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Media & Jornalismo

Print version ISSN 1645-5681On-line version ISSN 2183-5462

Media & Jornalismo vol.18 no.33 Lisboa Nov. 2018

 

ARTIGO

 

Relações públicas governamentais e construção da identidade nacional: o caso das presidências abertas de Armando Guebuza em Moçambique

 

Government public relations and national identity building: the open presidencies of Armando Guebuza in Mozambique

 

Relaciones públicas gubernamentales y construcción de la identidad nacional: el caso de las presidencias abiertas de Armando Guebuza en Mozambique

 

 

Stélia NetaI; Gisela GonçalvesII

I Ministério da Economia e Finanças Av. 10 de Novembro, n.º 929 — Maputo – Moçambique. E-mail: stelianeta350@gmail.com
II Universidade da Beira Interior, Faculdade de Artes e Letras, Labcom. Ifp, 6200, Covilhã – Portugal. E-mail: gisela.goncalves@labcom.ubi.pt

 

 


RESUMO

Moçambique é uma democracia recente e fortemente dividida a nível socioeconómico, cultural, político e linguístico. Armando Guebuza, presidente de Moçambique entre 2005 e 2014, colocou no centro da sua estratégia governativa a comunicação com os cidadãos. Com a “Presidência aberta e inclusiva” (PAI), uma estratégia de relações públicas governamentais, instaurou um ciclo de grande proximidade com o povo, especialmente nas zonas rurais. Neste artigo, desenvolve-se uma análise crítica dos discursos de Guebuza no âmbito das PAI, enquanto texto, prática discursiva e sociocultural através de cinco dimensões: (i) léxico; (ii) temas; (iii) contexto histórico; (iv) relacionamento com o público; e (v) identidade nacional. Os resultados indicam que as PAI e as suas práticas discursivas foram desenhadas com o propósito de influenciar significados contribuindo para a consolidação da identidade nacional.

Palavras-chave: Relações públicas governamentais; identidade nacional; Moçambique; Guebuza; análise do discurso


ABSTRACT

Mozambique is a recent and deeply divided society, at socio-economic, cultural, political and linguistic levels. Armando Guebuza, president of Mozambique from 2005 to 2014, placed communication with citizens at the centre of his government strategy. With the “Open and Inclusive Presidency” (PAI), a governmental public relations strategy, he established a cycle of close proximity to the people, especially in rural areas. In this article, a critical analysis of Guebuza’s discourses in the context of the PAI is developed, as a text, discursive and sociocultural practice in five dimensions: (i) lexicon; (ii) themes; (iii) historical context; (iv) relationship with the public; and (v) national identity. The results indicate that the PAI and its discursive practices were designed with the purpose of influencing meanings contributing to the consolidation of the national identity.

Keywords: Government public relations; national identity; Mozambique; Guebuza; discourse analysis


RESUMEN

Mozambique es una democracia reciente y fuertemente dividida a nivel socioeconómico, cultural, político y lingüístico. Armando Guebuza, presidente de Mozambique entre 2005 y 2014, puso en el centro de su estrategia gubernativa la comunicación con los ciudadanos. Con la “Presidencia abierta e inclusiva” (PAI), una estrategia de relaciones publicas gubernamentales, instauró un ciclo de gran proximidad con el pueblo, especialmente en las zonas rurales. En este artículo se implementa una análisis crítico de los discursos públicos de Guebuza en el ámbito de las PAI, como texto, practica discursiva e sociocultural en cinco dimensiones: (i) léxico; (ii) temas; (iii) contexto histórico; (iv) relación con el público; e (v) identidad nacional. Los resultados indican que las PAI y sus prácticas discursivas fueron diseñadas con el propósito de influenciar significados contribuyendo a la consolidación de la identidad nacional.

