O homem tem sofrido sempre da falta de um olho na nuca, e sua atitude cognitiva só pode ser problemática, porque ele nunca estará seguro do que existe às suas costas, isto é, não tem como verificar se o mundo continua entre os pontos extremos que consegue ver exorbitando as pupilas para a esquerda e a direita. (Calvino, 1991/2007, p. 227)
Introdução
O presente artigo toma como foco de reflexão a inclusão educacional de pessoas com deficiência, à luz da teoria crítica da sociedade (TCS), na tentativa de ampliar nosso olhar em relação a essa temática para além dos “pontos extremos”, possíveis de vislumbrar, mesmo “exorbitando as pupilas”, como sugere a metáfora de Calvino (1991/2007, p. 227) citada na epígrafe que abre nossos escritos. À primeira vista, refletir sobre educa ção inclusiva pode até parecer algo ultrapassado, visto que muito tem se debatido sobre este tema. Contudo, quando percebemos o fosso existente entre as inúmeras proposições inclusivistas e a dura realidade de exclusão socioeducacional vivenciada pelas pessoas com deficiência no mundo, sobretudo no Brasil, onde elas mal conseguem acessar a escola, verifica-se a necessidade de aprofundar essa temática. Portanto, torna-se urgente estabelecer uma reflexão crítica do que nomeamos como “educação inclusiva”, numa perspectiva analítica, pautada em referências que possam desestabilizar o próprio pensar instituído acerca do exposto.
O que mobilizou a escrita desse estudo, de natureza bibliográfica, foi analisar os desafios e as possibilidades para a inclusão de pessoas com deficiência no contexto socioeducacional contemporâneo. Nesse sentido, buscamos, inicialmente, abordar as possíveis contradições da educação inclusiva que revelam desafios a serem superados; e na sequência, discutiremos as possibilidades da formação como um caminho para despertar a identificação com a diversidade humana que nos compõe, perseguindo, sempre que possível, um modo de pensar dialético e reflexivo.
Contradições da Educação Inclusiva na Contemporaneidade
A discussão sobre a inclusão educacional ganhou mais fôlego a partir da década de 1990, no século passado, principalmente na área de educação, no campo das ciências humanas, devido à pressão dos movimentos sociais em defesa dos direitos das pessoas com deficiência. Nesse contexto foram publicados alguns documentos internacionais e nacionais de políticas públicas de educação inclusiva, dentre os quais cabe destacar no âmbito internacional: a Declaração Mundial Sobre Educação Para Todos (1990), a Declaração de Salamanca (1994), a Convenção Interamericana para Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Pessoas Portadoras de Deficiência (Decreto nº 3.956, 2001), a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (Decreto nº 6.949, 2009). Já no Brasil destacamos: a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei nº 9.394, 1996), a Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva (Dutra et al., 2008) e a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (2015).
Ressaltamos que a legislação brasileira possui um número muito grande de publicações que tentam garantir os direitos das pessoas com deficiência, algumas delas reescritas de diversas maneiras como, por exemplo, a que proíbe instituições de ensi no de recusarem a matrícula de estudantes com deficiência ou transtornos globais de desenvolvimento, mas que segue sendo uma prática comum em muitas escolas. Ao se analisar de forma mais aprofundada a historicidade da legislação brasileira sobre essa temática, observamos que as publicações seguem as tendências dos discursos internacionais, sem que necessariamente haja uma mudança de atitude política e social para a elaboração de tais documentos.
Ao longo desse tempo, muitos estudos e pesquisas foram realizados abordando a inclusão educacional e a educação inclusiva como se tratasse de um conceito único. De acordo com Bueno (2008), “a inclusão escolar refere-se a uma proposição política em ação, de incorporação dos alunos que tradicionalmente têm sido excluídos da escola, enquanto que a Educação Inclusiva refere-se a um objetivo político a ser alcançan do” (p. 49). Para o autor, não se trata apenas de substituir nomenclaturas para indicar a inserção de “alunos de inclusão”1 em instituições educacionais regulares, mas sim de destacar que a inclusão educacional pressupõe a ação de matricular alunos historicamente excluídos da escola em instituições educacionais regulares, em cumprimento com a legislação vigente. Por outro lado, a educação inclusiva é objetivo político para ser alcançado a curto, a médio e longo prazo por meio de inúmeras ações que favoreçam diferentes formas de aprendizado, assegurando o respeito às diferenças e valorizando a diversidade humana.
