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População e Sociedade

Print version ISSN 0873-1861On-line version ISSN 2184-5263

População e Sociedade  no.35 Porto June 2021  Epub Jan 01, 2022

https://doi.org/10.52224/21845263/rev35v2 

Varia

Luta de “classes” e disputa “nacional” nos Açores de 1580? A família de Jácome Trigo perante a resistência terceirense e a conquista espanhola

The “class” struggle and the “national” dispute in the Azores in 1580? The family of Jácome Trigo in the face of the resistance of Terceira and the Spanish conquest

Avelino de Freitas de Meneses1 
http://orcid.org/0000-0002-0159-7131

1Universidade dos Açores, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas/CHAM - Centro de Humanidades, Ponta Delgada (Açores), Portugal.


Resumo

Neste estudo, exploramos dois documentos da Biblioteca Pública e Arquivo Regional Luís da Silva Ribeiro, a saber, uma tença de 1583 e uma petição, com auto de testemunhas, de 1584. Ambos versam sobre o privilegiado Jácome Trigo e companheiros, adeptos confessos de Filipe II, contrários à sublevação da Terceira em favor de D. António. Perseguido pelo povo rebelde e pelas justiças sectárias do Prior do Crato, o grupo suporta o sequestro de bens, até a condenação à morte, comutada em exílio para Inglaterra em 1582. De seguida, em prova da fidelidade dos grandes ao rei de Espanha, após uma travessia marítima arriscada, que custa a vida ao próprio Jácome Trigo, o bando desembarca em Lisboa, ainda a tempo da incorporação na armada do marquês de Santa Cruz, que procede à conquista da Terceira em 1583. De resto, com menor significado, fazemos a revisitação, jamais a revisão, das incidências da União Ibérica, por exemplo, a condescendência do Reino e a resistência da Terceira, também o percetível alinhamento dos estratos sociais, ainda as motivações de todos eles, do nacionalismo, ao anti castelhanismo ou simplesmente ao saudosismo sebástico.

Palavras-chave: Resistência terceirense; nobreza; povo; nacionalismo; anti castelhanismo.

Abstract

In this study, we explore two documents of the Public Library and Regional Archive Luís da Silva Ribeiro, notably, one pension of 1583 and one petition, with a minute of witnesses, of 1584. Both address the privileged Jácome Trigo and fellows, confessed partisans of Philip II, opponents of the rebellion of Terceira in support of D. António. Hunted by the rebellious people and by the sectarian justice of Prior do Crato, the group endures the confiscation of assets, until condemned to death penalty, commuted to exile in England in 1582. Then, as proof of loyalty to the king of Spain, after a dangerous voyage, that costs the life of Jácome Trigo, the band lands in Lisbon, still in time to join the army of the marquis of Santa Cruz, which conquers Terceira in 1583. Besides, with less importance, we recall events, omitting a revision, related with the Iberic Union, for instance, the condescension of the Kingdom and the resistance of Terceira, as well as the noticeable alignment of the social strata, and still the motivations of all trends, of nationalism, to the anti-castilianism or simply the yearning of Sebastianism.

Keywords: Resistence of Terceira; nobility; people; nationalism; anti-castilianism.

Introdução

A partir de dois documentos, a saber, uma tença de 1583 e uma petição de 1584, que inclui um auto de testemunhas, procedemos à revisitação da resistência terceirense, que perdura até 1583, e da consequente conquista espanhola. À luz da perseguição, do sequestro de bens, até da condenação à morte, aparentemente convertida em pena de exílio, tudo orquestrado pelas justiças de D. António, seguimos os percursos de Jácome Trigo, de seu filho Manuel Jácome Trigo, também de outros companheiros da mesma igualha, isto é, de gente politicamente da governança de Angra e socialmente de condição privilegiada. Depois disto, discutimos o alinhamento dos estratos sociais perante os principais contendores, Filipe II, rei de Espanha, que não enfrenta oposição determinante no Reino, nem sequer no Império, e de D. António, Prior do Crato, que levanta oposição capaz nos Açores, particularmente na ilha Terceira. Ademais, ponderamos também a influência de motivações de caráter nacional, talvez descontextualizadas por antecipação, na ação dos principais agentes de intervenção política e social.

I

Retalhos da história familiar de Jácome Trigo

1. Jácome Trigo contra a rebelião da Terceira

1.1. A função pública e a condição social

Nos Açores, Jácome Trigo foi tabelião público e do judicial de Angra e seus termos, bem como escrivão dos contos da Terceira e ilhas debaixo. No exercício de ambos os cargos, definido por cartas passadas pelas chancelarias régias, regista uma permanência prolongada, por espaço de anos como tabelião público e do judicial, e de muitos anos como escrivão dos contos. Tudo isto no dizer de seu parente Melchior Fernandes Rodovalho, uma informação que o fidalgo Melchior Magalhães confirma e pormenoriza, quando alude aos cerca de vinte anos no desempenho do ofício da fazenda1. Ademais, a generalidade dos testemunhos reconhece um cumprimento exemplar de deveres, pontuado por atitudes de diligência, inteireza e fidelidade, ainda acrescidas por procedimentos de guarda e de vigia em prol da salvaguarda do erário régio. Neste caso, todos assinalam um trabalho permanente, de dia e de noite, na cobrança de direitos, também no acolhimento das embarcações procedentes do Ultramar, principalmente da Índia e da Mina2.

Na cidade de Angra do último quartel do século XVI, Jácome Trigo era um homem de condição, por outras palavras, uma pessoa de qualidade. A comprová-lo, pertencia à dita governança citadina, exercendo vulgarmente os cargos municipais de maior consideração, na sequência da realização das eleições trienais e da abertura anual dos pelouros3. Além disso, sempre viveu de acordo com a denominada lei da nobreza, possuindo armas, também escravos e servidores, e naturalmente estrebaria com os respetivos cavalos, tal como revela o escudeiro Paulo Gomes após ter sido inquirido (B.P.A.R.L.S.R., Documentos Avulsos, auto de testemunhas […]).

1.2. A opção política e as suas consequências

A totalidade das testemunhas inquiridas no auto lavrado em 1584 por petição do filho Manuel Jácome Trigo confirma, e por conhecimento próprio, o permanente apego do pai Jácome Trigo à causa filipina desde o começo da rebelião dos terceirenses, maioritariamente favoráveis ao partido antoniano. É o caso, por exemplo, de Gaspar Roiz de Çea que, perante o inquiridor, fundamenta a veracidade de toda a sua confissão “por o ver com seus olhos” (B.P.A.R.L.S.R., Documentos Avulsos, auto de testemunhas […]). Em consequência, o tabelião e escrivão dos contos suportou a perseguição e o vexame públicos, perpetrados por Manuel da Silva, governador em nome de D. António desde os inícios de 1582, pelas demais autoridades judiciais do Prior do Crato, igualmente pelo povo revolto.

Entre os principais malefícios, enumeramos o sequestro de bens, a prisão e a condenação à morte, ainda que substituída pelo exílio. Em matéria de subtração de pertences, avulta a extorsão de uma avultada soma de dinheiro e também de muitas peças de ouro e prata. Já no domínio dos imóveis, ressalta a apreensão de casas com toda a sua serventia, para alojamento dos franceses que, na Terceira, reforçavam a resistência. Aliás, os testemunhos admitem mesmo a expulsão da própria residência, onde o dito Jácome Trigo vivia com a mulher, Antónia Gomes, e os filhos. Particularmente ilustrativo disto é o depoimento do escudeiro Paulo Gomes, quando assegura que Jácome Trigo “por ser do serviço de Sua Majestade no tempo da rebelião desta ilha foi muito avexado e perseguido assim do povo como de Manuel da Silva e justiças de dom António […] e além disso lhe tomou Manuel da Silva parte de sua fazenda convém a saber dinheiro peças de ouro e prata, e além de lhe ser tomado duas moradas de casas para alojamento dos franceses e toda a serventia necessária para eles o mandou por na rua e tirar da casa em que vivia com sua mulher e filhos e a deu aos franceses com toda a serventia que nela tinha” (B.P.A.R.L.S.R., Documentos Avulsos, auto de testemunhas […]).

Já no capítulo da ameaça e do tormento físicos, sobressai a prisão às ordens de Manuel da Silva, seguida da condenação à morte por enforcamento, tendo mesmo a vítima iniciado o procedimento usual pelo exercício da confissão. Entretanto, paira a dúvida sobre a responsabilidade da determinação da sentença fatal, variando a informação entre uma iniciativa de Manuel da Silva, lugar tenente de D. António, e uma decisão do próprio Prior do Crato4. Em circunstâncias desconhecidas, mas alegadamente por deliberação antoniana, a pena capital foi então revertida em condenação de exílio, apregoada na praça pública da cidade de Angra. Contudo, após uma tentativa de envio para França ao cuidado de um capitão luterano gaulês, a viagem ocorreu a bordo de uma nau inglesa e rumo à Grã-Bretanha.