Palabras-clave: Relaciones públicas gubernamentales; identidad nacional; Mozambique; Guebuza; análisis del discurso


 

 

1. Introdução

Moçambique é uma nação nova. Em 40 anos de existência, a construção da identidade nacional conheceu três importantes momentos. A primeira fase reporta-se aos anos 50 e 60 do séc. xx quando, à semelhança da maioria dos países africanos, o sentimento de identidade nacional de Moçambique emergiu na luta pela independência do colonialismo europeu. Numa segunda fase, o exercício da unidade nacional foi posto à prova por uma guerra civil de 16 anos que agudizou as fissuras político-sociais, nomeadamente, o regionalismo e o tribalismo (Joseph Ki-Zerbo, 2007; Alden, 2001). As primeiras eleições de 1994, dão início à democracia em Moçambique e à terceira fase da construção da identidade nacional. Uma democracia que, apesar das suas idiossincrasias, vigora até hoje.

Armando Emílio Guebuza presidiu ao governo de Moçambique entre 2005 e 2015. No seu discurso de tomada de posse, a 2 de Fevereiro de 2005, apontava o desenvolvimento rural como uma das principais ações da sua governação, dando igualmente enfâse à luta contra a pobreza. Ainda hoje, num país com mais de 24 milhões de habitantes, onde a maioria – aproximadamente 70 % – vive em zonas rurais, mais de metade da população vive no limiar da pobreza (PNUD, 2014:186). A aposta na comunicação com os cidadãos moçambicanos, especialmente das zonas rurais, esteve desde cedo no centro da sua estratégia governativa. Desde o início do seu primeiro mandato, Guebuza instaurou um ciclo de grande proximidade com os cidadãos através da estratégia conhecida por “Presidência aberta e inclusiva” (PAI). Com esta estratégia, o presidente abandonava a Ponta Vermelha, a sede oficial em Maputo, para viver e governar o país a partir de locais humildes, em diversas partes do território.

Os discursos públicos do presidente, a ação comunicacional com maior visibilidade e repercussão mediática no âmbito da presidência aberta, constituíram um elemento central das relações públicas governamentais. Neste artigo, procuramos analisar as PAI e os discursos de Guebuza de diferentes perspectivas, mas todas com um objetivo comum: determinar em que medida as estratégias de relações públicas podem influenciar a atribuição de significados aos conceitos de identidade e unidade nacional. Na realidade de Moçambique, este é um desafio adicional, uma vez que é uma “sociedade profundamente dividida” (Guelke, 2012), ao nível socioeconómico, cultural e linguístico.

O artigo está organizado em três partes principais. Começa-se por descrever a estrutura e funções de comunicação governamental em Moçambique, e o porquê das PAI se constituírem como uma estratégia de relações públicas governamentais essencial à construção da identidade nacional. De seguida, recorrendo-se à análise crítica dos discurso públicos de Guebuza, no contexto das PAI, discute-se se e como, as suas práticas discursivas foram desenhadas com o propósito de influenciar significados acerca da consolidação dessa mesma unidade nacional.

 

2. A comunicação governamental em Moçambique

O sistema político de Moçambique é presidencialista, ou seja, o Presidente da República é simultaneamente Chefe de Estado e do Governo. Tanto o Presidente da República como os deputados da Assembleia da República são eleitos simultaneamente (eleições gerais) por sufrágio universal, para um mandato de cinco anos, renovável apenas uma vez. O Presidente da República é por isso o epicentro de toda a comunicação governamental de Moçambique.

A comunicação governamental é da responsabilidade do Gabinete de Informação de Moçambique (GABINFO), criado por Decreto Presidencial em Outubro de 1995. Subordinado ao Gabinete do Primeiro Ministro, o GABINFO supervisiona a comunicação de todos os organismos estatais e órgãos de comunicação públicos, presta assessoria ao executivo em questões específicas da área da comunicação, promovendo, entre outros, a divulgação e acesso à informação sobre as atividades governamentais. Compete igualmente a este órgão o registo e licenciamento dos meios de comunicação social.

