Introdução
Burnout significa “queimar até à exaustão”, sugerindo um consumo físico, emocional e mental causado pelo desajustamento entre o indivíduo e o seu ambiente.1 Freudenberger, um professor e psicanalista alemão, utilizou pela primeira vez o termo burnout em 1974, definindo-o como um estado de exaustão ou frustração resultante da dedicação a uma causa, modo de vida ou relação, que não teve o resultado esperado.1
A definição deste conceito tem vindo a sofrer transformações ao longo do tempo, sendo, no entanto, consensual que é “uma resposta prolongada a stressores físicos e emocionais crónicos, que culminam numa exaustão e sentimentos de ineficácia”,2 ou “uma resposta à pressão emocional crónica resultante do envolvimento intenso com outras pessoas no meio laboral”.3
Inclusivamente, em 2022, a Organização Mundial da Saúde (OMS) irá incluir o burnout na lista internacional de doenças, sendo esta definida como um estado de esgotamento físico e mental causado pelo exercício de uma atividade profissional.4 Será a primeira vez que o burnout irá entrar na classificação internacional de doenças da OMS, que serve de base para as estatísticas de saúde.4 Esta patologia surgirá na secção consagrada aos problemas associados ao emprego e desemprego, sendo descrito como “uma síndrome resultante de stress crónico no trabalho que não foi gerido com êxito”.4 Porém, o impacto do burnout não se resume à perda de produtividade laboral, chegando mesmo a condicionar a vida pessoal.
Vários estudos neste âmbito, realizados ao longo dos últimos anos, têm vindo a mostrar que os médicos são dos profissionais mais afetados pelo burnout, tendo sido reportadas prevalências que variam entre os 25% e os 60% em todas as especialidades, atingindo até cerca de 32% dos médicos de família em Portugal, com tendência crescente.5-7 Além de prejudicar a saúde do clínico, o burnout diminui a qualidade dos cuidados prestados, o que se traduz num comprometimento da saúde da população.
Na tentativa de se estudar esta temática, surgiram vários instrumentos de avaliação do burnout, entre os quais o questionário Maslach Burnout Inventory (MBI).8 Este questionário tem sido largamente utilizado em estudos mundiais sobre este tema, sendo constituído por questões relativas a emoções e atitudes experienciadas no ambiente laboral, divididas em três subescalas, refletindo as três dimensões do burnout - exaustão emocional, despersonalização e baixa realização profissional. Em 2013, o questionário MBI-Health Services Survey (MBI-HSS) foi traduzido e validado para a língua portuguesa para aplicação na classe médica, possibilitando a sua utilização e comparação dos estudos com os de outros países.9,10 Com a aplicação deste instrumento de avaliação, a síndrome de burnout é assim caracterizada como uma perturbação de caráter depressivo, com origem laboral, que se caracteriza por uma elevada exaustão emocional, juntamente com uma elevada despersonalização e uma baixa realização profissional.8
No contexto da conjuntura atual de pandemia COVID-19, que trouxe novos desafios e exigências à prática clínica do médico de família e revolucionou indiscutivelmente o quotidiano destes profissionais, os quadros de ansiedade, elevada exaustão física e mental e baixa realização profissional parecem estar a acometer estes profissionais, com importantes repercussões na sua saúde mental. Num barómetro realizado em abril de 2020 pela Escola Nacional de Saúde Pública com a participação de profissionais de saúde, os resultados evidenciaram que cerca de 72% apresentavam níveis moderados ou elevados de exaustão emocional e de burnout.11 Este estudo foi realizado em três momentos distintos durante a pandemia, revelando que a tendência dos níveis de burnout foi crescente.11 Também num estudo nacional realizado no Brasil no final de junho de 2020, um dos países mais afetados pela pandemia até ao momento, a prevalência do burnout foi de 79% em médicos (81% nos que estiveram na “linha da frente” e 71% nos restantes) e 74% em enfermeiros.12 Na China, o primeiro país afetado pela pandemia, uma investigação inicial evidenciou que os profissionais de saúde apresentavam graves problemas psicológicos, incluindo insónia, ansiedade e depressão, e que mais de 70% apresentava distress psicológico.13 Atendendo a esta nova realidade, surgiu a necessidade de se realizar o presente estudo, para, por um lado, se determinar a prevalência de burnout entre os médicos de família da Unidade Local de Saúde de Matosinhos (ULSM), e por outro, fornecer à população em estudo ferramentas/estratégias que a ajudem a prevenir esta síndrome.