Para além de Jácome Trigo, seguiu também seu filho Manuel Jácome Trigo, tocado pelo mesmo pecado político do pai, e ainda um conjunto indeterminado de nobres terceirenses, todos eles igualmente afeiçoados a Filipe II, rei de Espanha. O escudeiro Paulo Gomes narra o processo de expulsão de Jácome Trigo e seus sequazes. Na realidade, confessa que:

“E outrossim por o pai do suplicante ser do serviço de Sua Majestade foi mandado embarcar pelo dito dom António para fora desta ilha com pregão público na praça desta cidade e foi embarcado em uma nau inglesa e nela foi levado com outros homens honrados ao Reino de Inglaterra e indo o suplicante em companhia do dito seu pai por ser também do serviço de Sua Majestade” (B.P.A.R.L.S.R., Documentos Avulsos, auto de testemunhas […]).

Uma vez chegados a Inglaterra, Jácome Trigo, o filho e presumivelmente todo o grupo rumaram de pronto a Londres, a fim de formalizarem a devida apresentação perante D. Bernardino de Mendoça, embaixador filipino na capital britânica. Inteirado da condição dos exilados, o diplomata de Espanha ordenou a sua imediata partida para Lisboa, que sucedeu a bordo de uma nau veneziana, para a colocação de todos os seus argumentos ao serviço do monarca espanhol, em 1582, já de todo empenhado na conquista da Terceira5.

A descrição das viagens marítimas realizadas por Jácome Trigo e companheiros entre a Terceira e Inglaterra e, logo depois, entre Londres e Lisboa comprovam a ocorrência de um ror de dificuldades, com repercussões na saúde e até na vida dos viajantes. De facto, todos os declarantes convergem no reconhecimento de grandes temporais, que agravam as necessidades de bordo, causando o resfriamento e a fome, por consequência, a doença e a própria morte. A testemunhá-lo, já a caminho do Reino, tais foram os apuros que provocaram o falecimento de Jácome Trigo, que foi lançado ao mar, e o desconforto do filho Manuel Jácome Trigo, que chegou à capital portuguesa muito adoentado (B.P.A.R.L.S.R., Documentos Avulsos, auto de testemunhas […]).

Em Lisboa, os exilados terceirenses logram integração na armada de D. Álvaro de Bazan, marquês de Santa Cruz, que procede à conquista da Terceira no verão de 15836. Todos os depoentes do auto de testemunhas de 1584 aludem à participação de Manuel Jácome Trigo na expedição espanhola. Na realidade, certificam mesmo o seu desembarque na baía das Mós a 26 de julho, naturalmente armado, com os demais soldados da sua bandeira, oferecendo uma réplica tenaz, própria de um militar destemido, e também de um vassalo dedicado. O escudeiro Paulo Gomes, em resposta a uma inquirição, afirma que Manuel Jácome Trigo embarcou na “armada de Sua Majestade em que veio por general o marquês de Santa Cruz que tomou esta ilha por força de armas e nela veio servir Sua Majestade e saiu em terra na batalha com os mais soldados com suas armas e fez o que devia e como dele se esperava como vassalo de Sua Majestade e isto sabe ele testemunha por ir e vir em companhia do suplicante” (B.P.A.R.L.S.R., Documentos Avulsos, auto de testemunhas […]).

2. A recompensa filipina

2.1. A tença de Antónia Gomes

Em 1583, mas ainda antes da conquista da Terceira a 26 de julho, a coroa atribui uma tença a Antónia Gomes, considerando os bons serviços prestados pelo falecido marido Jácome Trigo em benefício da causa filipina. A mercê, estabelecida por carta padrão, inscrita no Livro da Fazenda da Ordem de Cristo e paga no âmbito da Feitoria da Terceira, sem necessidade de qualquer outra provisão - embora confirmada por portaria datada de Lisboa de 26 de setembro de 1584 e registada em Angra no Livro de Registo Novo a 24 de maio de 1585 -, constava de uma prestação anual de três moios de trigo, acrescida da possibilidade da transmissão por herança. Quiçá, uma forma de atrair outra gente para o partido do rei de Espanha, agora também de Portugal7.

2.2. A petição de Manuel Jácome Trigo

Talvez movido pela recompensa da mãe, também Manuel Jácome Trigo inicia um processo tendente à obtenção de uma devida retribuição régia, considerando os danos sofridos pelo pai, e igualmente por ele, em defesa da causa filipina contra a obstinação dos partidários de D. António. Assim, em agosto de 1584, perante um tabelião e inquiridores, ocorre um auto de audição de testemunhas que certificam a legitimidade do matrimónio dos pais e, por consequência, do nascimento do próprio filho, agora na condição de suplicante. A este respeito, o escudeiro Paulo Gomes é, de todo, perentório, assegurando “que o dito suplicante é filho legítimo de legítimo matrimónio de Jácome Trigo já defunto e de sua mulher Antónia Gomes os quais ele testemunha conhece muito bem e sabe ser o suplicante seu filho legítimo e por tal tido e havido e nomeado” (B.P.A.R.L.S.R., Documentos Avulsos, auto de testemunhas […]). Por acréscimo, todos os depoimentos concordam no reconhecimento do apego de Jácome Trigo ao serviço de Filipe II e na identificação dos suplícios entretanto infligidos e atrás relatados.

As testemunhas, que prestam o habitual juramento perante os Santos Evangelhos, prometendo dizer a verdade, são quatro, a saber, Gaspar Roiz de Cea, de 75 anos; Melchior Fernandes Rodovalho, de 24 anos; Paulo Gomes, de cerca de 38 anos; e Melchior Magalhães, de 47 anos, todos moradores em Angra. Em matéria de ocupação profissional e de condição social, Gaspar Roiz de Cea apresenta-se como inquiridor; Melchior Fernandes Rodovalho, como cidadão e ainda parente em quarto grau do suplicante; Paulo Gomes, como escudeiro da Casa Real; e Melchior Magalhães, como fidalgo de geração. Aparentemente, é tudo gente da mesma igualha, e em tudo condizente com o caráter sociológico do partido filipino. Aliás, todos eles foram companheiros de exílio, tendo ido em 1582 da Terceira a Inglaterra, passado logo depois a Lisboa e retornado à Terceira na expedição do marquês de Santa Cruz de 15838.

Nas repartições da corte, desconhecemos o desfecho do processo intentado por Manuel Jácome Trigo, tendente à óbvia recompensa por serviços prestados ao partido filipino, no âmbito das alterações da Terceira dos alvores da década de 1580. Aliás, o seu nome não consta da lista publicada pelo Padre Manuel Luís Maldonado, que supostamente inclui todos os beneficiários de tenças e de hábitos, atribuídos por Filipe II aos apoiantes vítimas de desterro. Todavia, é ainda de crer que a diligência tenha surtido o seu efeito nos corredores do poder. Na verdade, a referida relação de agraciados inclui o nome de sua viúva Isabel Dinis, contemplada em 8 de junho de 1586 com uma tença de dois moios de trigo por ano, testáveis na filha Maria Dinis9.

II

A união dinástica, os grupos sociais e os pretextos políticos

1. A condescendência de Portugal e a resistência dos Açores

Em Portugal, após o desaparecimento em 1578 do jovem rei D. Sebastião na batalha de Alcácer-Quibir, mas sobretudo depois da morte em 1580 do cardeal rei D. Henrique, irrompe uma crise dinástica, que no mínimo questiona a independência multisecular. Por entre os pretendentes à coroa, ganham maior relevo Filipe II, rei de Espanha, e D. António, Prior do Crato10. O monarca espanhol releva a proximidade do parentesco, nomeadamente, o predomínio da varonia e da primogenitura. Por isso, recusa o público reconhecimento da vagatura do trono. Acima de tudo, contesta a intervenção das cortes, tendente à eleição de um novo soberano11. Ao invés, sob o estigma da bastardia, que o menoriza perante os demais concorrentes, o Prior do Crato e o seu séquito de apoiantes advogam a convocação dos povos e das demais ordens, alegando a necessidade da escolha de um novo soberano, para suprir o vazio de poder12.

