurança do Estado, naturalmente) enquanto se deixavam intactas as hierarquias económicas e sociais, oferecendo assim um bom exemplo de processos de mudança política controlados pelas elites, que viriam a ser reproduzidos na América Latina e no Extremo Oriente asiático na década de 1980. Nessa altura, a Espanha, e não Portugal, tornou-se o exemplo a seguir.

Em coerência com as abordagens neoliberais que se tornaram hegemónicas no início dos anos 1980 - ou seja, pouco depois do fim dos processos de democratização ibéricos -, os processos de reforma política acordada entre as elites autoritárias disponíveis para aceitar algum grau de abertura e as componentes mais representativas das oposições foram apresentados como um tipo ideal de mudança política. Explicando-os à luz da teoria da modernização formulada nos anos 1950/1960 - de entre elas, a de Lipset (1960/1967) é um bom exemplo -, este tipo de transição sem rutura tem sido descrito como sendo adequado a sociedades ocidentais com “elevados níveis de desenvolvimento socioeconómico” (Linz & Stepan, 1996, p. 77), com classes médias fortes que supostamente proporcionariam estabilidade social. Por outro lado, os contextos em que estas pré-condições não foram cumpridas (desde o Chile e a Argentina nos anos 1970 até ao Iraque nos anos 2000) foram sujeitos a processos coercivos de neoliberalização, acabando por ser democratizados apenas quando pareciam (sempre segundo esta perspetiva ocidentocêntrica) suficientemente maduros para a democracia. As implicações elitistas (e praticamente orientalistas, de novo na perspetiva de Saïd) são óbvias, e aplicaram-se também a algumas explicações comparativas sobre as duas transições democráticas ibéricas, presumindo que a dimensão mais ampla da classe média espanhola nos anos 1970 não só teria ajudado a explicar como sociologicamente a Espanha, ao contrário de Portugal, “tinha de facto começado a sua transição para a democracia quando Franco ainda estava vivo”, mas seria também central para compreender a relativa moderação política do processo espanhol face à radicalidade do português, ou o relativamente menor sucesso eleitoral dos comunistas espanhóis quando comparados com os portugueses3 numa sociedade com uma “classe média de dimensão mais reduzida” (Wiarda & Mott, 2001, pp. 69, 132-133). Este tipo de explicação mesocrática (Sánchez Léon, 2014) sobre a forma como a democracia emerge de dentro de sociedades autoritárias, não só reproduz um conceito liberal burguês do século xix sobre a cidadania (e sobre quem a merece), como revela a mesma suspeita paternalista sobre a (falta de) qualidade e a natureza específica da participação popular na mudança política, especialmente a das classes trabalhadoras, amplamente partilhada pelos supostos reformistas do marcelismo em Portugal e da fase final do franquismo em Espanha. Para o Rei Juan Carlos, por exemplo, a Transição tinha sido possível em Espanha porque “durante os quarenta anos [do regime de Franco] formou-se uma classe média poderosa e próspera […] que se tornou a espinha dorsal do […] país” (cf. Vilallonga, 1994, p. 315).

4. Democratizar sem pôr em causa a ordem social?

A tese que à escala internacional se tornou dominante, senão mesmo hegemónica, nos estudos políticos sobre as transições da chamada terceira vaga enfatizam sempre a “estabilidade” e a “continuidade” presentes ao longo do processo espanhol tomado, em geral, como exemplar. Por comparação com o espanhol, o caso português aparece necessariamente descrito como “polarizador” e “conflitual”. Howard Wiarda e Margaret MacLeish Mott, dois dos autores clássicos desta abordagem, propõem oito “grandes diferenças” entre o que chamam os processos espanhol e português de “abertura à democracia” (Wiarda & Mott, 2001, pp. 68-69). Vários desses autores clássicos revelam bem, antes de mais, um parti pris político, mas também teórico e metodológico, na análise dos processos de mudança na história.