Material e métodos
Pareceres
O estudo foi aprovado pelo Conselho de Administração da ULSM. Foram obtidos pareceres favoráveis da Comissão de Ética para a Saúde da ULSM e do Conselho Clínico e de Saúde do ACeS Matosinhos.
Contexto e população do estudo
Foi realizado um estudo analítico descritivo transversal, com o objetivo principal de determinar a prevalência de burnout nos médicos de família da ULSM durante a pandemia COVID-19. O estudo decorreu durante os meses de abril e maio de 2021. Foram convidados a participar no estudo os médicos de família do Agrupamento de Centros de Saúde (ACeS) de Matosinhos. Estes profissionais viram a sua atividade incrementada, tanto com a aquisição de novas funções, como a vigilância telefónica diária de doentes com infeção confirmada ou suspeita por COVID-19 ou a realização de consultas de atendimento urgente de doentes com patologia respiratória, bem como com um aumento significativo no volume de tarefas habituais, nomeadamente a atividade não assistencial como renovação de medicação crónica, pedidos de certificados de incapacidade temporária, esclarecimentos de dúvidas relacionadas com a pandemia, entre outros. Nomeadamente com a vigilância de doentes com COVID-19, com atividades clínicas para responder a situações urgentes tanto a doentes respiratórios como a doentes com outras patologias, com a atividade não assistencial. Foram excluídos deste estudo os médicos especialistas de Medicina Geral e Familiar a exercer funções na ULSM fora do âmbito dos Centros de Saúde, uma vez que as suas incumbências diferiam significativamente do resto da população em estudo, dificultando a retirada de conclusões e o estabelecimento de relação causal entre as funções desempenhadas pelos profissionais e o consequente burnout. Foram excluídos também os médicos que se encontravam a realizar a formação específica em Medicina Geral e Familiar, bem como os médicos que estiveram sem exercer funções clínicas por um período superior a seis meses no ano anterior (por motivo de doença ou por licença).
Desenho do estudo
O questionário foi elaborado pelos investigadores, com o intuito de cumprir os objetivos descritos anteriormente. O questionário de autorresposta foi desenvolvido online, através da plataforma Google Forms ®, e era composto por duas secções. A primeira secção avaliou os dados sociodemográficos e profissionais, que incluíram: faixa etária, sexo, estado civil, tipo de serviço onde exerce funções, exercício de funções noutra instituição, carga horária semanal total de trabalho, anos de exercício da profissão e se no último mês pensara alguma vez em mudar de profissão, de instituição ou de serviço. A segunda secção era composta pela versão portuguesa do MBI-HSS, de Christina Maslach e Susan E. Jackson, disponibilizada pelos detentores da patente, e validada em médicos portugueses por Marcelino et al, em 2013.10 As licenças necessárias à utilização da escala foram compradas pelos autores à entidade detentora do copyright do instrumento (©2019 MindGarden, Inc). À semelhança de estudos anteriores, os pontos de corte utilizados para a determinação dos níveis de burnout em cada dimensão do MBI-HSS foram: exaustão emocional (EE) baixo ≤13, médio 14-26 e alto ≥27; despersonalização (DP) baixo ≤5, médio 6-9 e alto ≥10; realização pessoal (RP) baixo ≤33, médio 34-39 e alto ≥40 (escala inversa).5,14 Foram considerados como estando em burnout os profissionais que apresentavam níveis altos de EE e DP associados a um nível baixo de RP.