No firme propósito da reunificação peninsular, Filipe II ensaia diversas possibilidades, essencialmente duas: a assimilação, que implica a plena integração de Portugal na Monarquia Hispânica, como território conquistado, e a agregação, que admite a preservação da identidade portuguesa. Volvida a indefinição, a estratégia filipina assenta na busca de uma solução de concórdia. Por isso, entre a enumeração de maiores proveitos, avultam inclusivamente os compromissos, insertos no entendimento luso-hispânico de 1581, por exemplo, de facilitação da entrada no Portugal carente de pão dos cereais excedentários de Castela, também de admissão dos portugueses nos circuitos comerciais do vasto império espanhol (Bouza Álvarez, 2000, p. 82). Mesmo assim, são sempre múltiplos os instrumentos de intervenção, por exemplo, a invocação da legítima herança, a negociação de benefícios, a propaganda, tudo isto sem exclusão da constante pressão militar13.

No esboço e na concretização da União Ibérica, o propósito espanhol do pacto não exclui de todo a prática da violência. De facto, a resistência de D. António, com sustentáculo político e social interno, que faculta primeiro a oposição e o alvoroço em Lisboa e depois a fuga e o encobrimento no Norte, mas também com capacidade de aglutinação de apoio diplomático e de socorro militar externos, outorgados pelos adversários filipinos da Europa setentrional, justifica a invasão de Portugal. A incursão espanhola, talvez que estimulada pelo desafio do próprio Prior do Crato, crente no acréscimo da contestação na capital e em todo o Reino, por via da defesa de pretensões políticas pela força das armas, ainda carece de adequada ponderação. Com efeito, diverge muito do caráter de espantalho, que encobre uma marcha triunfal, dada a falta de antagonismo (Valladares, 2010, p. 303). Na verdade, depois de uma caminhada por povoados e campos do sul, a expedição causa sofrimento em Setúbal, ainda mais em Lisboa. Porém, a batalha de Alcântara de 25 de agosto de 1580 destoa dos feitos bélicos. Por isso, a par das consequências do embate, definidas pela desproporção dos contendores, imperam os efeitos do saque no arrabalde e na frota.

Apesar da vitória contra a tropa do Prior do Crato, a maior prova da benevolência filipina consiste na condescendência da reunião de cortes em Tomar em 1581, que confirmam o juramento pelo rei de Espanha dos foros e das liberdades do reino de Portugal. Ademais, entre as alegações políticas da agregação, caem as mais problemáticas, quer as da reintegração de um feudo rebelde, que lograra a autodeterminação nos tempos ancestrais de D. Afonso Henriques, para evitar a repulsa dos portugueses, quer as da recuperação dos direitos de D. João I de Castela na crise dinástica do termo do século XIV, em encobrimento da humilhação de Aljubarrota, para respeitar o brio dos castelhanos.

O modelo da união ibérica constante do denominado Estatuto de Tomar radica, portanto, nos capítulos manuelinos de 1499, que regulam a junção das coroas de Castela, Aragão e Portugal, em cujas cortes fora jurado o petiz e malsucedido infante D. Miguel da Paz. Entre as vantagens da adoção da fórmula governativa inventada por D. Manuel I no final de Quatrocentos, ainda sobressai a neutralização do argumento da naturalidade, que indispunha os povos contra a entronização de um monarca forasteiro. No entanto, a prova mais cabal da procura e da implementação de um molde de reunificação peninsular a contento das partes, designadamente da portuguesa, encontramo-la mais tarde. Nas vésperas do movimento Seiscentista da Restauração, quando intentava finalmente a supressão do direito dito nacional, o conde-duque de Olivares lamenta a atuação Quinhentista de Filipe II, que agira “como sino fuera ligitimo sucessor” (Oliveira, 1991, p. 10).

Contra a relativa aquiescência reinol, os Açores opõem por três anos, entre 1580 e 1583, uma resistência tenaz à união ibérica, se bem que a partir de 1581 cingida à Terceira e às denominadas ilhas debaixo, mais próximas e dependentes. As razões da oposição insular radicam primeiramente no distanciamento geográfico entre as ilhas e o Reino, que confere aos insurretos a vantagem de um ano de insubordinação, dada a impossibilidade da imediata organização em Lisboa ou em Sevilha de uma armada capaz de impor a submissão dos terceirenses. Todavia, este é, decerto, o fator de menor monta no curso da rebelião. Com efeito, muitas foram as colónias e feitorias de Além-Mar, do Atlântico, ao Índico e ao Pacífico, que ordeiramente aceitaram a nova ordem política filipina.

De maior consideração na continuidade da contestação, releva a rara qualidade da liderança da fação de D. António, da responsabilidade do respeitado corregedor Ciprião de Figueiredo, que concita apoios sociais múltiplos. Aliás, no verão de 1581, é ele o herói da Salga, nome da baía e da batalha que impõem uma pesada derrota aos castelhanos, transmitindo maior ânimo aos insurgentes locais e alguma esperança aos rivais europeus da hegemonia hispânica. De resto, só a posição convictamente pró-filipina do bispo D. Pedro de Castilho obsta à permanência de todo o arquipélago sob a tutela antoniana. De facto, desavindo com o corregedor, o prelado busca refúgio em São Miguel, influindo muito na transição dos micaelenses para a obediência espanhola. Na verdade, é o grande responsável pela primeira aclamação oficial de Filipe II, de concreto, em Vila Franca a 20 de abril de 1581, depois de um primeiro pronunciamento de janeiro em Ponta Delgada, mas somente confirmado em junho.

A partir de finais de 1581, depois do desastre do contingente de D. Pedro de Valdés na Salga, a resistência terceirense depende muito do auxílio militar externo, quando até encurta a base de apoio interno, fruto da desmobilização do carismático Ciprião de Figueiredo, da saturação dos populares e ainda da desconfiança dos forasteiros14. Nesta altura, a rebeldia insulana integra inequivocamente um contexto internacional de confronto entre os principais potentados europeus. Por isso, em maior ou menor número, com maior ou menor empenho, os franceses, os ingleses e os holandeses sustentam a sedição de D. António na ilha Terceira, movidos pelo propósito do combate ao quase monopólio ultramarino de Filipe II. Para os contendores da Europa do Norte, através fundamentalmente da prática do corso e da pirataria, os Açores facilitam o acesso aos produtos exóticos, até aos metais preciosos, do Além-Mar, representando um amparo seguro da constituição de impérios ultramarinos duradoiros e lucrativos. Para tanto, pesam o determinismo do mar e as condições da navegação, que situam as ilhas numa encruzilhada de rotas, também numa plataforma de junção de mundos velhos e novos (Meneses, 1987, pp. 15-17, 28-31).

Ao cabo de cerca de três anos de resistência, os terceirenses capitulam no verão de 1583. Este desfecho radica na diferenciação da competência militar dos beligerantes, posterior ao recontro da Salga de 1581. Com efeito, os espanhóis reúnem meios vultuosos, sob o comando tão experiente quanto habilitado do marquês de Santa Cruz, D. Álvaro de Bazan, que triunfa na batalha de Vila Franca em 1582, prelúdio da conquista da Terceira, obtida pelo desembarque na baía das Mós um ano depois. Já D. António e os seus aliados nortenhos, se primam pela junção de uma considerável quantidade de recursos humanos e materiais, falham rotundamente na qualidade do comando e na execução das operações.

Desde cedo, vislumbra-se a divergência de interesse dos estrangeiros, somente unidos pelo temor de Espanha. Na verdade, para a demonstração de maior empenho, a Inglaterra exige um acordo formal com a França, que sempre se esquiva à oficialização da ajuda ao Prior do Crato. Por isso, depois do desastre naval de 1582 em Vila Franca, todos baixam a guarda. Os ingleses admitem somente a liberdade de recrutamento de mercenários e de compra de armas e munições. Os franceses ainda persistem no envio de reforços para a ilha Terceira, mas muito mais movidos por vingança contra a chacina, em São Miguel e por ordem do marquês de Santa Cruz, de muitos dos seus maiores do que propriamente pela crença no sucesso de D. António. Um tanto à margem, os holandeses até evidenciam maior oportunismo. De facto, em recompensa de um eventual auxílio guerreiro, e em caso de vitória, exigem a doação de territórios, à cabeça, o próprio arquipélago dos Açores. Nestas circunstâncias, as forças militares antonianas fraquejam por inexistência de uma direção firme, avultando amiúde a competição dos chefes, também por falta de uma seleção rigorosa, vertida no predomínio dos aventureiros. Em ocasião de guerra, imperam a desobediência, se não mesmo a fuga. Em tempo de paz, assistimos à multiplicação dos atritos com a população, contra a consolidação da verve antoniana (Meneses, 1987, pp. 33-34).