A diferenciação entre os dois termos pode apontar para uma análise mais aprofundada da temática. Todavia, consideramos que o mais relevante dessa discussão não esteja na escolha de uma definição, mas na plena compreensão de que quando a educação2 for efetivamente inclusiva não será mais necessário adjetivá-la e/ou diferenciá-la da inclusão educacional. A verdadeira educação deve proporcionar a todos(as) o pleno desenvolvimento, oferecendo, por meio da formação, alternativas de aprendizagens que favoreçam identificar potencialidades e superar desafios. Do contrário, corremos o risco de (re)produzir uma pseudoformação/semiformação (Adorno, 1972/2010) por compactuar com a injustiça social que predispõe indivíduos e/ou grupos sociais ao preconceito e à discriminação social, invariavelmente incompatíveis com os princípios que regem a educação inclusiva.
Utilizamos o conceito de pseudoformação/semiformação definido por Adorno (1972/2010), ao afirmar que os indivíduos estão sendo submetidos desde o nascimento a se moldar na cultura, a se adequar à sociedade, o que leva apenas a uma adaptação ao meio cultural. Adorno (1972/2010) defende que “a formação cultural agora se converte em uma semiformação socializada, na onipresença do espírito alienado, que, segundo sua gênese e seu sentido, não antecede à formação cultural, mas a sucede” (p. 9). Afirma ainda que “apesar de toda a ilustração e de toda a informação que se difunde (e até mesmo com a sua ajuda) a semiformação passou a ser a forma dominante da consciência atual” (Adorno, 1972/2010, p. 9).
É preciso perceber e anunciar os desafios inerentes à inclusão educacional, resultantes das condições sociais objetivas, sem deixar de apostar nas suas possibilidades, principalmente no que refere à postura de oposição radical aos processos de exclusão socioeducacional que apenas destacam as necessidades especiais do indivíduo, em detrimento das condições das instituições educacionais que dificultam e/ou impedem a formação, substituindo-a por mera adaptação. Como as condições das instituições educacionais permanecem inalteradas, as barreiras da aprendizagem, em geral, tendem a ser ainda mais intensificadas para aqueles estudantes que tradicionalmente têm sido excluídos da escola, porque não se enquadram nos padrões de normalidade instituídos pela cultura. Este fato suscita constantemente o florescimento de atitudes de preconcei to em relação à própria inclusão educacional. Reiteramos que apontar as dificuldades que obstam a inclusão educacional, dentre as quais a presença de preconceitos, não significa discordar dessa proposição, indica, antes de tudo, a necessidade de fazer enfrentamento ao que está posto, com compromisso de vislumbrar alternativas viáveis para confrontar tais impedimentos.
Reconhecer a presença de barreiras em relação à inclusão educacional talvez se constitua como “primeiro passo” para localizar os bloqueios no indivíduo e, consequentemente, na sociedade, que os tornam contrários à experiência inclusiva. Tais entraves carecem de ser retratados porque revelam a existência de uma cicatriz com a qual temos de conviver, cientes de suas causas, para tentar resistir aos riscos da proliferação de novas feridas, sobretudo daquelas (im)postas pelo tecido social, em função do cerceamento da experiência. Nesse sentido, Adorno (1970/1995) nos adverte:
é preciso reconhecer os mecanismos que tornam as pessoas capazes de cometer tais atos, é preciso revelar tais mecanismos a eles próprios, procurando impedir que se tornem novamente capazes de tais atos, na medida em que se desperta uma consciência geral acerca de tais mecanismos. (p. 121)
Esses mecanismos, apontados por Adorno, são originados por determinações psíquicas e sociais que se encontram inter-relacionadas desde a sua gênese, conforme os pressupostos da TCS. Cônscios de nossa predisposição para os referidos mecanismos, resultantes da trama das contradições inerentes ao modelo de sociedade em que vivemos, talvez seja possível ampliar o nosso olhar para vislumbrar alternativas que favoreçam o início de uma inclusão educacional mais plena, mesmo diante dos desafios que impedem e/ou dificultam o seu florescimento no contexto socioeducacional contemporâneo.