Colheita dos dados
O questionário foi enviado por e-mail para o endereço eletrónico profissional de cada participante, com uma explicação breve do estudo e o link para o Google Forms ® criado para o efeito. Durante o período do estudo, foram ainda enviados dois lembretes, de forma a aumentar a taxa de resposta ao questionário. O consentimento informado foi assegurado mediante a indexação de informações sobre o estudo ao questionário, bem como pela submissão voluntária de respostas por parte de cada participante. Os dados foram recolhidos de forma anonimizada e ficaram apenas acessíveis aos investigadores. Os dados foram exportados para um ficheiro informático de Microsoft Office Excel® 2019 e convertidos para o IBM® Statistical Package for the Social Sciences (SPSS) ® Statistics v. 26, 2018, em que foi realizada a análise estatística.
Análise estatística
As variáveis sociodemográficas e profissionais foram submetidas a análise descritiva. Os resultados foram apresentados em tabelas de frequência. Nas variáveis quantitativas contínuas foram calculados o mínimo, máximo, média, mediana (intervalo interquartil) e moda. A variável “Faixa etária” foi recolhida como variável categorial para melhor comparação com outras dimensões. Na avaliação das respostas do MBI-HSS foi determinada a frequência de níveis baixo, intermédio ou alto para cada uma das três dimensões estudadas. Para efeitos de cálculo da prevalência de burnout na população estudada, nas dimensões EE e DP, os graus “baixo” e “médio” foram agrupados em “não alto” e na dimensão RP, os graus “médio” e “alto” foram agrupados em “não baixo”, de forma a converter estes níveis em variáveis dicotómicas. As comparações das variáveis sociodemográficas e profissionais com a EE alta, DP alta, RP baixa e burnout foram estimadas com recurso ao teste Quiquadrado ou exato de Fisher para os dados qualitativos (coeficiente de correlação de Pearson para as variáveis dicotómicas e tendência linear para as ordinais) e o teste de Mann-Whitney para dados quantitativos. Foi assumida significância estatística com valores de p inferior ou igual a 0,05.
Resultados
A população de médicos de família do ACeS Matosinhos foi inicialmente definida em 112 médicos, tendo posteriormente sido reduzida para 97 médicos, após apuramento de ausências que constituíam critério de exclusão. No período do estudo, foram obtidas 62 respostas, das quais duas foram excluídas na pergunta inicial, porque responderam afirmativamente à pergunta “No último ano esteve ausente do trabalho (baixa, licença, etc.) por um período superior a 6 meses?”. Assim, obteve-se uma amostra de 60 respostas, correspondente a 61,9% do universo em estudo.
Características Sociodemográficas | |
---|---|
Sexo, n(%) | |
Feminino | 49 (82) |
Masculino | 11 (18) |
Faixa etária, n(%) | |
≤35 anos | 9 (15) |
36-45 anos | 32 (53) |
46-55 anos | 7 (12) |
56-65 anos | 10 (17) |
>65 anos | 2 (3) |
Estado civil, n(%) | |
Solteiro(a) | 10 (17) |
Casado(a)/União de Facto | 46 (77) |
Divorciado(a) | 3 (5) |
Viúvo(a) | 1 (2) |
Características Profissionais | |
Tipo de serviço, n(%) | |
Unidade de Saúde Familiar | 47 (78) |
Unidade de Cuidados de Saúde Personalizados | 13 (22) |
Carga horária semanal, n(%) | |
≤35 horas | 7 (12) |
36-40 horas | 24 (40) |
>40 horas | 29 (48) |
Exercício de funções noutra instituição, n(%) | |
Sim | 15 (25) |
Não | 45 (75) |
Anos de exercício profissional desde a obtenção do título de especialista (Média ± DP) | 13,9 ± 10,295 |
DP - desvio padrão
Conforme apresentado na Tabela 1, a amostra de médicos de família era composta por 82% de elementos do sexo feminino. Uma percentagem de 53% estava na faixa etária dos 36 a 45 anos. Relativamente ao estado civil, 77% eram casados ou viviam em união de facto. A nível profissional, 78% dos inquiridos trabalhavam numa unidade de saúde familiar (USF) e 22% numa unidade de cuidados de saúde personalizados (UCSP), sendo que 25% exercia cumulativamente funções noutra instituição. Dos inquiridos, 12% realizava uma carga horária semanal inferior a 35 horas, 40% entre 36 e 40 horas, e 48% superior a 40 horas. Relativamente ao tempo de exercício profissional, obteve-se um valor médio de 13,9 anos (DP 10,295; distribuição: 1-40 anos).