O GABINFO veio substituir o Ministério da Informação, muito associado à história da censura no país, extinto aquando da adopção do sistema multipartidário, após as eleições de 1994. A aprovação da Lei da Imprensa em 1991 e da Lei do Direito à Informação, em 2014, constituíram dois importantes ganhos na democracia moçambicana. No entanto, continuam a existir queixas de jornalistas sobre a ingerência do Governo na esfera mediática e ataques à liberdade de imprensa (Chichava & Pohlmann, 2010:132-133). Isto explicará, em parte, o porquê de Moçambique, de acordo com o Freedom House Índex, registar 46 no ranking da Liberdade de imprensa (0 = o melhor; 100 = o pior).1

Em paralelo, existe também o Gabinete de Imprensa da Presidência da República que é da exclusiva tutela do Chefe de Estado. O Adido de Imprensa, que dirige o Gabinete de Imprensa do Presidente da República, é o responsável pela comunicação da Ponta Vermelha, sede oficial do governo, e reporta as suas atividades diretamente ao Presidente. Tal como em muitos países ocidentais, a comunicação do governo de Moçambique está centrada numa elite profissional e política que controla a informação e a sua disseminação. Também nas democracias recentes, a comunicação do governo é controlada e usada estrategicamente para exercer o poder (Bennett, 2001:16).

Em 2005, quando o Presidente Guebuza iniciou as PAI, o trabalho do gabinete do Adido de Imprensa da Presidência, constituído por sete funcionários, ganhou visibilidade (Magaia, 2013). Durante as PAI, o Adido de Imprensa e sua equipa tinham entre outras funções a missão de garantir o melhor cenário para o encontro entre o Presidente e o povo, isto é, no Comício popular. O som, a disposição da tribuna, a colocação dos microfones, a organização da sala de imprensa e da sala de conferência de imprensa, a organização dos jornalistas, eram algumas das tarefas da sua equipa.

A interação do Presidente com os cidadãos foi também explorada nas redes sociais. Guebuza tinha páginas no facebook, blog e twitter onde mantinha diálogo com internautas. Aliás, nos últimos anos do seu segundo mandato, as PAI eram transmitidas, em tempo real, através dessas plataformas audiovisuais de comunicação e interação instantâneas. No entanto, não se pode deixar de realçar que, apesar do aumento gradual no acesso à Internet, e de acordo com a Internet Society, ela apenas atinge 5.4 por cento dos cidadãos moçambicanos.2 Acresce ainda o facto de a taxa de analfabetismo em Moçambique se encontrar entre as mais altas do mundo (cerca de 50%), especialmente entre as mulheres e nas zonas rurais.

A presença massiva da política nos meios de comunicação social é fundamentalmente garantida, segundo Boorstin (1961), por “pseudo-eventos”, acontecimentos de autopromoção planeados para terem cobertura mediática, e a própria medida do seu próprio sucesso. A PAI de Armando Guebuza enquadra-se claramente nesta filosofia – uma estratégia de relações públicas, sob gestão do Gabinete de Imprensa da Presidência da República, centrada na organização do “encontro” entre o Chefe de Estado e o seu povo, por meio do comício. Nesta reunião popular, o Presidente interagia diretamente com as pessoas, avaliando, simultaneamente, o nível de suporte local ao programa quinquenal do Governo (Matola, 2009: 8). A cobertura mediática destes eventos era visível tanto nos meios de comunicação regionais como nacionais. Nos primeiros, essencialmente, via rádio, veículo privilegiado e praticamente único das zonas rurais; nos segundos, através da TV e imprensa.

 

3. A presidência aberta enquanto estratégia de relações públicas

A PAI levou a visita presidencial a todos os 128 distritos do país, entretanto alargados para 152 em 2013. No primeiro mantado (2005-2009), Armando Guebuza deslocou-se às sedes distritais e, no segundo (2009-2014) expandiu a sua ação governativa também a outras localidades, num território de cerca de 800.000 km².

Dados da Presidência da República indicam que a PAI era preparada com um ano de antecedência, num trabalho de coordenação entre a Presidência da República, Ministério da Administração Estatal e Governos Provinciais. Por norma, a PAI ocorria durante o primeiro semestre de cada ano, período em que o Presidente visitava, em quatro dias, igual número de distritos por Província, excepto Nampula e Zambézia, as maiores do país, onde permanecia mais dias, visitando cinco distritos de cada.

Uma pesquisa desenvolvida por pesquisadores alemães (Leininger, Heyl, Maihack & Reichenbach, 2012) identifica três etapas das presidências abertas: a preparação, o desempenho e o seguimento. A fase da preparação inclui a seleção dos locais para a visita presidencial. Nesta fase, a equipa partilhava as suas recomendações para adequar os lugares ao padrão mais elevado do Estado, até porque, durante a PAI, o distrito visitado passava a ser a Ponta Vermelha (desde como construir o palanque para o comício, a como mobilar e decorar o quarto ou a casa de banho).