Educação Inclusiva: A Formação Como um Caminho Para Despertar a Identificação com a Diversidade Humana que Nos Constitui
Pensar a educação inclusiva não é uma tarefa fácil porque pressupõe uma análise contextualizada, na medida em que não existe uma perspectiva de inclusão educacional única num país ou numa instituição educacional que seja universal. Ainscow (2009) afirma que “grupos diferentes em contexto diferentes pensam sobre inclusão de forma diversa e que não há uma definição única e consensual” (p. 21). O referido autor resumiu algumas formas de pensar a inclusão e apresenta uma análise das tendências internacionais em relação à educação inclusiva dentro de cinco perspectivas conceituais:
“Inclusão referente à deficiência e à necessidade de Educação Especial: a eficácia dessa abordagem tem sido questionada, uma vez que, ao tentar aumentar a participação dos estudantes com deficiência, a educação enfoca a parte da deficiência ou das necessidades desses estudantes e ignora as outras formas em que a participação de qualquer estudante pode ser impedida ou melhorada. ( … ) No entanto, ao rejeitar a idéia de inclusão vinculada a necessidades educacionais especiais, há o perigo do desvio da atenção da contínua segregação vivida por estudantes com deficiência”.
“Inclusão como resposta a exclusões disciplinares: se a inclusão é mais comumente associada a crianças classificadas por terem necessidades educacionais especiais, então, em muitos países, sua conexão com mau comportamento está bem próxima. ( … ) A exclusão disciplinar não pode ser entendida sem estar ligada aos eventos e as interações que a precedem, a natureza dos relaciona- mentos e a abordagem do ensino e da aprendizagem na escola”.
“Inclusão que diz respeito a todos os grupos vulneráveis à exclusão: há uma tendência crescente de ver a exclusão na educação de forma mais ampla, em termos de superação da discriminação e da desvantagem em relação a quaisquer grupos vulneráveis a pressões sociais. ( … ) Este uso mais amplo da linguagem da inclusão e da exclusão é, portanto, um tanto fluido. Ele parece indicar que pode haver alguns processos comuns que ligam as diferentes formas de exclusão experimentadas por, digamos, crianças com deficiência, crianças que foram excluídas de suas escolas por razões disciplinares e pessoas que vivem em comunidades pobres”.
“Inclusão como forma de promover Escola para Todos: tem como premissa o desejo de criar um tipo único de escola para todos capaz de servir uma comunidade socialmente diversificada. Entretanto, esta ênfase não foi seguida de um movimento igualmente forte de reforma da escola regular para aceitar e valorizar a diferença. ( … ) Houve destaque para assimilação daqueles estudantes percebidos como diferentes dentro da homogeneidade da normalidade, em vez da transformação pela diversidade”.
“Inclusão como Educação para Todos: o movimento Educação para Todos (EPT) foi criado nos anos 1990 em torno de um conjunto de políticas internacionais, coordenado principalmente pela UNESCO, e relacionado com acesso e a participação crescente na educação em todo o mundo. ( … ) Em resposta ao fracasso de muitos países em atingir os objetivos uma década antes, os organizadores procuraram enfatizar áreas específicas em que possa haver progresso. ( … ) Apesar do aparente progresso havido visando chamar atenção para as possibilidades de um sistema educacional inclusivo para todas as crianças, especificamente incluindo crianças com deficiência, isto só aconteceria na Declaração de Salamanca em 1994”. (Ainscow, 2009, pp. 14-18)
Após a publicação da Declaração de Salamanca3, alguns países esboçaram algumas iniciativas para transformar suas políticas em defesa da inclusão educacional (Mittler, 2000/2003). Pesquisas e estudos, como os de Ainscow (2009), Mittler (2000/2003), dentre outros, demonstram que geralmente a inclusão educacional em países em desenvolvimento é mais difícil de ser efetivada, pois falta apoio institucional e financeiro para atender às necessidades educacionais especiais dos alunos em situação de inclusão. Já em países considerados desenvolvidos, existem programas específicos de apoio institucional e de assistência financeira do Estado para prover tais políticas, contudo, nem sempre a proposta de inclusão educacional é acolhida por esses países: em Espanha, país que sediou o nascimento da referida declaração, existem muitas críticas à proposta de inclusão (Pacheco et al., 2007); assim como em Portugal, onde a inclusão educacional é amparada pela legislação oficial, mas, paralelamente, o Estado apoia também a criação de novas escolas especializadas.