Mais do que no Reino, é nos Açores que individualizamos maior divergência política e maior violência militar, traduzidas no prolongamento da resistência antoniana por três longos anos, que contempla mais episódios de desentendimento social e mais eventos de caráter bélico. De facto, a submissão do arquipélago, isto é, da Terceira, e das ditas ilhas debaixo suas dependentes, implica um esforço colossal, que supera em muito a mobilização de recursos para a conquista de Lisboa em 1580. Por isso, o acontecimento depressa ganha a condição de grande façanha. Assim, o desembarque nas Mós de 1583 surge de imediato num fresco da novel sala das batalhas do Escorial, obtendo ainda o singular estatuto de única gravura guerreira constante em literatura espanhola sobre a incorporação de Portugal, a saber, no Comentário em Breve Compêndio de 1596, da autoria de Mosquera de Figueroa (Valladares, 2010, pp. 152, 297).

2. A sociedade e os partidos

Nos Açores, mais nitidamente do que no Reino, a crise dinástica de 1580 gera uma conjuntura de bipolarização entre partidos, o de D. António e o de Filipe II, suportados por forças sociais distintas, quiçá antagónicas. O auto de testemunhas atrás citado, relativo à petição de Manuel Jácome Trigo consequente da morte do pai, pretensamente ao serviço da causa filipina, é de todo ilustrativo, se bem que um tanto simplista. Com efeito, do lado do Prior do Crato, identifica o povo sobressaltado. Já da banda do rei de Espanha, regista os nobres e os honrados, detentores tradicionais do poder, seja ele de caráter municipal ou de representação da coroa. Vejamos então mais detalhadamente os factos.

No Reino, na sequência das cortes de Almeirim de 1580, em mensagem transmitida a Filipe II, há uma alusão clara à revolta do povo, que clama pela entronização de um monarca português, embora se admita também um grande temor, a resultar decerto em plena rendição, perante uma eventual intervenção do exército de Espanha15. Com efeito, em alinhamento com a estratégia do Prior do Crato, são os estratos populares, propensos à defesa de uma identidade própria, que mais pugnam pela eleição de um novo rei em plenário dos três estados. Atento às circunstâncias, mas talvez tarde de mais, o monarca de Espanha ainda adverte os seus emissários para a necessidade do galanteio das gentes. De facto, na sequência da aclamação de Santarém, a entrada de D. António em Lisboa motiva o entusiasmo da multidão, causando o esmorecimento dos sequazes filipinos, agora convencidos da necessidade do emprego da violência, que acarreta todas as inconveniências16.

Na popularidade antoniana, particularmente na capital, talvez influa a maior proximidade à plebe, quiçá uma herança da bonomia paterna, sobretudo a repugnância pela fiscalidade castelhana, presente no episódio das alcavalas, e pela ameaça do recrutamento militar, constante na Monarquia Hispânica, fruto da multiplicação dos focos de tensão político-militar. Neste contexto, caem bem as promessas da suspensão da guerra em África, após o morticínio de Alcácer-Quibir, e do desagravamento fiscal, insistentemente requerido pelos povos. De resto, nas vésperas da batalha de Alcântara, as confiscações impostas aos mercadores prenunciam uma governação mais justa, atenta à pobreza dos humildes.

Na adesão da turba lisboeta ao partido antoniano sempre imperam as diferenças e as inconstâncias, resultantes da divergência do estatuto e do interesse. Mesmo que movidos pelo intento da promoção, são díspares os ânimos nos extremos do grupo. No topo, a coberto de parcas regalias, os mesteres citadinos, representantes dos pequenos em cortes, anseiam pela elevação social, porventura pela nobilitação. Na base, contra todos os regimentos, os escravos, numerosos numa cidade mais negra do que branca, segundo testemunho italiano de 1593, aspiram simplesmente pela liberdade, também pelo conforto de um soldo. À margem de tantas contrapartidas, mais sensível à emoção, somente a ajuda das mulheres, muitas e interventivas, em consequência da falta dos homens, ora mortos ou aprisionados no Norte de África, ora perdidos ou instalados nas estâncias do Império. Mais difícil é o juízo sobre o posicionamento dos cristãos-novos. Talvez próximos de D. António, pela ascendência judaica da mãe, também pela aversão à ortodoxia do cardeal-rei D. Henrique, ex-inquisidor geral de Portugal, e de Filipe II, campeão do catolicismo na Europa, espreitam sempre todas as oportunidades comerciais, supostamente acrescidas no universo euro-ultramarino pela consumação da União Ibérica (Valladares, 2010, pp. 237-273).

Nos Açores, é também uma corrente popular que muito se empenha na aclamação de um soberano natural, contra a integração de Portugal num conglomerado dinástico, mesmo que relativamente comum na Europa desse tempo. De facto, as testemunhas arroladas por Manuel Jácome Trigo, para certificação do apego de seu pai à causa filipina, convergem na identificação do partido antoniano com um bando de populares, que comete uma imensidade de excessos (B.P.A.R.L.S.R., Documentos Avulsos, auto de testemunhas […]). Aliás, como já deixámos anotado, com mais ou menos desgaste, este caráter populista resiste inclusivamente às incidências de 1582, consequentes do afastamento e do exílio do respeitado Ciprião de Figueiredo, sob a invocação de pouco empenho no endurecimento da contestação e de pouca sabedoria na arte da guerra, da sua substituição pelo radical Manuel da Silva, que causa o amedrontamento dos remediados e o retraimento dos moderados, e ainda da maior chegada dos estrangeiros, sobretudo dos franceses, que disputam à população os víveres e o agasalho (Meneses, 1987, pp. 31-32).

Nas hostes de D. António, sempre individualizamos gente de outras ordens sociais, mas geralmente das camadas inferiores de tais grupos. A título de exemplo, uma clerezia anónima, entretanto numerosa e fanatizada, e elementos da baixa nobreza. Deveras singular foi, em 1580, a influência do capitão de São Miguel, Rui Gonçalves da Câmara, na aclamação do Prior do Crato em Ponta Delgada, traduzida no envio de uma missiva aos camaristas da cidade (Meneses, 1987, p. 27). Um ato a destempo, irrepetível depois do alinhamento dos homens e das corporações, resultante da clarificação do processo político.

O rei de Espanha, afora o emprego da força, obteve a agregação de Portugal, considerando o direito da herança, a força da conquista, acima de tudo, talvez o exercício da negociação. Na realidade, Filipe II atendeu às pretensões da nobreza, estabelecendo um regime de meação com os senhorios (Oliveira, 1991, p. 19). De facto, o denominado Estatuto de Tomar confere à aristocracia lusa o domínio da administração, nas vertentes da justiça, da fazenda e da guerra. Por isso, mesmo por antecipação, aquando da passagem de Filipe II por Lisboa, o licenciado Lorenzo de San Pedro incita os nobres à devoção do novo monarca, capaz de esquecer o ainda recente desaire do Magrebe, pela reconquista do ânimo e da esperança (Bouza Álvarez, 2000, p. 70). Uma súplica de todo desnecessária porque, face à insubordinação das gentes, tinham os grandes implorado a invasão filipina, considerando o castigo o antídoto mais natural da rebeldia. Uma tamanha cumplicidade suscita, entretanto, a recriminação dos vindouros, caso de Pero Roiz Soares, que no seu Memorial atribui a União Ibérica à traição da aristocracia (Soares, 1953, p. 152).

Contra a vontade dos povos, ainda em 1621, o poder régio retorna ao sistema administrativo dos governadores, atendendo às preferências nobiliárquicas, também eclesiásticas (Oliveira, 1991, pp. 23-24). De resto, a concessão de mercês persiste até à década de 1630, aquando da disputa do Brasil e da centralização de Olivares. Por isso, na ocorrência da secessão portuguesa, paira na corte madrilena a dúvida sobre a possibilidade de organização de uma imediata e robusta resposta militar espanhola, considerando a distribuição do património real entre os cavaleiros portugueses (Oliveira, 1991, p. 19). Com efeito, só na aproximação de 1640 surgem razões para a contestação dos nobres, quando a novel governação da monarquia hispânica procede, por exemplo, à supressão do Conselho de Portugal, através da sua substituição pelas Juntas de Lisboa e de Madrid, que admitem o acesso dos forasteiros. Agora sim, inconscientemente ou não, o novo estilo político-administrativo de D. Gaspar de Guzman proporciona ao movimento português da Restauração a indispensável liderança nobiliárquica.

A comprovar ainda a persistente verve pró-filipina da nossa aristocracia, são muitos os nobres portugueses, mesmo opositores de Olivares, que permanecem do lado de Filipe IV contra a ordem restauracionista, demandando somente o respeito pelo estatuto agregador de 158117. Por extensão, durante a longa guerra da Restauração, entre as frequentes deserções para o lado espanhol, figuram quase sempre os privilegiados, jamais os soldados mais humildes, exceto um ou outro mercenário seduzido por melhor soldo (Meneses, 2015, p. 25). A par da aristocracia mais tradicional, no partido filipino militam, entretanto, todos os maiorais, independentemente do seu caráter. A título de exemplo, a maioria do clero, movida pela crença da legitimidade e pelo ideal da contrarreforma, igualmente os homens de negócio, aliciados pelas oportunidades comerciais euro-ultramarinas18.