Na parte referente ao desempenho, a PAI propriamente dita, ocorriam as reuniões, primeiro com o Governo Provincial, depois com os administradores, empresários e a visita às infraestruturas e projetos sociais. É nesta etapa que decorre o ponto mais alto da PAI – o comício popular onde as pessoas (5 a 15) têm a oportunidade de falar com o presidente, sobre temas diferentes. Estes encontros não decorriam de forma espontânea, pois nada era deixado ao acaso. De acordo com Leininger et al (2012), os administradores distritais selecionavam prévia e criteriosamente os intervenientes no comício com o Presidente. Portanto, a oportunidade de os cidadãos se dirigirem ao presidente não era acessível a todos. Para impedir críticas demasiado contundentes à administração, evitavam ter como interlocutores os membros da oposição e também certos representantes de organizações da sociedade civil.

Outro momento igualmente importante era sem dúvida a conferência de imprensa, realizada no fim da visita. Momento em que a interlocução com o povo era ampliada, através da imprensa, para os outros moçambicanos.

A terceira fase definida pela pesquisa alemã corresponde ao seguimento. Significa que as questões apresentadas pelos populares eram incorporadas em matrizes para posterior monitorização do desempenho da administração local ao longo do tempo. Portanto, uma tentativa de dar continuidade à relação encetada entre a presidência e o povo.

A deslocação às zonas rurais, todas as atividades desenvolvidas no âmbito da PAI, assim como a cobertura mediática decorrente dos comícios nas diferentes províncias pode ser observada como um mecanismo de construção da identidade nacional. No fundo, todo o evento era fabricado com o intuito de transmitir mensagens e atitudes que dão enfâse ao sentimento de pertença colectiva dos moçambicanos. Um desafio gigantesco, aliás, para qualquer governo em contexto africano, caracterizado por diferentes e marcantes traços linguísticos e étnicos (Chaka, 2014). Mas a questão da identidade nacional deve, justamente, ser pensada em termos de unidade na diversidade. Porque é inegável que continua latente o divisionismo étnico e regional. Os moçambicanos continuam a chama-se pelos rótulos de machangana, manhambana, chicondo, machuabo3, etc.

Neste contexto, pode-se alegar que as PAI, enquanto estratégia de relações públicas governamentais, desempenharam um importante papel no esforço de construção da identidade nacional. Essa importância decorre do seu contributo para a mudança de atitude face o governo. De facto, a aproximação da elite política ao povo demonstrava a vontade de encetar um relacionamento de confiança, uma meta clássica no âmbito do paradigma relacional de relações públicas e no âmbito de qualquer estratégia de construção da identidade nacional (Taylor 2000; Taylor & Kent, 2006).

Mais concretamente, Taylor (2000) defende um visão integracionista4 do papel das relações públicas na construção da identidade nacional, pois vê o estado-nação como uma entidade construída comunicacionalmente. Ao contrário dos estudos de Van Leuven e Pratt (1996), onde concluem que os países de 3º mundo tendem a adoptar modelos unidirecionais de comunicação pública, Taylor defende a adopção de uma comunicação de tipo bidirecional e simétrica (Grunig, 2001), apta a promover relações entre a organização e os seus públicos, baseadas na negociação, confiança e respeito mútuo.

Vários autores discutem o papel fulcral das relações públicas na construção da identidade nacional em democracias emergentes, propensas a conflitos étnicos e à violência. (Taylor & Botan, 1997; Taylor & Kent, 1996; Taylor 2000; Chaka, 2014). Taylor (2000) sugere que a construção da identidade será mais efetiva se as práticas de relações públicas promoverem a participação política e a cooperação entre o governo e seu povo. Na nossa análise das PAI, enquanto estratégia de relações públicas governamentais focada na construção da identidade nacional seguimos essa mesma perspetiva. O facto de as identidades nacionais serem negociadas através do discurso, mobilizando repertórios de símbolos, narrativas e significados adequados às novas necessidades ou experiências históricas, parece ser largamente aceite (Bruner, 2002; Parekh, 1995). Apesar disso, não abundam estudos concretos sobre esse processo discursivo de negociação.