Quando questionados sobre se, no último mês, tinham pensado alguma vez em mudar de profissão, instituição ou serviço, 52% dos inquiridos respondeu afirmativamente. Destaca-se uma tendência para mais respostas afirmativas nos que tinham menos anos de experiência profissional, ainda que sem significância estatística (p=0,080). As respostas afirmativas foram mais frequentes nos indivíduos com menos de 55 anos (60%), quando comparados com os acima dos 55 anos (17%), sendo esta diferença estatisticamente significativa (p=0,007). Também se verificou uma diferença estatisticamente significativa (p=0,021) relativamente ao estado civil, com 44% dos casados/união de facto a responder que no último mês tinham pensado mudar de profissão, instituição ou serviço, comparativamente com 79% dos não casados (solteiros, divorciados e viúvos).
Relativamente ao MBI-HSS, observaram-se 42 casos (70%) de níveis elevados de EE, 24 casos (40%) de níveis elevados de DP e 27 casos (45%) de níveis baixos de RP. No global da escala, 19 casos (32%) pontuaram para níveis compatíveis com burnout.
Variável | No último mês, pensou alguma vez em mudar de profissão, instituição ou serviço? | Exaustão Emocional Alta | Despersonalização Alta | Realização Pessoal Baixa | Burnout |
---|---|---|---|---|---|
Sexo (%) | |||||
Feminino | 53,1|| | 73,5§ | 42,9§ | 49,0§ | 34,7§ |
Masculino | 45,5|| | 54,5§ | 23,7§ | 27,3§ | 18,2§ |
Faixa etária (%) | |||||
<35 anos | 55,6§ | 66,7§ | 55,6§ | 44,4*,§ | 44,4*,§ |
36 - 45 anos | 62,5§ | 81,3§ | 43,8§ | 59,4*,§ | 43,8*,§ |
46-55 anos | 57,1§ | 42,9§ | 14,3§ | 42,9*,§ | 14,3*,§ |
56-65 anos | 20,0§ | 70,0§ | 40,0§ | 10,0*,§ | 0,0*,§ |
>65 anos | 0,0§ | 0,0§ | 0,0§ | 0,0*,§ | 0,0*,§ |
Estado Civil (%) | |||||
Solteiro(a) | 43,5§ | 90,0§ | 60,0§ | 70,0§ | 60,0§ |
Casado(a)/ União de Facto | 43,5§ | 65,2§ | 39,1§ | 43,5§ | 28,3§ |
Divorciado(a) | 66,7§ | 66,7§ | 0,0§ | 0,0§ | 0,0§ |
Viúvo(a) | 100,0§ | 100,0§ | 0,0§ | 0,0§ | 0,0§ |
Local de Trabalho (%) | |||||
USF | 53,2|| | 72,3§ | 40,4|| | 46,8|| | 84,2§ |
UCSP | 46,2|| | 61,5§ | 38,5|| | 38,5|| | 23,1§ |
Carga horária semanal (%) | |||||
≤35 horas | 42,9§ | 71,4*,§ | 57,1§ | 57,1§ | 42,9§ |
36-40 horas | 41,7§ | 50,0*,§ | 33,3§ | 45,8§ | 25,0§ |
>40 horas | 62,1§ | 86,2*,§ | 41,4§ | 41,4§ | 34,5§ |
Exercício de funções noutra instituição (%) | |||||
Sim | 60,0|| | 73,3§ | 53,3|| | 46,7|| | 40,0§ |
Não | 48,9|| | 68,9§ | 35,6|| | 44,4|| | 28,9§ |
Anos de exercício profissional desde a obtenção do título de especialista (média ± DP) | |||||
11,1 ± 7,4¶ | 13,0 ± 9,7¶ | 12,5 ± 10,2¶ | 10,2 ± 4,8¶ | 8,8 ± 4,4*,¶ | |