Em relação à América Latina, Rodriguez (2012) traçou um panorama das práticas educativas inclusivas, evidenciando que, de modo geral, os limites para efetivação de uma Educação Inclusiva nessa região - considerada uma das mais desiguais do mundo - estão diretamente relacionados às condições de pobreza, visto que:
sem dúvida, a pobreza na América Latina é uma derivação clara da distribuição desigual dos recursos e do acesso desigual à produção, mas, ao mesmo tempo, também gera características que a tornam mais complexa e difícil de ser resolvida. Uma das características que mais preocupa é a perda de capital social, que se reflete em graves problemas de violência e insegurança social (ênfase adicionada), e a outra é a fragmentação do Estado, que resulta em planejamento deficiente e ações dispersas e pouco efetivas. tentando resolver a situação. (Rodriguez, 2012, p. 70)
Essa situação parece que favoreceu a maioria dos países latino-americanos, dentre os quais o Brasil, a aderir as políticas de inclusão educacional propostas pela Unesco e demais agências internacionais, na perspectiva de que os esforços empreendidos para efetivação destas políticas alavancassem mudanças, ao menos, para conter a propagação dos processos de exclusão por meio do discurso da inclusão.
No Brasil, verificamos que nas últimas décadas houve um aumento acentuado no número de matrículas de alunos com deficiência em instituições regulares em todos os segmentos de ensino, desde a educação infantil ao ensino superior, conforme indicam dados apresentados no documento da própria Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva (Dutra et al., 2008). Dados mais recentes, divulgados pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (2010, 2021) sobre o censo escolar de 2010 e 2020, revelam que nos últimos 10 anos, o número de alunos com deficiência e transtornos globais do desenvolvimento matriculados em classes comuns de escolas públicas aumentou 85%. Em 2010 eram 702.603 e em 2020,
de estudantes da educação especial4, destes 92,8% em classes regulares.
Porém, as condições de acesso, de permanência e determinalidade de curso para estudantes com deficiência no sistema educacional brasileiro permanecem precárias na maioria das instituições educativas. Apesar de os sistemas educacionais destinarem recursos para efetivação dessas políticas, o cenário da educação no Brasil ainda permanece precário, especialmente no que tange a escolarização de pessoas com deficiên cia. Caberia até questionarmos a destinação desses recursos, conforme aponta Bueno (2008), mas essa temática merece uma discussão mais aprofundada que daria origem a outro estudo. Consideramos que os obstáculos enfrentados para a implementação da proposta de inclusão educacional em países como o nosso, talvez estejam relacionados, dentre outras questões, com a análise feita por Martins (1997) acerca do significado das políticas de inclusão em contextos de exclusão. No entender deste sociólogo, as políticas de inclusão podem até, involuntariamente, conduzir os “incluídos” para uma “inclusão precária, instável e marginal” (Martins, 1997, p. 20), em função da manutenção do sistema capitalista que se (re)produz no interior das instituições formadoras, como é o caso da família, da escola, da universidade, entre outras.
As concepções de inclusão categorizadas por Ainscow (2009), citadas anteriormente, foram gestadas em contextos internacionais diversos e, consequentemente, apresentam perspectivas conceituais diferenciadas. O referido autor cotejou uma possibilidade adicional de pensar a educação inclusiva, na pesquisa realizada em escolas inglesas, em 2006, juntamente com outros estudiosos da área. Eles partem do princípio de que esta proposta deve estar atrelada aos “valores inclusivos referentes à igualdade, à participação, à comunidade, à compaixão, ao respeito pela diversidade, à sustentabilidade e ao direito” (Ainscow, 2009, p. 19).