 

4. Questões de investigação e metodologia

Neste artigo pretende-se refletir sobre as PAI, mais concretamente, sobre o discurso político do Presidente Armando Emílio Guebuza, enquanto estratégias de relações públicas governamentais fundamentadas numa comunicação bidirecional de proximidade para promover a consolidação da nação moçambicana. Três questões de investigação conduziram a investigação:

RQ1. Enquanto estratégia de relações públicas, quais eram os principais objetivos das PAI?

RQ2. Os discursos das PAI procuraram contribuir para aumentar o sentido patriótico e de unidade entre os moçambicanos?

RQ3. O mosaico social, cultural e linguístico de Moçambique condicionou o uso da língua oficial portuguesa na comunicação governamental?

Recorreu-se à análise crítica do discurso (ACD) no estudo dos discursos presidenciais. Todas as transcrições foram colectadas no Gabinete de Estudos da Presidência da República de Moçambique, uma fonte oficial. Em 1º lugar, foi desenvolvida uma análise do discurso comparativa e exploratória, para selecionar o corpus de análise. O epicentro da análise residiu na variabilidade discursiva, elegendo comícios que, apesar de apresentarem um orador comum – o Presidente da República, Armando Emílio Guebuza – são dirigidos a públicos heterogéneos, em termos de localização no território e da própria língua.

O corpus da análise selecionado é composto por seis discursos proferidos em comícios populares pelo Presidente Guebuza durante as PAI realizadas entre Abril e Maio de 2007, terceiro ano do seu primeiro mandato, abarcando duas províncias da região norte, duas do centro e duas do sul. Sublinhe-se as razões de três das províncias na amostra terem sido estrategicamente escolhidas: (1) Niassa foi por muito tempo considerada a mais pobre e esquecida; (2) Sofala por ser o centro político dos partidos da oposição5; e (3) a Cidade de Maputo, o hipercentro governamental. Já a seleção dos restantes distritos por província, nomeadamente Nampula, Tete e Inhambane, foi aleatória.

Existem diferentes aproximações à análise crítica do discurso. No nosso estudo seguimos a proposta de Fairclough (2001) e Van Dijk (1997). De um modo geral, os defensores desta abordagem da ACD advogam que cada discurso/texto é desenhado com algum propósito de influenciar significados e, por conseguinte, para moldar conhecimento. Sustentam que se se examinar cuidadosamente as palavras usadas num discurso e observar as metáforas escolhidas é provável que se identifiquem pressupostos que suportam e justificam interesses e posições muitas vezes não reconhecidos (Daymon & Holloway, 2011; Wood & Kroeger, 2000).

 

5. Análise crítica dos discursos de Guebuza

A análise comparativa dos discursos, enquanto texto, prática discursiva e prática sociocultural (Fairclough, 2001),  foi aprofundada através de cinco dimensões: (i) léxico, incluindo vocabulário e gramática; (ii) temas; (iii) contexto histórico; (iv) relacionamento com o público; e (v) identidade nacional.

(i) Léxico

Os discursos apresentam recorrentemente palavras como, nós, nosso, somos, juntos, estamos, povo, e Moçambique. Na predominância do pronome pessoal Nós transparece a intenção de incluir/trazer toda a sociedade moçambicana para o ideal de unidade, tido como necessário para o sucesso da campanha de luta contra a pobreza.

O Presidente usa, estrategicamente, os três tempos verbais. O Presente é usado principalmente na parte inicial do discurso. Alguns exemplos: Quero saudar; quero agradecer ; Tenho duas mensagens. O Passado é geralmente utilizado para evidenciar exemplos do país na superação do colonialismo e da guerra civil, através da união dos moçambicanos. O futuro, por seu turno, é usado no final dos discursos, imprimindo a ideia de perpetuação da ligação do Presidente com o seu povo. O recurso ao Pretérito Imperfeito do Indicativo (ex. Eu queria, Eu estava) configuram a ideia de continuidade, de ações ocorridas num momento anterior ao atual, mas ainda não concluídas, como é o caso da união dos moçambicanos na luta contra a pobreza. Um exemplo já a seguir (negrito adicionado):