Nos Açores, os alinhamentos políticos seguem a tendência mais geral, registando a preferência filipina dos grandes, apesar do alongamento por três anos da resistência terceirense. Aliás, em Angra, logo em setembro de 1580, as autoridades pró-antonianas esmagam a conspiração de João Bettencourt, um nobre abastado, partidário do rei de Espanha (Meneses, 1987, p. 30). Depois, o curso da rebelião, que obriga ao afago do povo miúdo, afasta ainda mais os possidentes, que anseiam pela vitória de Filipe II. Deste modo, entre os estratos sociais superiores da Terceira, apenas D. Violante do Canto segue vivamente a causa de D. António. Mesmo assim, aquando da conquista da ilha em 1583, confessa ao marquês de Santa Cruz que, unicamente por ser mulher e viver só, aceitara a submissão à vontade dos populares, fanatizados pelo Prior do Crato19. De resto, todos os indícios comprovam a filiação nobiliárquica do partido filipino. Entre eles, o já citado auto de testemunhas solicitado por Manuel Jácome Trigo. Os depoimentos convergem em absoluto na identificação dos exilados remetidos a Inglaterra por ordem de D. António com um grupo de homens nobres e honrados, aficionado da Monarquia Hispânica (B.P.A.R.L.S.R., Documentos Avulsos, auto de testemunhas […]).

3. Nacionalismo, anti castelhanismo e saudosismo sebástico

Entre as causas, em 1580, da aclamação do Prior do Crato em Portugal e da resistência terceirense nos Açores e, em 1640, do movimento da Restauração, há autores que enumeram a influência de um nítido sentimento nacional (Schwartz, 2013, p. 496). Uma impressão que recrudesce no tempo da União Ibérica, dada a falta de um rei natural, insuficientemente mitigada pela ação filipina, apesar da criação do Conselho de Portugal, espécie de memória do velho reino junto do novo rei, e da nomeação de um vice-rei ou de governadores, representantes do monarca no país. Em abono de semelhante tese, jogam as cortes de 1641, onde o predomínio das súplicas dos particulares não ofusca a defesa da independência, garantida por um soberano nativo e residente contra a sucessão dos estrangeiros (Meneses, 2015, p. 23).

Nas cortes de Almeirim de 1580, para além do denominativo pátria, cuja definição sobrepõe o local de nascimento à dimensão do reino, os procuradores de Lisboa já utilizam o termo nação, como sinónimo de uma comunidade histórica portadora de um projeto autónomo (Bethencourt, 1991, p. 482). Tudo isto implica a identificação de um território, o português, com um mandante, o rei, donos de um passado próprio, erguido contra inimigos comuns, sendo eles sempre os castelhanos, mais longinquamente os muçulmanos, entretanto retornados ao Norte de África, mais recentemente os corsários e os piratas da Europa setentrional, seduzidos pelas riquezas de Além-Mar. Para tanto, importa a popularização de momentos marcantes de um tal percurso, por exemplo, a fundação de Portugal, sob proteção divina, à luz do suposto milagre de Ourique, a batalha de Aljubarrota, enquanto reconfirmação da independência, depois a construção do Império, pioneira no contexto europeu. Já em pleno domínio filipino, a Monarquia Lusitana de Frei Bernardo de Brito constitui talvez a melhor das justificações, quando reconhece uma existência portuguesa imemorial no quadro da grande Hispânia (Bethencourt, 1991, p. 489). Nesta narrativa, influi por certo a síndrome da desimportância de Lisboa, resultado da falta da corte e da conversão em presídio, que acrescem a saudade das vivências de outrora. Após a Restauração, as vicissitudes da guerra ampliam a diferenciação, dado o aprofundamento da antinomia entre portugueses e espanhóis.

Na história da civilização, a nação é efetivamente uma invenção europeia, mas de um tempo bem posterior à União Ibérica de 1580. Por isso, muitos estudiosos consideram anacrónica e mesmo a-histórica a utilização do conceito de identidade nacional em referência ao termo do século XVI. Com efeito, o nacionalismo hodierno brota da contradição do liberalismo, que na teoria advoga a liberdade e a descentralização, que na prática impõe o controlo e a centralização, beneficiando do progresso das técnicas, por exemplo, do desenvolvimento dos transportes e das comunicações, que aconchega as periferias à influência dos centros, em favor da confirmação de um sentimento de pertença a unidades territoriais mais extensas.

Ao tempo da crise dinástica do termo de Quinhentos, apesar da preocupação da coroa na salvaguarda das fronteiras medievais, os povos ainda não possuem verdadeiramente uma consciência de pertencimento a uma ampla realidade geográfica. A título de exemplo, os populares gravitam em redor do local de nascimento, a gente da governança controla o território dos municípios, em defesa de uma autonomia, sob ameaça dos senhores e da própria realeza, e a aristocracia prima pela vigilância das casas e dos respetivos domínios, embora movida pelo alargamento das jurisdições. De resto, a coberto da obediência à Santa Sé, o clero escapa à observância de muitos dos normativos reinóis (Meneses, 2015, pp. 30-31). Por outras palavras, a solidariedade entre as famílias e os grupos supera em muito as fronteiras políticas20. Nestas circunstâncias, como bem observa Stuart B. Schwartz, sem olvidar a influência da naturalidade, é talvez mais adequada a referência à germinação de uma espécie de paleo nacionalismo (Schwartz, 2013, p. 498).

No século XVI, a maior prova da inexistência de uma comunidade internacional de nações à moda da Idade Contemporânea consiste na identificação do estrangeiro com aquele que vive fora do lugar, sobretudo da paróquia, não propriamente com aquele que reside noutro reino (Bethencourt, 1991, p. 484). Além disso, na escolha dos reis, impera mais o princípio da legitimidade do que a condição da naturalidade (Hespanha, 1993, p. 8). É certo que os súbditos apreciam um governo de proximidade, mas sem implicar necessariamente com a residência do monarca. De resto, na ação dos soberanos, todos consideram a autoridade, a grandeza e o poderio, indispensáveis no Portugal de 1580, após a instabilidade das regências21.

À data da crise dinástica, a cisão dos partidos diverge naturalmente da divisão entre nações. Com efeito, o confronto não respeita apenas a duas fações, uma portuguesa, outra castelhana, pois são muitos os interesses sociopolíticos incompatíveis com o quadro das monarquias, como são também muitas as modalidades de integração económica inconciliáveis com as fronteiras dos reinos. Na generalidade, durante os séculos XVI e XVII, os estados europeus são entidades compósitas e plurais, desprovidas do poder de efetivo controlo, nos próprios centros, muito mais nas periferias. Assim, o denominado absolutismo, na prática desconforme da teoria, coexiste com o autogoverno das regiões adjacentes, onde identificamos unidades autónomas, algumas delas embriões de futuras nações22. Dito isto, não admira que António Manuel Hespanha discorde da equiparação do movimento da Restauração de 1640 a um ato de recuperação da independência de Portugal, salvaguardada pelo Estatuto de Tomar de 1581. Em vez disso, acredita somente na reposição de uma tradicional modalidade de mando, muito mais apropriada ao proveito e à mentalidade dos corpos dominantes (Hespanha, 1993, p. 14).

Em Portugal, da União Ibérica à Restauração, a inexistência de um nacionalismo à laia do nosso tempo não obsta, entretanto, à individualização de um sentimento profundamente anti castelhano, de todo equiparável à sensibilidade antijudaica (Marques, 1989, p. 42). Afinal, uma consequência de um esforço mais do que secular de diferenciação dos vizinhos castelhanos contra os quais os portugueses travaram todas as guerras, desde a reconquista do Algarve aos mouros em meados do século XIII. Aliás, a literatura faz eco desse desentendimento peninsular. A comprová-lo, na sua Miscelânea, Garcia de Resende regista explicitamente que “Portugueses, Castelhanos / Não os quer Deus juntos ver” (Godinho, 1981, p. 310). Por acréscimo, Diogo Couto ainda reconhece que a rixa luso-castelhana é uma questiúncula de gente de baixa condição, uma espécie de património popular, menos arreigado por entre os privilegiados (Couto, 1980, p. 199). Aliás, no dia da Restauração, é a plebe lisboeta que estropia o corpo do odiado Miguel de Vasconcelos, são os conspiradores da nobreza que resguardam a princesa D. Margarida da ira das gentes (Schwartz, 2013, p. 501). Uma prova mais da defesa pelos populares dos reis naturais, D. António, em 1580, D. João IV, em 1640. Em suma, durante o tempo da unificação peninsular, pese embora o interesse e o acordo dos maiorais, sobram os indicadores da equiparação da nossa populaça a uma comunidade de “vassalos incertos”, como bem regista Anthony Sherley, um arbitrista e aventureiro inglês às ordens de Espanha (Schwartz, 2013, p. 497).