Por exemplo, a tese do papel central da pilotagem monárquica no processo de democratização - “a Espanha tinha um monarca que proporcionou estabilidade e continuidade cruciais na transição” (Wiarda & Mott, 2001, p. 69) -, esquece o inevitável problema de legitimidade (o de ter sido escolhido por Franco para lhe suceder, incumprindo as próprias regras dinásticas que davam prioridade ao pai, Don Juan de Borbón) que afetou a trajetória de Juan Carlos ao longo de toda a Transição. Ora, “Portugal não tinha tal instituição” (Wiarda & Mott, 2001, p. 69). Recordando que “a revolução portuguesa foi iniciada e liderada pelas forças armadas (principalmente o MFA)”, e omitindo o facto de os civis terem sido em Portugal largamente maioritários em todos os governos provisórios ao longo do período pré-constitucional, Wiarda e Mott assinalam que “em Espanha a transição foi liderada por civis”, presumindo de forma absolutamente abusiva que “os militares permaneceram em grande parte apolíticos” (2001, p. 69), uma avaliação surpreendente para o papel intrinsecamente político de quem não só assegurara a estabilidade da ditadura - e, através do seu chefe supremo (o Caudillo), conferira a identidade específica do regime -, como mantinha um peso significativo nos governos da Transição.

A tal ponto é percetível o preconceito contra a radicalidade democrática do modelo português de democratização que os pressupostos desta análise deslizam muito rapidamente para a pura manipulação histórica. Por exemplo, ao salientar que, em Portugal, “o centro foi esmagado e quase desapareceu durante algum tempo”, e que “em Espanha foi o centro político que guiou a transição e nunca perdeu o seu controlo para os extremos” (Wiarda & Mott, 2001, p. 69) - afirmações já de si concetualmente pobres (“centro”, “extremos”…) -, os autores tendem a esquecer que quatro dos cinco maiores partidos políticos (que representaram mais de 80% dos votantes e mais de 90% dos deputados nas primeiras eleições democráticas de abril de 19754), incluindo o maior partido de direita (o Partido Popular Democrático), fizeram parte dos governos provisórios portugueses, enquanto que em Espanha, durante toda a Transição, o Governo permaneceu exclusivamente nas mãos de franquistas - vários deles reformistas, é certo - que o partilhavam com militares abertamente autoritários e relutantes à democratização sem, contudo, terem sequer cooptado representante algum da oposição.

Finalmente, um pressuposto clássico deste tipo de trabalho comparativo académico é o da classificação da “revolução portuguesa [como] altamente conflituosa, enquanto em Espanha os ‘pactos sociais’ negociados entre trabalhadores, empregadores e o Estado serviram para reduzir grandemente o potencial de conflito e violência” (Wiarda & Mott, 2001, p. 69). Há vários aspetos discutíveis também nesta afirmação. Comecemos por traduzir o que Wiarda e Mott entendem ter sido a natureza “conflitual” da Revolução portuguesa.

Em Portugal, as greves, as manifestações e a subversão da ordem económica autoritária, ocupando fábricas e propriedades fundiárias, resultaram da emergência do que Charles Tilly (2004) designa em conjunturas desta natureza como uma perceção coletiva de oportunidade. Recorrendo à interpretação de Rafael Durán Muñoz, essa “oportunidade” foi percecionada pelas classes populares, que perceberam ser viável “radicalizar” os movimentos sociais (quer os do universo urbano, quer sobretudo os dos campos do Centro e do Sul do país) e surgiu “porque os trabalhadores perceberam a debilidade do Estado, mas também porque as autoridades estatais perceberam tal força nos trabalhadores que a repressão se teria tornado a mais cara das alternativas” (2009, p. 175). Tendo perdido a proteção do Estado e a eficácia coerciva dos seus instrumentos de repressão, “nem mesmo os empresários puderam usar o seu poder de punir” (Durán Muñoz, 2009, p. 175).

Em Espanha, pelo contrário, as reivindicações democráticas dos fortes movimentos operário e estudantil que se manifestaram ao longo de 1976 e 1977 (Durán Muñoz, 2000; Molinero & Ysàs, 2018) foram respondidas com

dissoluções, despejos, detenções […] e prisões, cargas [policiais], […] balas de borracha, coronhadas, […] gases lacrimogéneos, disparos para o ar, […] feridos (também por arma de fogo), hospitalizados, inclusivamente mortos, foram realidades da Espanha da transição. (Durán Muñoz, 2009, p. 175)

Durante a Transição, tal como aconteceu durante a ditadura franquista, o Estado foi capaz de “delimitar a todo o momento - o que não aconteceu em Portugal - o âmbito da pressão social, do protesto e da reivindicação, fossem operárias ou não as mobilizações” (Durán Muñoz, 2009, p. 175). Desta forma, “não se tendo dado nem percecionado vazio algum do poder político em nenhum momento, também não existiu vazio do poder patronal nem, por isso, oportunidade para a transgressão, mas antes, pelo contrário, razões para a contenção” (Durán Muñoz, 2009, p. 175).