No último mês, pensou alguma vez em mudar de profissão, instituição ou serviço? (%) | |||||
Sim | 96,8‡,|| | 58,1†,|| | 61,3†,|| | 54,8‡,|| | |
Não | 41,4‡,|| | 20,7†,|| | 27,6†,|| | 6,9‡,|| |
* p<0,05; † p<0,01; ‡ p<0,001; § teste exato de Fisher; || qui-quadrado de Pearson; ¶ teste de Mann-Whitney; DP - desvio padrão; UCSP - Unidade de Cuidados de Saúde Personalizados; USF - Unidade de Saúde Familiar; assinalados a sombreado os valores com significância estatística
Foi avaliada a existência de relações entre as variáveis sociodemográficas e profissionais e os níveis de burnout e seus componentes (Tabela 2). A presença de EE demonstrou relação com a carga horária semanal, com 86% dos respondentes com carga semanal superior a 40 horas e 71% dos com carga semanal inferior a 35 horas a apresentar elevados níveis de EE, comparado com 50% dos com carga semanal entre 35 e 40 horas (p=0,011). A ocorrência de baixa RP foi mais frequente nas faixas etárias abaixo dos 55 anos (54% vs 8%, p=0,004). É ainda de destacar uma tendência para a ocorrência de baixa RP nos solteiros (70% versus casados/união de facto 44%, viúvos 0% e divorciados 0%, p=0,091). Não foram observadas diferenças na média de anos de serviço entre quem apresentava, ou não, baixa realização pessoal (10,15 ± DP 4,753 e 16,97 ± DP 12,469, respetivamente, p=0,091), ainda que os que apresentavam baixa RP tivessem tendencialmente menos anos de serviço. Não se observaram relações estatisticamente significativas entre as dimensões do burnout e o tipo de local de trabalho. Verificou-se uma prevalência mais elevada de burnout nas faixas etárias mais baixas (44% para <35 anos, 44% para 36-45 anos, 14% para 46-55 anos, 0% para 56-65 anos e 0% para >65 anos, p=0,034). A média de anos de serviço (p=0,015) era mais baixa em quem apresentava burnout (média 8,79 ± DP 4,417, versus média 16,27 ± DP 11,375). Destaca-se ainda uma tendência para a ocorrência de burnout nos solteiros (60% versus casados/união de facto 28%, divorciados 0% e viúvos 0%, p=0,095). Não se observaram relações estatisticamente significativas entre a ocorrência de burnout e o tipo de local de trabalho.
Comparando os resultados obtidos na pergunta “No último mês, pensou alguma vez em mudar de profissão, instituição ou serviço?” com as variáveis avaliadas pelo MBI-HSS, observou-se uma relação estatisticamente
significativa entre responder afirmativamente à pergunta e apresentar níveis elevados de exaustão emocional (97% vs 41%, p<0,001), níveis elevados de despersonalização (58% vs 21%, p=0,003), níveis baixos de realização pessoal (61% vs 28%, p=0,009) e burnout (55% vs 7%, p<0,001).