A união das coroas tanto amaina como atiça o desamor ibérico, consoante a tipologia dos tempos, ora de maior bonança, ora de maior alvoroço. De facto, durante os sessenta anos da dinastia filipina, as conjunturas de entendimento coexistem com a irrupção da rebeldia, por exemplo, na resistência do começo da década de 1580, nas alterações do final do decénio de 1630, depois na Restauração de 1640, ainda acrescida de uma longa guerra, que só admite a paz em 1668. Porém, mesmo nos intervalos, quer do domínio espanhol, quer do conflito da aclamação, sobram os pretextos para a contestação em espaços mais específicos. Entre eles, nas cidades e nas vilas com presença militar castelhana, os conflitos de jurisdição com as autoridades locais, também os confrontos com a população na disputa por abrigo e comida. De resto, as épocas de maior acalmia social e bélica comportam sempre a repugnância cultural, mesmo no século áureo da língua e do saber castelhanos, que transformam o bilinguismo em apanágio das elites portuguesas mais ilustradas. Com efeito, atente-se na insistência de promoção da língua portuguesa, protagonizada por autores como Rodrigues Lobo e frei Luís de Sousa, também o padre Bento Pereira, com o sugestivo Florilégio dos Modos de Falar e Adágios da Língua Portuguesa (Meneses, 2015, p. 23). Se não de maior significado, pelo menos de maior difusão, ainda ressalta a colocação de uma enfâse crescente, durante a monarquia dual e o conflito da aclamação, na tradição literária de ridicularização dos espanhóis (Bouza Álvarez, 2000, p. 32).

Nos Açores, particularmente na Terceira, com maior presença militar espanhola, também surgem os indícios de um anti castelhanismo latente, que brota em conjunturas de maior antagonismo. A tal sentimento, mais característico dos populares, não é sequer alheia a aristocracia, perante a ameaça de privilégios tradicionais23. Na perpetuação de sinais de contestação típicos do tempo da resistência terceirense, em 1625, o Conselho de Guerra não hesita no afastamento do governador do castelo de São Filipe do Monte Brasil, D. Pedro Esteban d’Avila, por interferência grosseira em quezílias da governança da cidade (Schaub, 2013, p. 90).

Na relação entre portugueses e castelhanos, o entendimento do predomínio de uma rivalidade insanável demanda, entretanto, algum comedimento. De facto, desde tempos imemoriais, Espanha é o qualificativo de toda a Península Ibérica. Quer isto significar que, no universo peninsular, o espaço dos reinos é relativamente secundário. Acima, temos a matriz cristã e católica, que a todos une sem exceção. Abaixo, encontramos as dimensões regional, local e corporativa, com profundo enraizamento social.

Na Terceira, em 1595, a câmara de Angra emite parecer favorável sobre a nomeação do capitão Juan Amilibia para mestre de campo interino, por morte de D. Antonio de la Puebla. Além disso, para provimento definitivo do posto, os camaristas solicitam o retorno de Juan de Urbina, artífice da administração militar consequente da conquista filipina de 1583, alegando com a necessidade da promoção mais eficaz do combate ao corso e à pirataria. A proposta indicia nitidamente reconciliação, após as refregas do tempo da resistência. Com efeito, uma dúzia de anos volvida sobre a invasão e o saque castelhanos, não resulta claro a identificação de uma barreira entre os militares forâneos e a população local (Schaub, 2013, pp. 81, 83, 90).

Para maior harmonia das comunidades, muito influi a prática da nupcialidade entre espanhóis e portuguesas, agregando algumas chefias do terço a mulheres de condição, sobretudo a soldadesca às populares. Aliás, entre 1583 e 1640, são quase cinco centenas as famílias angrenses com cônjuge masculino de naturalidade espanhola, pertencente à guarnição do castelo do Monte Brasil (Mesquita, 2004, p. 97). Além disso, a evidenciar a plena integração dos soldados hispânicos na comunidade açoriana, avulta a conivência da população com todos aqueles que, descontentes, desertavam do presídio, obtendo facilmente refúgio em povoações rurais terceirenses, por vezes, em ilhas mais periféricas24.

Nos Açores, para melhor entendimento entre locais e forasteiros, talvez contribua também o consórcio de D. Margarida Corte Real com D. Cristóvão de Moura, principal rosto do lusitanismo filipino, com proeminência na corte madrilena desde 1573, mas ainda mais depois de 1578, primeiro como emissário na negociação da união das coroas, de seguida como privado do monarca e como ministro, sempre responsável pelos assuntos portugueses, finalmente como vice-rei de Portugal entre 1600-1603 e 1608-1612 (Martínez Hernández, 2011, pp. 81-93). Por consideração pessoal e política, Filipe II atribui-lhe o título de marquês de Castelo Rodrigo, em cuja casa se tece a segunda maior rede de solidariedades nobiliárquicas, depois da dos Bragança. Ao invés, antonianos e sebastianistas, à época, e as historiografias liberal e nacionalista, mais recentemente, reconhecem na sua atividade uma prática de traição, responsável pela entrega do reino ao arqui-inimigo ibérico25. Por isso, de nada lhe vale a porfiada defesa da inviolabilidade dos privilégios de Portugal inscritos no Estatuto de Tomar, porque à data da Restauração, já sob a administração do filho Manuel de Moura, ocorrem de uma assentada a abolição dos títulos e a incorporação das rendas na coroa.

Ainda em 1581, antes da submissão dos Açores, o casamento com D. Margarida, da casa e morgado dos Corte Reais, incumbe a D. Cristóvão a defesa dos direitos filipinos no último bastião do Prior do Crato. E porquê? Porque, em vez do primogénito morto em Alcácer-Quibir, a consorte era detentora das capitanias de Angra e de S. Jorge, a que por doação régia ainda acrescem, de imediato, a capitania da Praia, então vaga, a partir de 1614, no governo do sucessor, a capitania do Faial e do Pico. Nestas ilhas, o alinhamento do poder senhorial com a nova dinastia dos Habsburgos facilita decerto o apaziguamento social, logo após a conquista de 1583.

Em 1580, mais do que entre D. António ou Filipe II, em 1640, mais do que entre D. João IV ou Filipe IV, são muitos os portugueses, sobretudo os populares, mas também alguns homens de condição, que antes preferem o desaparecido rei D. Sebastião. No advento da União Ibérica, em 1581, de passagem por Lisboa, Filipe II foi espontaneamente obsequiado com uma dança de boas-vindas de mulheres do povo. Porém, do grupo de dançarinas, irrompe uma peixeira que o adverte da obrigação de devolução da coroa aquando de retorno de D. Sebastião (Bouza Álvarez, 2000, p. 63). Pouco antes, em 1579, no Diallogo llamado Philippino, o licenciado Lorenzo de San Pedro, através de uma personagem literária, também imagina uma conversa nos arredores de Lisboa com um nobre lusitano, para que desistisse da esperança sebástica e aderisse à causa filipina (Bouza Álvarez, 2000, p. 79). Porém, nessa altura, na ressaca de Alcácer-Quibir, assediadas por mulheres a implorar por pais, maridos ou filhos, as bruxas de Lisboa suscitavam infundadas esperanças em redor da sobrevivência e do retorno do rei desaparecido, provocando uma perturbante inquietação (Valladares, 2010, p. 264).

No decurso da dinastia filipina, o sebastianismo ganha força, porque ao reconhecimento da decadência, atribuível aos espanhóis, contrapõe com a busca de maior felicidade. Por isso, à chegada da Restauração, ainda é maior o grupo dos que escolhem o messianismo sebastianista, comparativamente ao duque de Bragança, que só suscitou um entusiasmo cauteloso, por ser distante e altivo, também por ser consorciado com uma espanhola (Schwartz, 2013, pp. 502-503).

Na sucessão do tempo, a conversão do sebastianismo em característica estrutural da sociedade portuguesa não ofusca de todo a influência do antonianismo, que não cessa no Reino de 1580, nem sequer nos Açores de 1583, apesar do mutismo da historiografia, intencional no domínio filipino, um tanto estranho na época da Restauração, só a espaços invertido por força do nacionalismo dos séculos XIX e XX, propenso à emoção não propriamente ao rigor. À semelhança do mito sebástico, brotam durante a vida os falsos D. António, depois da morte os falsos filhos de D. António, gerando a inquietação das autoridades espanholas, que temem pela segurança da península, sobretudo do império, movendo perseguição ao Prior do Crato, que se livrara da prisão e do julgamento, também aos seus descendentes e sequazes (Marques, 2003, pp. 226-229). Entre os temores da corte madrilena, enumeramos a eventualidade de uma aliança com a poderosa casa de Bragança, que propiciasse a coroa a D. António, mas transitando à hora da morte para o duque de Barcelos, da linhagem brigantina. Ademais, o incómodo do possível falecimento de Filipe II antes do Prior do Crato, a facultar a reabertura da disputa do trono de Portugal (Valladares, 2010, pp. 281, 301).