(…) O colonialismo que estava em Moçambique por quinhentos anos em 12 anos – porque os moçambicanos estavam unidos – saiu (…) ficamos independentes por causa da unidade que é a grande força (…) E é também por causa da unidade que estava aqui (…) a guerra acabou. Porque unidos nós somos fortes. Unidos não há inimigo que aguenta connosco. (Comício 2)

(ii) Temas

O exercício de comparação dos discursos revelou que todos referem as mesmas temáticas e na mesma sequência. Foram identificados quatro temas principais: (1) Unidade nacional (2) Combate à pobreza (3) Distrito (4) Necessidades locais. A única exceção reside no caso do comício do Distrito Changara, na Província de Tete (comício 2) onde, logo no início, é explorado o tema das eleições provinciais e a importância do voto. Esta diferença pode ter decorrido da agenda mediática da época, que discutia o quadro jurídico das primeiras eleições das Assembleias Provinciais. Coincidência ou não, a verdade é que os dados do pleito eleitoral de 28 de Outubro de 2009, quer das presidenciais e legislativas, quer das assembleias provinciais, revelam que a afluência às urnas na Província de Tete esteve acima dos 95 por cento, enquanto que nos outros distritos apresentava apenas uma média de 30 a 40%. Além disso, em muitas mesas de voto, os resultados apurados indicavam 100% de votos na FRELIMO (MOE-EU, 2009:34).

Outro dos aspectos que sobressai no estudo dos temas reside na variabilidade de assuntos sobre as necessidades locais de cada distrito. Pode-se até argumentar que é nesta secção do discurso que se manifesta a componente mais importante das PAI, pois são aí afloradas as questões de interesse mais direto das populações, refletindo o estádio da própria dinâmica socioeconómica de cada local. Na maior parte dos distritos rurais são aludidos assuntos sobre a saúde, a educação e a gestão dos “7 milhões”, enquanto que no discurso proferido na cidade de Maputo, epicentro governamental, as discussões são em torno de aspectos mais “sofisticados”, como por exemplo: farmácias, seguros, transportes públicos, etc.

(iii) Contexto histórico

A recurso à história, de acordo com Fairclough (2001), contribui para que ocorram processos de intertextualidade mais amplos, antecipando e moldando até textos subsequentes. De facto, nos discursos sob análise, o ideal de unidade é evocado através de histórias de superação e de valorização dos heróis nacionais, com destaque para Eduardo Mondlane. Guebuza recorre a exemplos contrários à unidade, como a distinção étnica ou territorial, justamente para demonstrar o inverso:

(…) as nossas diferentes línguas, as nossas diferentes tradições, as nossas diferentes maneiras de cantar, dançar (…) Eduardo Mondlene disse que isso não era problema. Pelo contrário, isso enriquece o nosso património (…) se os moçambicanos querem a mesma coisa, sendo diferentes, juntarem as suas diferenças e unirem-se, não haverá inimigos que os vença. (Comício 4, negrito adicionado)

(iv) Relacionamento com o público

O público constitui o elemento mais importante das PAI enquanto estratégia de relações públicas governamentais. Apesar de reconhecer as especificidades étnicas e culturais, Guebuza esforça-se para convencer que representa o interesse de todo o “maravilhoso povo moçambicano”, uma expressão recorrente em todos os comícios.

Nos seus discursos, o Presidente emula o diálogo face-a-face na escolha do vocabulário que subentende presença ou proximidade (ex. ouvir, partilhar, aprender), através de perguntas retóricas, nas interjeições de estímulo, com períodos de pausa. Esses intervalos silenciosos são elementos que ajudam a estruturar o discurso, principalmente no que se refere a mudança dos temas. Várias vezes essas mudanças são efectuadas através da sequência de frases interrogativas bem humoradas:

(…) Aqui onde estamos somos diferentes: Aqui há homens. Aqui há mulheres. São iguais? Aqui há crianças. Aqui há adultos. São iguais? Aqui há claros. Aqui há escuros. São iguais? Aqui há magrinhos. Aqui há um bocadinho… (risos) são iguais? (comício 2)

Também o próprio facto de o Presidente se fazer acompanhar por uma comitiva governamental que inclui convidados, por ex. embaixadores e parceiros de cooperação, aponta para o objetivo de aproximação efetiva entre a classe política e os cidadãos.