Discussão
O contexto da pandemia COVID-19 e o aumento do trabalho assistencial e não assistencial dos médicos de família tem vindo a aumentar o stress nestes profissionais de saúde, o que tem despoletado uma maior preocupação com a temática do burnout e da prevenção quinquenária em saúde. O presente estudo apresenta dados relativos à prevalência de burnout em médicos de família que exercem a sua atividade profissional nas unidades prestadoras de cuidados de saúde primários do ACeS Matosinhos. Em estudos futuros, poderá mostrar-se relevante investigar o impacto que a pandemia teve também nos médicos de família a exercer funções noutros contextos (por exemplo, serviço de urgência hospitalar, contratações exclusivamente para o centro de vacinação ou atendimento a doentes respiratórios), permitindo assim estabelecer um paralelismo entre profissionais com competências semelhantes em ambientes distintos.
A taxa de resposta do presente estudo, de 61,9%, foi superior à de outros estudos sobre o tema5 e semelhante à de um estudo de 2016 cuja taxa de resposta foi de 60,1%.15 A partir dos dados recolhidos, é difícil extrapolar os valores de burnout a uma população mais generalizada. Por um lado, poderá haver uma sobrestimativa da prevalência de burnout calculada, visto que os profissionais em burnout podem ter maior propensão para responder a questões sobre a temática por se encontrarem mais sensibilizados para a mesma.15 Por outro lado, estudos descrevem que os indivíduos em burnout poderão não ter a disponibilidade psicológica e temporal para responder ao questionário. (2
Na amostra estudada, 32% dos médicos apresentaram critérios de burnout, definido como alto nível de DP, alto nível de EE e baixo nível de RP. Este valor é cerca de duas vezes superior ao determinado em 2016,13,15) num estudo que avaliou a prevalência de burnout em médicos de família da Secção Regional do Norte da Ordem dos Médicos em 17%, bem como oito vezes superior aos 4% estimados em 2012 em médicos de família a nível nacional, (5 sendo que ambos os estudos utilizaram o mesmo questionário e a mesma definição de burnout. Esta diferença tão marcada pode dever-se a vários fatores, nomeadamente fatores intrínsecos ao AceS em estudo, até fatores de gestão e políticos que, de forma direta e indireta, interferem com os profissionais de saúde e com o meio em que trabalham, contribuindo para o desenvolvimento da síndrome de burnout. Ainda assim, e dada a relação temporal, é provável existir uma relação deste aumento de prevalência com a pandemia COVID-19. Esta associação poderá estar relacionada com condições insuficientes para o exercício de funções num ambiente percecionado como de risco pelos profissionais, pelo contacto com doentes possivelmente infetados, bem como pelo aumento significativo da carga de trabalho exigida, agravada por ausências curtas ou prolongadas de profissionais da equipa, seja por problemas de saúde ou por destacamento para outras funções.
Quanto aos fatores associados à síndrome de burnout e às suas três dimensões, verificou-se uma maior prevalência de exaustão emocional nos médicos com carga semanal superior a 40 horas ou inferior a 35 horas, em comparação com aqueles com carga semanal entre 35 e 40 horas, com significância estatística. Estudos anteriores não encontraram uma relação estatisticamente significativa entre estas variáveis.7,15,16 Condições subótimas para prestação do ato médico estão correlacionadas com o aumento do stress causado pelo exercício profissional,6 justificando uma maior predisposição para a exaustão emocional em profissionais com permanência mais prolongada no local de trabalho. Relativamente àqueles com carga semanal inferior a 35 horas, que incluem, por exemplo, profissionais em horário de amamentação, que apresentavam níveis altos de EE, esta associação poderá dever-se a um aumento da carga laboral consequente à pandemia COVID-19, que, em conjunto com a sobrecarga na vida privada, que motivou a redução do horário de trabalho, se traduziu numa sobrecarga destes profissionais durante o exercício das suas funções.