Comungamos com este princípio de pensar a educação inclusiva, mas salientamos que a construção de valores na formação se deve iniciar na infância, como sugere Adorno (1970/1995). Todavia, uma educação voltada para desenvolvimento de valores humanos desde a primeira infância depende, consubstancialmente, da efetivação de uma política educacional coletiva assumida, concomitantemente, pelo indivíduo e pela sociedade, protagonizada por gestores, professores, pais, alunos/estudantes, funcionários administrativos e a comunidade em geral, comprometidos em assegurar uma formação pautada na experiência e na autorreflexão crítica, conforme pressupostos da TCS. Do contrário, corremos o risco de impor valores em fases posteriores de difícil assimilação para indivíduos marcados por vivências traumáticas, geralmente resultantes do preconceito, que podem dificultar e/ou impedir as possibilidades de florescimentos de tais valores.
Uma educação voltada para formação de valores humanos implica a possibilidade do reconhecimento de si mesmo e do outro enquanto indivíduos, invariavelmente, pertencentes ao universal humano, cúmplices de direitos e deveres comuns, necessários a uma vida digna. Nesse sentido, Silva (2015) indica:
a formação na perspectiva da educação inclusiva deve possibilitar a sensibilização das pessoas, em ver o outro como sujeito de direito, cujas potencialidades são diferentes, e por isso, não podem ser vistas de acordo com os padrões de “normalidade” ou de “uniformidade” das capacidades das pessoas, como se fosse possível formatá-las. (p. 100)
Uma educação inclusiva pressupõe uma formação que possibilite, no desenvolvimento do processo de socialização, a oportunidade de nos diferençarmos para perceber o quanto somos diversos e, posteriormente, compreender que essa diversidade nos torna, dialeticamente, semelhantes. Assim, Crochick et al. (2013) defendem que “a identificação não implica o ser idêntico, mas sim a necessidade de um acervo cultural universal, acervo esse incorporado pelos indivíduos permitindo-se expressar as diferenças” (p. 21). Por isso, o processo de individuação é produto da socialização, somos socializados para nos diferençar, trata-se de um processo que supõe alteridade e conquista da autonomia. Em outros termos, podemos afirmar, como aponta Crochick (2011), que o processo de individuação ocorre mediante nossa possibilidade de nos diferençar, na medida em que somos incentivados a expressar nossas diferenças e, concomitantemente, aprendemos a acolher as diferenças dos outros. Em contrapartida, a cultura geralmente nos impõe a um processo de idealização em que somos forçados a aceitar e assimilar, invariavelmente, padrões normatizados pela sociedade, em geral, incoerentes com as identidades socialmente negadas. Quando somos cerceados da possibilidade de individuação, aprendemos, inconscientemente, a negar as nossas diferenças não aceites pela cultura e/ou pela civilização, porque nos “socializamos a reboque”, impossibilitados de nos diferençar, de reconhecer quem realmente somos, e, consequentemente, não suportamos reconhecer a diferença no outro por nos fazer lembrar da nossa subalternidade diante das condições sociais objetivas.
Até que ponto é possível vislumbrar a educação inclusiva, na perspectiva dos valores definidos por Ainscow (2009), em contextos sociais que dificultam e/ou impedem o processo de individuação? É a individuação, ou seja, o processo de diferenciação individual que nos conduz a identificação com “um dos semelhantes”, condição fundamental para constituição de nossa natureza humana, pois, “mesmo antes de ser indivíduo o homem é um dos semelhantes, relaciona-se com os outros antes de se referir explicitamente ao eu; é um momento das relações em que vive, antes de poder chegar, finalmente, à autodeterminação” (Horkheimer & Adorno, 1956/1973, p. 47).
Portanto, a identificação resultante do processo de individuação nos torna capaz de nos diferençar e, dialeticamente, nos potencializa a acolher as inúmeras manifestações de diferença inerentes à diversidade humana que também nos constitui. Assim, nos tornamos naturalmente predispostos a incluir, na medida em que nos identificamos com o outro. A identificação, conforme aponta Crochick (2011), “pode ser definida como a busca do universal no particular, a sua negação diz respeito a esse universal: o outro não é reconhecido em sua humanidade” (p. 37). Assim sendo, é impossível pensar a inclusão educacional do outro que não é reconhecido em sua humanidade como um de nós - na “dor e na delícia de ser o que é”5 e/ou quem é - porque, para ser incluído, é preciso, antes de tudo, se reconhecer e, também, ser reconhecido pelo universal humano que nos torna parte integrante da diversidade humana, independentemente das nossas diferenças e/ou particularidades de origem social, econômica, cultural, física, cognitiva, sensorial, étnica, religiosa, entre outras.