Sejamos claros: a avaliação negativa que do processo português de democratização fazem todos aqueles que elogiam a Transição espanhola enquanto contramodelo positivo da Revolução portuguesa presume sempre que se deveria ter poupado Portugal aos “sobressaltos revolucionários esquerdistas”, como lhes chamou António Reis (1990, p. 8), ao “recreio” revolucionário, como lhe chamou António Telo (2007, p. 176), à “loucura política” que se implantara em Portugal, segundo Aníbal Cavaco Silva (2002, p. 39), e ter transitado da ditadura (e da guerra) com a mesma “elegância” que os setores que representam estes autores detetam na Transição espanhola (Linz & Stepan, 1996, p. 89). Se situarmos a definição da Revolução, isto é, a natureza revolucionária da democratização portuguesa, não tanto na superação do regime político autoritário - que ocorre em todas as democratizações; de outra forma elas não o seriam -, mas nas transformações estruturais da ordem económica e social, e se atribuirmos a explicação dessas transformações à ação dos movimentos populares (tanto no universo operário como no rural e no dos serviços) que conseguem obter a satisfação do essencial das suas reivindicações (como ocorreu em Portugal em 1974-1976), percebemos que neste tipo de leituras dos processos de mudança os movimentos sociais tendem a ser descritos como um obstáculo à democratização e, eventualmente, até mesmo como sendo incompatíveis com ela.

Este raciocínio não se aplica apenas, naturalmente, a Portugal - aplica-se a todos os processos de democratização nos quais se descrevem como casos de sucesso as transições pós-autoritárias cujo impacto se restringe à dimensão política e, até um certo ponto, institucional, sem alterar o essencial da estrutura social e económica. Mas há, percebemo-lo bem, um pressuposto puramente ideológico (e de classe) por detrás desse raciocínio: o de que, em nome da estabilidade social, a superação da ordem autoritária não deve alienar os interesses das classes dominantes, por mais que estas sejam obviamente responsáveis e beneficiárias dessa mesma ordem. Isto como se fosse possível desmantelar uma ordem autoritária fazendo apenas cessar os aspetos formalmente repressivos da ordem política sem tocar nos aspetos repressivos da ordem social, isto é, sem tocar na natureza intrinsecamente classista e desigualitária de uma ordem autoritária e conservadora.

O caso espanhol é especialmente revelador de como esta receita se aplicou, e de porquê passou a ser elogiada. Quando os limites da ditadura foram testados pelo fortíssimo movimento de contestação social dos anos 1970 (Molinero & Ysàs, 2018) e se tornou cada vez mais evidente a impossibilidade de refrescar o franquismo após a morte do Caudillo, em novembro de 1975 (Ruiz Carnicer, 2018), o movimento operário e a “conflitualidade social” foram entendidos por todos os segmentos do regime (pela ultradireita designada por bunker, mas também pelos chamados reformistas) como “um desafio político frontal”, para usar as palavras do ministro Manuel Fraga, que descrevia os protagonistas da contestação como “criminosos, sequestradores, agentes e cúmplices da subversão, e também os que organizam motins sociais e os que são arrastados por eles” (tal como citado em Baby, 2012, p. 249). O processo transicional espanhol foi abordado a partir da “equivalência conservadora entre a desordem pública e a presença das massas na rua”, como recorda Sophie Baby (2012, p. 253) citando Salvador Sánchez-Terán, o último governador civil de Barcelona sob a ditadura (em 1976-1977). Mais do que uma mera afirmação antidemocrática sobre quem tem legitimidade para ocupar o espaço público, esta tornou-se uma explicação dominante sobre a razão pela qual o processo de democratização espanhol esteve sempre ameaçado ao longo de todo o seu processo de desenvolvimento. Por outras palavras, um direito individual (de livre expressão) e coletivo (de manifestação) constitutivo da própria democracia foi apresentado como uma ameaça ao próprio processo de democratização. “Não será preferível contar nas urnas o que, de outra forma, teríamos de medir com base na agitação das ruas?”, perguntou Adolfo Suárez (tal como citado em Fishman, 2019, p. 58) quando procurou justificar a legalização do PCE em abril de 1977, traçando assim uma “oposição dicotómica entre a expressão institucionalizada das preferências dos eleitores nas urnas e a mobilização dos cidadãos nas ruas” (Fishman, 2019, p. 58).