De realçar que, à semelhança de outros estudos,6,15 os indivíduos mais jovens apresentaram maior prevalência de burnout, o que pode ser explicado pelo facto de estes médicos, por terem menos experiência profissional, terem desenvolvido até então menos estratégias efetivas e adaptativas de coping, que lhes permitissem lidar com as exigências da profissão, levando com maior facilidade ao desenvolvimento de burnout. A ocorrência de baixa RP também se revelou mais frequente nos indivíduos mais jovens, sendo esta diferença estatisticamente significativa e também verificada num estudo de 2016.7
O burnout foi mais frequente nos indivíduos solteiros, sendo esta diferença estatisticamente significativa. Este facto tem sido explicado pelo fator protetor da família e dos filhos, sendo o suporte social um fator protetor para o desenvolvimento de burnout.5,7
Ao contrário do verificado noutros estudos, no presente estudo não se verificou relação entre a incidência de burnout e o sexo do indivíduo, ou o local de trabalho ser uma UCSP ou USF. (7,15
A vontade de mudar de profissão, instituição ou serviço mostrou relação estatisticamente significativa com todas as dimensões de burnout, o que reflete a consequência do burnout na perceção do indivíduo sobre o trabalho, que deixa de ser prazeroso, e passa a ser insignificante e insatisfatório.2 Esta informação poderá ser útil para, de forma simples e rápida, se avaliar a satisfação profissional dos profissionais de saúde, alertando para a necessidade de medidas promotoras do bem-estar e preventivas do burnout.
Maslach descreve que a melhor forma de prevenir o burnout e aumentar o engagement no trabalho é através do foco no indivíduo e da instituição onde este trabalha, sendo que a intervenção numa só esfera não é suficiente. As abordagens centradas no indivíduo, como o desenvolvimento de estratégias de coping, podem ajudar a melhorar a EE, no entanto não têm particular benefício nas outras duas esferas do burnout, sendo essencial a intervenção nas organizações.2 Este estudo poderá servir como ponto de partida para uma intervenção local ou regional de medidas promotoras do bem-estar laboral dos profissionais de saúde, que pretenda diminuir o surgimento de burnout nos profissionais de saúde que não o revelaram nesta avaliação, bem como tentar recuperar os profissionais que já sofrem de burnout.
Quanto às limitações do estudo, a principal está relacionada com a dimensão da amostra. A reduzida dimensão da amostra, não permite generalizar as conclusões ao universo da população. A ausência de resposta por parte de vários potenciais participantes foi também uma limitação importante. Teria sido interessante alargar o presente estudo a outras especialidades médicas, para se proceder à comparação dos resultados obtidos entre médicos de especialidades diferentes, bem como a outras classes de profissionais de saúde, também muito fustigadas pela pandemia em vigor.
Conclusão
A importância da prevenção do burnout nos profissionais de saúde vai muito para além do bem-estar físico e mental dos próprios médicos de família, estendendo-se também à saúde dos utentes, uma vez que, ao influenciar a forma como se sentem e como exercem a sua profissão, o burnout do profissional poderá condicionar a segurança dos seus utentes.
A pandemia COVID-19 parece ter agravado o burnout na classe médica, dada a relação temporal com valores de burnout marcadamente superiores, em comparação com os de estudos anteriores sobre a temática. Como tal, a demonstração dos níveis elevados de burnout em que se encontra a classe médica, bem como outras classes profissionais na área da saúde, realça a importância de se agir, quer localmente quer institucionalmente. É urgente e premente que sejam criadas políticas e medidas locais e nacionais que protejam estes profissionais e, consequentemente, lhes permitam prestar os melhores cuidados aos doentes, atuando no nível de prevenção quinquenária. Pelo exposto, e segundo a investigação existente sobre a temática, estes profissionais são francamente afetados pelo nível de despersonalização/burnout, que parece ter agravado com a pandemia COVID-19, e que poder-se-á traduzir numa menor satisfação dos utentes.