Desta maneira, para que a educação inclusiva de fato se efetive, é preciso que ocorra a identificação entre os indivíduos advinda da certeza de pertencimento de todos os homens e mulheres ao universal humano, capaz de incorporar cada particular (diferente) como parte imprescindível da diversidade humana. Do contrário, os valores inclusivos sugeridos por Ainscow (2009) caem por terra, pois estes tendem a sucumbir diante das ciladas impostas por processos de socialização excludentes aos quais somos, constantemente, submetidos.
Cabe ressaltar que o problema da inclusão educacional ultrapassa as proposições dos documentos e das políticas públicas. Pressupomos que está vinculado às próprias condições de vida e de sobrevivência de educandos e de educadores e da população como um todo. Contudo, não se pode subestimar a relevância das políticas públicas para alavancar as possibilidades e evidenciar os desafios da educação inclusiva, especialmente quando tomamos como parâmetro a análise e a reflexão crítica do impacto das referidas políticas em curso nos diferentes contextos educacionais. Por isso, necessitamos pensar a inclusão a partir de um referencial que nos possibilite compreender as contradições elencadas nessa reflexão.
Quando a formação cultural não permite a nossa individuação e nos impõe uma socialização forçada, baseada nos modos de produção capitalista, a identificação tende a ser negada e/ou substituída pela idealização. Na identificação, a idealização pode aparecer quando estamos diante de algo ou de alguém desconhecido/diferente, mas à medida que temos a possibilidade de fazer a experiência com aquele(a) ou com aquilo que nos causa estranhamento, a idealização pode se metamorfosear em identificação, uma vez que, descobrimos a metáfora humana similar em outras espécies da natureza: lagartas gestam borboletas em seus casulos, mas é preciso reconhecer o poder de transcendência da lagarta presente no casulo.
Mediante o processo de individuação que ocorre por meio da possibilidade de diferenciação do indivíduo na sociedade, o processo de socialização tende a ser favorecido, pois dada a oportunidade de se perceber como diferente e de ter acolhida a sua diferença, fica latente no indivíduo a necessidade de acolher, incondicionalmente, a diferença no outro. Em contrapartida, no processo de socialização em massa, quando a individuação é negada previamente, abortam-se as possibilidades de acolhimento da diferença, de si e do outro, já que sempre se impõem modelos para se “clonar a borboleta”, retomando a metáfora citada. Dessa forma, ao invés de reconhecer na existência da lagarta a presença latente da borboleta, a cultura de massa, de antemão, menospreza e desvaloriza as possibilidades de expressão da “lagarta”, representada pela diversidade humana. Assim, idealiza-se a condição de borboleta, negando a transcendência representada pelo casulo, inerente à espécie. Para romper com esse ciclo, que culmina na negação social da diferença, é preciso compreender, como aponta Crochick (2011), que “em cada particular, a diferença enuncia outra possibilidade de ser, o que fortalece a individuação e a sociedade” (p. 34).
Em geral, na nossa formação, a identificação não é estimulada, mas fortemente negada, seja na família, na escola, na universidade, nas ordens religiosas, no mundo do trabalho, nas mídias, dentre outras instituições responsáveis pela nossa formação cultural. Ao negarmos a identificação com o outro, negamos a nós mesmos, visto que, se pertencemos à diversidade humana, a diferença é a nossa principal característica, independente de nossas escolhas e/ou particularidades. Assim, “essa negação é ilusória, pois claramente o que há de humano pode ser reconhecido em todas as pessoas; quem nega a identificação tem de forçar o desconhecimento de que algo em si mesmo é comum ao outro e vice-versa” (Crochick, 2011, p. 37). Perceber e identificar os processos que podem nos levar a negar a presença do outro em nós é de fundamental importância para se evitar o fortalecimento de uma formação cultural desfavorável ao desenvolvimento de valores inclusivos.