5. O uso político dos conceitos de paz e de violência

Este elogio da moderação e da não-radicalidade da Transição espanhola teve, e ainda tem, consequências inevitáveis no campo da construção política e simbólica das narrativas sobre a fundamentação da democracia e do processo de democratização. Na síntese que anos depois Juan Carlos de Borbón faria, tinha sido essencial “conseguir uma transição sem confrontos nem choques, e que para tal não havia que nos empenharmos numa rutura brutal” - o adjetivo diz tudo - “entre o antigo regime e a democracia que todos desejávamos” (cf. Vilallonga, 1994, p. 310). É justamente por, nas palavras de Adolfo Suárez, se ter “gerido a transição em paz e desde a legalidade” (tal como citado em Santiago Guervós, 1992, p. 162) - isto é, a partir dos procedimentos legais da própria ditadura -, que a Transição espanhola não pôde então reivindicar plenamente a rejeição da ditadura franquista, entre outros motivos porque aqueles que se apresentam como tendo sido os seus pilotos (Juan Carlos, Adolfo Suárez) assumiram o poder no interior da ditadura e não uma vez tendo sido instaurada a democracia. O que o Estado espanhol promoveu efetivamente desde o final da Transição como “a boa memória” - isto é, como fundamento das suas políticas oficiais de memória pública - visou, portanto, “socializar uma ideia: que a abstinência institucional de reconhecer as lutas democráticas e os seus custos era benéfica e necessária para a conciliação do país” (Vinyes, 2009, p. 34).

A única alternativa foi legitimar-se através da celebração da paz e da reconciliação. Este é, afinal, aquilo que alguns chamam “o mito da Transição” espanhola (Gallego, 2008), sustentado numa “mitologia política e bibliográfica” (Baby, 2012, p. 10) regularmente alimentada na esfera pública. Por mais atrativa e convincente que possa parecer, esta tentativa de despolitizar a Transição espanhola e de a reduzir a uma comovente operação moral de perdão recíproco - segundo Adolfo Suárez Illana, filho do ex-primeiro-ministro, “sobre o abraço do perdão construiu-se a melhor Espanha que conhecemos na nossa história” (cf. Calleja, 2018) -, ela resiste cada vez pior à passagem do tempo e tem sido decisivamente posta em causa desde o final do século passado, sobretudo a partir dos movimentos sociais pela memória democrática - como é o caso do chamado Movimento 15-M (manifestações e ocupações de praças iniciadas no dia 15 de maio de 2011) e do movimento independentista catalão que teve no referendo de 1 de outubro de 2017 o seu ponto mais intenso.

Paz e reconciliação - e não caos e desordem, como teria havido no caso português - foram atitudes tidas como intrínsecas às transições. O uso político que destes conceitos se tem feito para promover as transições negociadas como ideais e as ruturas políticas e sociais como inevitavelmente nefastas está bem presente na mitificação da história da Transição espanhola. Sophie Baby recorda que “a violência marcou profundamente as etapas, o ritmo, os limites da reforma e orientou o comportamento dos atores” da Transição espanhola, embora “não tenha provocado a temida implosão nem tenha travado irrevogavelmente a democratização que permitiu que o mito da transição florescesse” (Baby, 2012, pp. 430-431). Se tomarmos o período decorrido entre novembro de 1975 - morte de Franco - e dezembro de 1983 - quando os Grupos Antiterroristas de Libertação (GAL), esquadrões da morte articulados com a polícia espanhola, atuaram pela primeira vez -, a investigação listou 591 pessoas que terão sido mortas devido à violência política, sendo que cerca de um terço delas (188) foram da responsabilidade justamente das forças policiais e dos esquadrões da morte criados e/ou apoiados pelo Estado, tendo as restantes sido causadas por organizações terroristas armadas - Euskadi Ta Askatasuna (ETA) e os Grupos de Resistência Antifascista Primeiro de Outubro (GRAPO), principalmente. Se nos restringirmos ao período que decorre até à aprovação da Constituição, ocorreram 169 mortes por motivos políticos até dezembro de 1978 (Sánchez Soler, 2018, pp. 353-354). Estes números mostram quão tensa e violenta foi a Transição espanhola, e inscrevê-los na sua avaliação histórica não deveria aparecer como uma surpresa: afinal, era até bastante expectável que tal acontecesse num contexto em que se mantiveram ativos os instrumentos repressivos e de controlo social de um regime autoritário necessariamente violento, sob o ataque de organizações armadas. Ainda que o regime fosse forçado a aceitar mudanças, o Estado foi sempre capaz de manter controlo do espaço público durante todo o processo.