O antonianismo sobrevive a D. António, sobretudo pela atividade de seu filho, D. Manuel, que também assenta arraiais e obtém suporte em potências da Europa do Norte, rivais da Monarquia Hispânica. Aliás, em 1597, causa susto a notícia do casamento nas Províncias Unidas do herdeiro do Prior do Crato com a irmã do conde Maurice de Nassau, filha do príncipe de Orange. O temor resulta do propalado ajuntamento de uma expedição, para estabelecimento do nubente no Brasil, em desafio à dominância ultramarina de Espanha (Marques, 2003, pp. 233-234). De resto, a ameaça subsiste até à segunda metade da década de 1620, quando a descendência antoniana desiste das pretensões ao trono de Portugal e presta obediência à dinastia filipina (Marques, 2003, pp 240-244).

No decurso da União Ibérica, para perpetuação da memória, o Prior do Crato e os sucessores recorrem inclusivamente a uma bem orquestrada campanha editorial. Com fundamento na tradição e na lei, para defesa da pretensão dinástica, invocam a legitimidade do nascimento, contra a mácula da bastardia, a vagatura do trono, com sustentáculo histórico, sem prova jurídica, e a consequente usurpação da coroa. Em reação, até com recurso à calúnia, a propaganda espanhola intenta o descrédito, sobretudo na ocorrência de maior apuro, por exemplo, aquando da investida de 1589, que culmina em desembarque de D. António em Peniche e na intimidação de Cascais (Marques, 2003, pp. 218, 225-226).

Já em busca da ajuda diplomática e militar dos europeus do Norte, adversários da grande Hispânia, os insurgentes jogam a cartada dos domínios ultramarinos de Portugal, em tempo de contestação da política do mare clausum, quando acresce a disputa do Atlântico, onde o Brasil assume a feição de principal colónia da Europa. Aliás, logo no começo dos anos oitenta, ainda antes da conquista dos Açores, Juan Baptista Tassis, embaixador de Madrid em Paris, indica a presença do conde de Vimioso na corte parisiense, em missão de permuta de uma posição francesa no Brasil por um apoio guerreiro à causa antoniana. Por isso se admite que, em 1582, a armada de Filipe Strozzi, batida pelo marquês de Santa Cruz ao largo de Vila Franca, tivesse um suposto destino brasileiro (Marques, 2003, pp. 220-221). De resto, descrentes da retoma de Lisboa, tanto D. António como depois D. Manuel admitem a instalação da realeza na possessão sul-americana, sob proteção estrangeira, compensada por facilidades comerciais, eventualmente por cedências territoriais.

Nos Açores, durante o domínio filipino, persiste na memória das gentes, até talvez com maior presença, fruto das incidências da resistência longa e da conquista tardia, a recordação de D. António, mesmo uma suposta relação com o herdeiro, D. Manuel. Aliás, ainda em 1623, com base em informações de mercadores e viajantes, o mestre de campo do presídio terceirense, D. Pedro Estevão de Ávila, alude à constituição na Holanda de uma grossa expedição, que rumaria aos Açores, onde suscita um contido agrado popular (British Library, Col. Additional: 28439, 23v).

Conclusão

No contexto da resistência e da conquista da ilha Terceira, uma tença de 1583 e uma petição de 1584, que associa um auto de testemunhas, tendente à obtenção de um semelhante benefício, demonstram alinhamentos políticos e vivências sociais da família Trigo e de alguns companheiros da mesma igualha. Estes dois documentos da Biblioteca Pública e Arquivo Regional Luís da Silva Ribeiro são a essência deste estudo, já que acrescentam conhecimento novo à narrativa da conquista da Terceira em 1583.

Em Angra, Jácome Trigo era um membro da governança local, também um agente da administração régia. Para tanto, usufruía da necessária competência burocrática, já em acrescido desenvolvimento, ainda da elevada condição social de homem privilegiado. Contra a vontade do povo, cativado ora pela respeitabilidade de Ciprião de Figueiredo ora pelo radicalismo de Manuel da Silva, sobretudo fanatizado pela clerezia, alinhada com a propaganda antoniana, Jácome Trigo e muitos outros nobres permaneceram fiéis à causa do rei de Espanha, porque destinatários da benemerência filipina. Em consequência, por reprimenda das justiças de D. António, foram vítimas da perseguição, do sequestro de bens, até da condenação à morte, depois aparentemente comutada em exílio para Inglaterra em 1582. Daqui, rumaram para Lisboa em reforço do partido espanhol, vertido no retorno de todos eles na expedição de conquista da Terceira em 1583.

Em suplemento, procedemos à revisitação, não propriamente à revisão, que acarreta outra análise, de problemáticas da união dinástica, por exemplo, as pendências sociais e os pretextos políticos, que enformam o assentimento de Portugal e a rebeldia dos Açores, realçando a luta dos partidos, as reminiscências nacionais ou simplesmente o saudosismo mais de D. Sebastião do que D. António.

Na crise dinástica de 1580, discordam essencialmente Filipe II, que ostenta direitos de sucessão, reivindicando a entronização, e D. António, que invoca a vagatura do trono, pugnando pela eleição. Sob a ameaça militar, que reverte em violência, mas em atitude de benevolência, que prefere a agregação à assimilação, o monarca de Espanha atrai os grandes de Portugal, que mais influem na política e na sociedade. Com maior ou menor dificuldade, o Prior do Crato preserva um apoio desigual por entre os estratos sociais baixos, a saber, o povo, algum clero indiferenciado e alguma pequena nobreza. Nestas circunstâncias, a intimidação de Alcântara (1580) e o compromisso de Tomar (1581) ditam a coroação filipina.

Nos Açores, a divisão social é muito semelhante, mas mais evidente pelo realce da bipolarização. Por acréscimo, a resistência é duradoura e relativamente eficaz. Para tanto, concorrem o resguardo da geografia, a liderança de Ciprião de Figueiredo, respeitada por muitos, e o apoio dos estrangeiros, ditado pelo intento da partilha do Ultramar contra o monopólio de Espanha, que converte a quezília insular em disputa euro-ultramarina. Todavia, a prazo, a força e o comando espanhóis ganham superioridade sobre uma amálgama de contingentes, por vezes indisciplinados, que pelejam pelo Prior do Crato, talvez demasiado movidos pelo roubo de especiarias e de metais preciosos, também atreitos à fuga em conjunturas de maior aperto.

O lamento mais ou menos sonante da falta de um rei natural move tradicionalmente alguns observadores à identificação, da resistência de 1580 à Restauração de 1640, de um sentimento nacional. Entretanto, em vez disso, sobretudo entre os povos, não tanto no seio dos senhores leigos ou eclesiásticos, a maioria dos estudiosos de hoje reconhece apenas a existência de uma sensibilidade anti castelhana, se bem que antiga e profunda, nascida de uma antinomia de séculos em disputa de fronteiras comuns. De qualquer forma, as interpretações de confronto e de distanciamento carecem, todas elas, de uma análise de maior comedimento. Atente-se, por exemplo, naquilo que ocorre nos Açores, particularmente na Terceira, durante o domínio filipino. Em pouco tempo, as dinâmicas de antagonismo cedem o passo às vivências de entendimento, que esbatem a primeira dicotomia entre militares forasteiros e população local, substituída pela convivência das partes. Com efeito, uma prática constante de casamentos mistos une todos, isto é, do lado dos homens espanhóis, dos graduados aos rasos, da banda das mulheres portuguesas, das privilegiadas às populares. Até D. Cristóvão de Moura, o principal servidor de Filipe II no negócio de Portugal, desposa D. Margarida Corte Real, acedendo à posse das capitanias da Terceira e de S. Jorge, a que acresce o governo do Faial e do Pico, já no tempo da descendência.

Bem vistas as coisas, mais do que nacionalismo ou anti castelhanismo, na malquerença dos portugueses, e também nos Açores, impera muitas vezes a saudade do desaparecido D. Sebastião. Na verdade, o pressentimento incendeia a plebe e muitos homens de condição, irmanados na crença do retorno do malogrado soberano, único meio de conversão da decadência supostamente trazida por Espanha na grande prosperidade do antigo Portugal. Neste contexto, a memória de D. António também motiva inquietação, enquanto move o interesse dos rivais filipinos da Europa do Norte, seduzidos pelas oportunidades do império de Portugal, sobretudo as do Brasil, mas que destacam sempre a valia dos Açores.