Como já foi dito, a possibilidade de refletir criticamente sobre si mesmo e sobre o outro deveria ser estimulada em nossa formação desde a primeira infância. Porém, para que isso ocorra, faz-se necessário pensar sobre os significados da nossa própria formação na contemporaneidade: como a nossa formação interfere na constituição de nossos valores? Em que medida nossa formação se encontra comprometida com a “emancipação dos homens”6? Como se justificam as desigualdades sociais em sociedades que já produziram conhecimentos e tecnologias suficientes para superá-las? Qual é o papel de uma formação que convive com a injustiça social e, paralelamente, não admite a manifestação das diferenças pertinentes à diversidade humana? Como fomentar o desenvolvimento de valores humanos na formação, numa sociedade em que o sofrimento e a morte são banalizados cotidianamente?
Esses questionamentos se mostram coerentes com o que já foi defendido por Adorno (1970/1995), quando evidenciou a incoerência da coexistência de tantos avanços tecnológicos e científicos com um aumento na mesma intensidade das desigualdades sociais. Nota-se nos seus escritos, que já há algum tempo este autor (Adorno, 1970/1995) indicava a necessidade dos objetivos educacionais estarem voltados a nos tornar humanos, pois
estando na civilização do mais alto desenvolvimento tecnológico, as pessoas se encontrem atrasadas de um modo peculiarmente disforme em re lação a sua própria civilização − e não apenas por não terem em sua arrasadora maioria experimentado a formação nos termos correspondentes ao conceito de civilização, mas também por se encontrarem tomadas por uma agressividade primitiva, um ódio primitivo ou, na terminologia culta, um impulso de destruição, que contribui para aumentar ainda mais o perigo, de toda esta civilização venha explodir, aliás uma tendência imanente que a caracteriza. Considero tão urgente impedir isto que eu reordenaria todos os outros objetos educacionais por esta prioridade. (p. 155)
Para incentivar permanentemente o desenvolvimento de valores humanos pautados na justiça social, na solidariedade, na cultura da paz, na cooperação e na ética, a formação precisa, urgentemente, se contrapor ao modelo social que a produz. Esses questionamentos evidenciam como estamos distantes de uma verdadeira formação e denunciam, concomitantemente, a necessidade urgente de uma formação que nos estimule, ao máximo, a estranhar e, principalmente, nos indignar diante das condições de vida precária que dificultam e/ou impedem nossa individuação e, consequentemente, inviabiliza a educação inclusiva. Mais uma vez, nas palavras de Adorno (1972/2010) “a única possibilidade de sobrevivência que resta à cultura é a autorreflexão crítica sobre a semiformação, em que necessariamente se converteu” (p. 39).
No Brasil, a proposta de educação inclusiva parece vislumbrar esses valores, ao menos nos documentos das políticas públicas, expressos na Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva (Dutra et al., 2008), que define educação inclusiva como:
paradigma educacional fundamentado na concepção de direitos humanos, que conjuga igualdade e diferença como valores indissociáveis, e que avança em relação à idéia de equidade formal ao contextualizar as circunstâncias históricas da produção da exclusão dentro e fora da escola. (p. 5)
No cenário internacional, Ainscow (2009) demonstrou, por meio de pesquisas, os significados dos valores inclusivos e de suas implicações para que a educação inclusiva seja concebida como:
um processo de transformação de valores em ação, resultando em práticas e serviços educacionais, em sistemas e estruturas que incorporam tais valores. Podemos especificar alguns deles, porque são parte integral da nossa concepção de inclusão; outros podemos identificar com um razoável grau de certeza, com base no que aprendemos a partir de experiências. Isto significa que a inclusão só poderá ser totalmente compreendida quando seus valores fundamentais forem exaustivamente clarificados em contextos particulares. (p. 21)
A transformação de valores em ação sugerida por Ainscow (2009) parece estar atrelada à verdadeira formação, que, segundo Adorno (1970/1995), deve se pautar na experiência e autorreflexão crítica, sem as quais toda e qualquer proposta de educação inclusiva, especialmente no contexto contemporâneo, corre o risco de ser abortada desde o seu nascedouro, visto que a negação de valores humanos e/ou inclusivos resulta, basicamente, de uma formação precária, marcada pela ausência da experiência e da autorreflexão crítica que contribui para a proliferação do preconceito e da discriminação social. Quando impedidos do processo de individuação que nos permitiria reconhecer e expressar nossas diferenças, tendemos a não aceitar as diferenças alheias porque nos tornamos incapazes de estabelecer identificações, especialmente com aqueles que apresentam diferenças pertinentes à diversidade humana, menosprezada socialmente em função dos processos de idealização estabelecidos pela nossa formação cultural. Nesse sentido, Adorno (1970/1995) nos adverte: “é necessário contrapor-se a uma tal ausência de consciência, é preciso evitar que as pessoas golpeiem para os lados sem refletir a respeito de si próprias” (p. 121).