(v) Identidade nacional

A unidade nacional é um elemento central e transversal nos discursos presidenciais. Fortemente carregado de simbologia, Guebuza usa o termo unidade como catalisador da sua mensagem, e fá-lo de forma muito simples, capaz de ser percebida pelas suas audiências, maioritariamente analfabetos, recorrendo a exemplos prosaicos e a metáforas simples.

O uso da língua oficial portuguesa, herdada do colonialismo, impôs alguma dinâmica na organização das PAI, para garantir a tradução consecutiva intercalada do discurso presidencial para diversas línguas nacionais. Estima-se a existência de 43 línguas nacionais no país, a maioria de origem bantu, mas completamente distintas. Realce-se, no entanto, que em várias ocasiões, o Presidente usa expressões oriundas de línguas nacionais no seu discurso, destacando-se o discurso proferido na cidade de Maputo, em que toda a parte de saudação e apresentação é feita na língua local (XiRonga).

Também a referência ao folclore local nos discursos, nomeadamente, as danças (ex. Makwai, Mapiko, Mandoa, Wunanga), os cânticos, os instrumentos musicais locais (ex. chiquissi) é sinónimo de elevação da identidade nacional de Moçambique. Supõe-se que estas formas de manifestação da cultura nacional aparecem no discurso do Presidente precisamente para, mais uma vez, aprofundar os laços das referências próprias e exclusivas dos moçambicanos.

 

5. Nota conclusiva

Em países pluriculturais e com profundas diferenças étnicas, os governos são desafiados a adoptar estratégias de comunicação que reforcem o sentido de pertença comum. É neste contexto que as relações públicas podem ser praticadas como elemento catalisador de diálogo entre o Governo e a sociedade. As PAI de Armando Guebuza são um exemplo paradigmático deste esforço, ao abrirem espaço para a criação de relacionamentos de proximidade entre a elite governamental e as províncias mais pobres e profundas de Moçambique.

As PAI parecem ter contribuído para aproximar os cidadãos da política. Os discursos do presidente, em especial, enfatizaram a identidade e os valores nacionais, e sobretudo, possibilitaram uma comunicação sem intermediação, entre os populares e o Presidente. No entanto, as condições para os cidadãos entrarem em diálogo com o presidente implicavam uma análise do risco. Logo à partida, os assessores do presidente descartavam as intervenções desfavoráveis. Este ponto leva-nos a indagar se, no essencial, as PAI, não seriam mais um poderoso mecanismo de legitimação do governo e do discurso da FRELIMO e menos uma estratégia simétrica de comunicação (Grunig, 2001) ou de relações públicas participativas (Motion, 2005).

De qualquer forma, e apesar de existirem certamente muitas variáveis que influenciam o voto, a verdade é que em 2004 a abstenção registada foi cerca de 63% enquanto que em 2009 se reduziu para 56%6. A tendência positiva dos votos favoreceu também a FRELIMO e o seu candidato Armando Guebuza – em 2004 é eleito com 63,74% dos votos e no segundo mandato, em 2009, com 75%. Além disso, em 2009, a FRELIMO e o seu candidato foram massivamente votados nas zonas rurais, incluindo regiões tidas tradicionalmente como da oposição. O Distrito do Búzi, um dos locais de amostra deste estudo, é exemplo disso (Pereira e Nhanale, 2014: 7).

Norris e Mattes (2003: p. 1) sustentam que as sociedades com um elevado índice de analfabetismo são marcadas por uma democracia “inconsciente”, no sentido de os potenciais eleitores não possuírem o discernimento necessário para avaliar os partidos e os seus candidatos com base nos seus manifestos eleitorais e programas de governação. Nestas sociedades, sublinham os autores, o apelo identitário cria um maior vínculo dos indivíduos aos partidos do que quaisquer planos e objectivos de governação apresentados. Esta tese parece aplicar-se ao caso em análise.