Neste sentido, só na aparência é paradoxal que um processo de mudança conduzido por um Estado tenha produzido muito mais vítimas (proporcionalmente duas vezes mais, uma vez consideradas as diferenças de população e o período abarcado) do que um outro como o português, de rutura revolucionária classicamente descrita como caótica, num contexto em que o Estado perdeu tanto a sua eficácia coerciva como o próprio monopólio das armas uma vez que, numa fase em que 150 000 soldados eram repatriados das colónias africanas, aquelas eram bastante acessíveis aos diferentes movimentos políticos. Em semelhante contexto potencialmente explosivo, entre maio de 1975 (início da violência anticomunista no Norte e Centro de Portugal continental e nas ilhas atlânticas) e dezembro de 1976 (fim do processo de constituição de todos os órgãos democraticamente eleitos previstos pela Constituição), 14 pessoas foram mortas por motivos políticos, seis das quais por elementos da polícia ou das Forças Armadas, e oito pelo terrorismo de extrema-direita (Palacios Cerezales, 2011, pp. 346-356; Pinto, 1999, p. 46). Nos confrontos militares do 11 de Março e do 25 de Novembro de 1975 foram mortos três militares e um civil (Sánchez Cervelló, 1993, pp. 225, 259).

Os relatos políticos e académicos que predominam ainda hoje no discurso público sobre a Revolução portuguesa tendem a traduzir a radicalidade e a subversão das hierarquias sociais como violência, ao mesmo tempo que, no caso espanhol, ao enfatizarem excessivamente a probabilidade de que uma nova guerra civil estalasse no contexto da crise final do franquismo, tendem a “minimizar” a violência política que efetivamente pautou a trajetória histórica e a própria natureza da Transição (Baby, 2012, p. 436).

Como analisei noutro contexto (cf. Loff, 2022), se a Revolução portuguesa acabou por ser um processo político excecional - quer no contexto da história portuguesa, quer no da história dos processos de democratização do último quartel do século xx -, é porque em 1975 se abriu (ou, iniciada já em 1974, se acentuou) uma crise profunda das formas tradicionais do Estado, incluindo o colapso da sua dimensão colonial, num clima de participação política sem paralelo na história portuguesa. Excecional também é que todo este processo de rutura com o passado tenha ocorrido numa sociedade que saía de uma guerra mas que, embora nela circulasse um grande número de armas, teve um nível de violência política substancialmente mais baixo, em termos comparativos, do que outros contextos - designadamente o espanhol. Recordemos que em 1974-1975 havia quase 200 000 homens nas Forças Armadas, entre os que se encontravam mobilizados em Portugal e os que iam regressando das colónias, todos eles vivendo a experiência da Revolução em quartéis abertamente politizados; ao mesmo tempo, transferia-se para Portugal meio milhão de colonos, os chamados retornados, e o terrorismo de extrema-direita operava em dois terços do país. Apesar desta atmosfera de enorme tensão, a Revolução portuguesa, contrariando quase todos os maus presságios agitados ao longo de 1975, nunca resvalou para a guerra civil. Esta é também uma das razões pelas quais a Revolução portuguesa permanece um caso especial da história das mudanças por rutura e na história da construção da democracia e da emancipação humana.

50 anos depois...