Cabe salientar que os valores inclusivos citados por Ainscow (2009) são similares aos valores defendidos na Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), que devem ser incorporados por todos(as), independente de qualquer proposição educacional específica. Por um lado, talvez o qualificador de educação “inclusiva” seja apenas uma redundância para lembrar de como estamos nos afastando da nossa natureza humana, em função da impossibilidade de se ter experiência e refletir sobre si mesmo e sobre o outro. Por outro lado, reafirmar a necessidade de exercitar esses valores é também mais uma forma de expressar nosso desejo por uma vida mais digna e de denunciar nossa fome de justiça social.
Nesse sentido, Crochick et al. (2020) defendem que uma educação de fato inclusiva só será possível quando as discussões sobre direitos humanos e as políticas públicas conseguirem que a luta por uma sociedade democrática seja intermediada pela experiência e processo de conscientização de uma educação humana emancipadora capaz de apontar as contradições da sociedade que retroalimenta esse ciclo. Para os respectivos autores qualquer forma de inclusão, em especial a educacional, somente será possível quando superarmos as contradições próprias a uma sociedade violenta, reforçando os argumentos utilizados em defesa de uma constante revisão das propostas de educação inclusiva, além de mostrar a necessidade de manter esforços na formação de sujeitos mais reflexivos diante de uma sociedade ainda pouco democrática e contraditória no que diz respeito ao entendimento e acolhimento da diversidade que nos constitui.
Considerações Finais
Do exposto, podemos inferir que a possibilidade de construção de valores humanos e/ou “valores inclusivos” (Ainscow, 2009) depende, sobretudo, da possibilidade de percebermos nossas diferenças por meio do processo de individuação e, consequentemente, estabelecermos identificações com nossos semelhantes, especialmente com aqueles considerados mais frágeis, porque só assim despertamos para reconhecer a nossa própria fragilidade, inerente à natureza humana.
A conquista de uma educação inclusiva plena exige a luta permanente por uma formação cultural e educacional capaz de se contrapor, ao máximo, às determinações psíquicas e sociais que impedem e/ou limitam a manifestação das diferenças presentes na diversidade humana. Do contrário, estaremos condenados a cair na trama da inclusão idealizada que insiste em ameaçar as possibilidades de existência dos valores humanos naturalmente inclusivos.
Por fim, vale enfatizar que pensar a educação inclusiva requer o reconhecimento das próprias contradições inerentes a tal proposta, tendo em vista o nosso modelo de sociedade que insiste, ainda, em nos desumanizar, mesmo diante das conquistas de direitos legais e de um cenário pandêmico revelador da vulnerabilidade natural ao humano. Todavia, faz-se necessário buscar rastros de experiência na formação cultural contemporânea, mesmo considerando seus limites, pois o problema da inclusão educacional ultrapassa os muros do âmbito da educação, no sentido formal da palavra.
É necessário refletir sobre o modelo de sociedade que mantém as desigualdades como uma forma de cultivar e/ou “vender” lugares a serem alcançados numa hierarquia de poder. Assim, entendemos que na contemporaneidade os processos de individuação e socialização são relacionados e, para isso, é preciso que nossas práticas educativas possam evidenciar as contradições presentes na atual tentativa de inclusão social para a promoção de uma formação cultural. A formação deve conseguir formar pessoas capazes de se contrapor a essa adaptação que não questiona o status quo e não consegue fazer resistência a tudo que impede de nos identificarmos com a fragilidade inerente à nossa espécie e de percebemos o quanto de particularidades existe no universal humano.