A ACD sugere que os discursos foram, efetivamente, uma ferramenta de consolidação da unidade nacional. A mensagem de combate à pobreza a partir dos Distritos, e associada à iniciativa do Orçamento de Investimento de Iniciativa Local (OIIL), vulgos “7 milhões”, destinado ao financiamento a projetos locais, também sortiu resultados positivos. Apesar de algumas vicissitudes, nomeadamente queixas sobre a alegada falta de clareza sobre os critérios de atribuição e aplicação do orçamento, e a par com algumas reformas estruturantes no âmbito da macroeconomia e da governação, dados recentes sobre o progresso do Plano de Ação para Redução da Pobreza (PARP) do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional indicam que Moçambique subiu no Ranking do Doing Business e que os níveis de pobreza têm igualmente decrescido, ainda que de forma modesta. (FMI, 2014:20).

O próprio mosaico plurilinguístico levou ao reforço do uso da língua portuguesa, herdada do colonialismo, enquanto língua oficial nas comunicações oficiais do presidente no âmbito das PAI. A grande vantagem da língua oficial portuguesa é estar mais disseminada pelo país, contrariamente às línguas nativas que estão circunscritas às localidades e são muito distintas. Ao dar primazia à língua portuguesa, o governo não se mostrou tendencioso por uma ou mais línguas nacionais, o que também terá contribuído para a mensagem de unidade.

Em suma, com uma “pedagogia de governação democrática” (Sitoe, 2014), Armando Guebuza implementou uma estratégia de relações públicas com o objetivo de educar a sociedade moçambicana no sentimento de pertença nacional, com efeitos na crescente participação política dos cidadãos. A ordem do discurso, a linguagem utilizada e a inter-relação de ideias, tal como propõe Fairclough (2001), enfim, toda a retórica presidencial soube potenciar e estimular os valores da “moçambicanidade”, com potenciais efeitos redutores nas diferenças étnicas entre a população. Os discursos do Presidente serviram também para estabelecer uma comunicação bilateral mais próxima e efetiva junto do cidadão, através da descentralização e reforço da Administração Local do Estado (Conselhos Consultivos). Esta táctica permitiu construir as bases de um relacionamento de confiança entre as partes porque o cidadão rural, antes desprovido dos mais elementares serviços sociais, passou a ter na sua comunidade o poder executivo do Estado.

 

 

Referências Bibliográficas

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Recebido | Received | Recebido: 2018-02-20
Aceite | Accepted | Aceptación: 2018-05-10

 

 

Notas

1 Mais informação sobre os índices da Freedom House estão disponíveis aqui: https://freedomhouse.org/report/freedom-press/2016/mozambique
2 Global internet report 2014, Internet Society consultado a 20 de Maio de 2016 [url] https://www.internetsociety.org/sites/default/files/Global_Internet_Report_2014.pdf
3 Designação as pessoas de acordo com a sua origem étnica e regional.
4 Para uma análise mais aprofundada da visão integracionista da construção da identidade nacional ver por ex., Deutsch, 1966a; Deutsch, 1966b.
5 Nas legislativas, a tendência de voto do círculo eleitoral de Sofala recai habitualmente na oposição (Partido RENAMO). O Município da Beira, capital de Sofala, é inclusivamente gerido pela terceira força política do país, o Movimento Democrático de Moçambique (MDM) sob a liderança de Daviz Mbepo Simango.
6 De acordo com os dados do STAE, a abstenção foi de 12% em 1994, 30% em 1999, 63% em 2004 e 56%em 2009.

 

 

Notas biográficas

Stelia Neta é Diretora Nacional Adjunta de Coordenação Institucional e Imagem no Ministério da Economia e Finanças de Moçambique.
É Doutorada em Ciências da Comunicação (2017) e Mestre em Comunicação Estratégica (2013), pela Universidade da Beira Interior, Portugal; Licenciada em Jornalismo (2005), pela Universidade de Coimbra, Portugal.

Gisela Gonçalves é Doutora em Ciências da Comunicação pela Universidade da Beira Interior. Presidente do Departamento de Comunicação e Artes da UBI. Investigadora integrada no LabCom.IFP – Centro de Investigação em Comunicação, Filosofia e Humanidades. Vice-coordenadora da secção de Comunicação Estratégica da ECREA. Principais áreas de investigação: teoria das relações públicas, ética da comunicação e comunicação política.

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