O processo de democratização português aberto pelo 25 de Abril de 1974 distingue-se claramente daqueles que lhe sucedem nos 15 anos seguintes em vários outros países, todos próximos do modelo liberal-democrático. Ao contrário do caso português, não foi decisiva a presença de uma forte cultura política progressista (pelo menos nos casos grego, espanhol e nos da América Latina) nas forças que haviam protagonizado a exigência democratizadora na configuração final dos novos sistemas democráticos. O que terá ajudado a criar a ilusão de uma terceira vaga democratizadora iniciada em Portugal com o 25 de Abril foi o desenlace pós-revolucionário (ou até mesmo antirrevolucionário) do processo português, no qual uma revolução de objetivos declaradamente socialistas - afirmados, de resto, no seu texto constitucional - vê o seu modelo político e social evoluir rapidamente no sentido liberal-democrático tradicional, em absoluta coerência, como aqui já se sublinhou, com a viragem liberal-conservadora que ocorre no Ocidente no final dos anos 1970. Descrever, como é muito comum, este desenlace como o produto de um país que passou a renegar as origens revolucionárias da sua democracia é esquecer que as revoluções foram os momentos fundadores da maioria dos regimes liberais e democráticos contemporâneos. Todas elas deixaram uma marca indelével nos processos históricos que abriram. Mesmo 50 anos depois do 25 de Abril, e por mais que os resultados das eleições legislativas de março de 2024 tenham podido criar em muitos a sensação de que o ciclo aberto pela Revolução se encerrou, a sua marca continua visível nas formas da democracia portuguesa.

Declaração de conflitos de interesse

O autor declara não existir quaisquer conflitos de interesse.

Financiamento

O autor não recebeu apoio financeiro para a investigação, autoria e/ou publicação deste artigo.

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Notas

1Eu prefiro sempre descrevê-los como formal e institucionalmente autoritários, já que o autoritarismo como cultura política e societal pode perfeitamente estar presente em regimes que habitualmente não se descrevem como autoritários.

2Neste sentido, subscrevo a leitura de Álvaro Cunhal logo em 1976 (e que já expus noutro trabalho; cf. Loff, 2022): “o 25 de Novembro representou uma grande derrota da Esquerda militar […] e o desaparecimento […] do MFA como movimento militar revolucionário organizado. Mas não representou a derrota definitiva da Revolução, como alguns se apressaram a concluir”, porque “a democracia portuguesa é filha da Revolução” e “a institucionalização da democracia, a elaboração, promulgação e entrada em vigor da Constituição, é um resultado direto do levantamento militar do 25 de Abril, da luta do povo e das forças armadas que se seguiu para instaurar de facto as liberdades, conferir-lhes um conteúdo político, social e económico, defendê-las contra a reação e assegurar o prosseguimento do processo democrático” (Cunhal, 1994, pp. 210, 221).

3Nem aqui o argumento cola: a diferença da performance eleitoral dos dois partidos foi, contudo, pequena até, pelo menos, 1979, já passados os dois processos transicionais. O PCP obteve nas duas primeiras eleições democráticas (1975 e 1976), as realizadas durante o período de democratização enquanto tal, 12,5% e 14,4% dos votos, respetivamente; e o Partido Comunista de Espanha (PCE) - incluído o seu braço catalão, o Partido Socialista Unificado da Catalunha - obteve nas duas primeiras eleições democráticas espanholas (1977 e 1979) 9,3% e 10,8% dos votos. Só a partir de 1979, já terminados os processos de transição em ambos os países, é que o percurso eleitoral dos dois se desvia claramente, com a frente eleitoral Aliança do Povo Unido a obter resultados entre 16,8% e 18,8% nas três eleições legislativas de 1979, 1980 e 1983, enquanto o PCE, enquanto tal, desceu para 4% em 1982. Cf., por exemplo, Comissão Nacional de Eleições (https://cne.pt/content/eleicoes-referendos-resultados-oficiais) e datoselecciones.com (https://www.datoselecciones.com/elecciones-generales).

4Cf. Comissão Nacional de Eleições, https://cne.pt/content/eleicoes-referendos-resultados-oficiais.

Recebido: 31 de Agosto de 2023; Aceito: 31 de Janeiro de 2024

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