Dito isto, resta acrescentar que, no contexto da crise dinástica de 1580, o Reino, e ainda mais os Açores, particularmente a ilha Terceira, vivem em clima de bipolarização social. Do lado de D. António, ficam os povos, pelo menos aqueles a quem as vicissitudes conferem maior visibilidade pública, e alguns estratos inferiores das demais ordens sociais. Do lado de Filipe II, fica a generalidade dos possidentes, tanto os leigos como os eclesiásticos. Apesar de tudo, a divisão é grosseira, pois com mais ou menos evidência atravessa sempre os grupos, mesmo algumas famílias. Ademais, à margem do messianismo sebástico, porventura da memória antoniana, que perduram, se não acrescem, na dinastia filipina, prevalece um anti castelhanismo multisecular, mas somente um paleo nacionalismo, precursor da verve nacionalista de tempos mais adiantados.

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1A propósito da carreira administrativa de Jácome Trigo, veja-se o auto de testemunhas decorrente da etição de seu filho Manuel Jácome Trigo (Angra, 28.8.1584), depositado na Biblioteca Pública e Arquivo Regional Luís da Silva Ribeiro (B.P.A.R.L.S.R.) em Angra do Heroísmo,Documentos Avulsos.

2Inquirido no âmbito da petição de Manuel Jácome Trigo, Melchior Fernandes Rodovalho afirma que Jácome Trigo “serviu os ofícios dos contos por espaço de muitos anos com os quais serviu aos Reis passados com muita diligência e vigia de sua fazenda e cobrança dela e muito diligente na vigia de seus navios que a esta ilha vinham assim da Índia como da Mina como de qualquer outra parte no que teve muito trabalho de dia e de noite” (B.P.A.R.L.S.R.,Documentos Avulsos, auto de testemunhas ).

3O fidalgo Melchior de Magalhães, em sede de inquirição, refere que Jácome Trigo “… era da governança desta cidade e serviu nela os ofícios e cargos nobres e honrosos por ser para isso eleito por pelouro …” (B.P.A.R.L.S.R.,Documentos Avulsos, auto de testemunhas ).

4Na verdade, Gaspar Roiz de Çea assevera que Jácome Trigo “por ser do serviço de Sua Majestade e não querer obedecer aos mandados de dom António foi levado preso perante o dito Manuel da Silva e o mandava enforcar e a esse termo chegou e esteve”. Já Melchior Fernandes Rodovalho tece uma narrativa algo diferente. Com efeito, relata assim: “E outrossim é verdade que estando dom António nesta ilha Terceira mandou levar diante si o dito Jácome Trigo pai do suplicante por saber que era do serviço de Sua Majestade e contra o seu e o mandava enforcar e nesses termos esteve e o tinha mandado confessar para o enforcar” (B.P.A.R.L.S.R.,Documentos Avulsos, auto de testemunhas ).

5Em processo de inquérito, de novo o escudeiro Paulo Gomes confirma a odisseia de Jácome Trigo e acompanhantes (B.P.A.R.L.S.R.,Documentos Avulsos, auto de testemunhas ).

6Após o desaire de D. Pedro de Valdés na Salga em 1581, D. Álvaro de Bazan, o principal almirante de Espanha, é o artífice da conquista da Terceira, na decorrência das vitórias de Vila Franca do Campo em 1582 e das Mós em 1583. No entanto, o seu nome surge associado à campanha de Portugal desde mais cedo. Com efeito, cabe-lhe o comando do braço marítimo da expedição do duque de Alba, que bate o contingente de D. António em Alcântara, em agosto de 1580. Além disso, aquando da passagem de Filipe II ao Reino português em 1581, é ele o comandante da embarcação que, na ribeira de Lisboa, transporta o monarca entre Vila Franca de Xira e Almada.

7A carta padrão de 6 de julho de 1583 releva efetivamente o desempenho de Jácome Trigo que “procedia bem em meu serviço nas alterações da ilha Terceira e ser por isso avexado e muito perseguido e ser-lhe tomada muita fazenda e ser embarcado com pregão para Inglaterra onde faleceu” (B.P.A.R.L.S.R,Documentos Avulsos, carta de padrão a favor de Antónia Gomes por serviços prestados pelo falecido marido Jácome Trigo, Lisboa, 6.7.1583).

8A título de exemplo, a testemunha Melchior Fernandes Rodovalho ancora o seu depoimento no simples facto de “ir e vir em companhia do suplicante” (B.P.A.R.L.S.R.,Documentos Avulsos, auto de testemunhas ).

9Na lista filipina de beneficiários, em 30 de abril de 1586, o nome de Isabel Dinis surge também associado à obtenção de uma tença de 15$000, na condição de filha de Belchior Afonso, presumidamente extinto. A hipótese verosímil de se tratar da mesma pessoa traz mais luz sobre a sociologia do partido de Filipe II na ilha Terceira, genericamente constituído por gente de condição ligada por laços familiares (Maldonado, 1989, pp. 373-378).

10A propósito, releva ainda a legitimidade de D. Catarina, duquesa de Bragança (1540-1614). Com efeito, invoca direitos sucessórios válidos, concitando se não o apoio pelo menos a simpatia de setores da nobreza reinol, quiçá do próprio cardeal rei D. Henrique. Todavia, não perturba significativamente a disputa do trono, cingida à superioridade de Filipe II, que quebra a contestação de D. António, Prior do Crato. Antes da união ibérica, apesar das diligências diplomáticas, sobretudo na Santa Sé, D. Catarina não incita à agitação social nem recorre à força militar. Depois da união ibérica, recolhe com o duque D. João à sede de Vila Viçosa, zelando essencialmente pela preservação e pelo engrandecimento do ducado (Serrão, 1981, p. 23).

11Ainda em 1579, quando D. Henrique decide a abertura de um pleito sucessório, que faculta a apresentação de fundamentos legais pelos potenciais pretendentes à coroa lusitana, já o embaixador filipino em Lisboa recusara a submissão do rei de Espanha a qualquer tribunal ou arbitragem “visto a coroa lhe pertencer de pleno direito por ser o neto mais velho e varão, de acordo com o princípio do direito de sangue, então seguido” (Cardim, 2015, p. 79).

12No propósito do impedimento da convocação das cortes, os serviçais de Filipe II vasculham em arquivos portugueses e castelhanos, designadamente, na Torre do Tombo e em Simancas, testemunhos que, no dizer de Cristóvão de Moura, “confirman el derecho de Vuestra Magestad y enflaquecen el pueblo de ellegir” (Bouza Álvarez, 2000, p. 43).

13Nas últimas décadas, a historiografia espanhola prestou atenção à crise dinástica portuguesa, antecessora da União Ibérica. Fê-lo com argumentos válidos, não propriamente com uma interpretação unânime. Com efeito, a par da preponderância da teoria da negociação, que possui por campeão Fernando Bouza Álvarez, sobrevêm o destaque da violência, admitido por Rafael Valladares.

14Após o êxito dos insurretos terceirenses na baía da Salga em 25 de julho de 1581, é deveras enigmático o afastamento em 1582 do líder Ciprião de Figueiredo, por iniciativa de D. António, talvez que não, com a conivência de D. António, decerto que sim. A amenizar a desconsideração do herói, somente o seu encaminhamento para o exílio europeu em companhia do próprio Prior do Crato. Entre as razões do inusitado desfecho, em tempos de radicalização extrema da rebelião, é de crer que a moderação do corregedor gerasse incómodo, talvez até a desconfiança da incursão em processo de traição, sob um eventual aliciamento dos maiorais, mais afetos ao rei de Espanha. Primeiro vítima da clerezia e das governanças revoltas, que intentam o seu saneamento ainda em 1581, a resistência de Ciprião de Figueiredo quebra na 1.ª metade de 1582, depois da chegada do lugar-tenente Manuel da Silva, conde de Torres Vedras, que supera em jacobinismo a oposição dos adversários internos. Já em 13 de outubro de 1581, o clarividente frei Simão de Barros, que solicita auxílio à rainha de Inglaterra, invocando a valia estratégica da Terceira, por ser “a chave de toda a navegação de Espanha e quem a tiver não tem necessidade de ir a Índias nem de passar ao mar do sul”, não hesita em classificar o reputado corregedor como “uma ignorante piedade de homem; que não sabe que cousa é guerra, nem se criou nela”, dada a sua oposição ao ingresso de soldados estrangeiros (Quinn, 1979, p. 13). Nos primeiros meses de 1582, a paixão e a inabilidade do conde de Torres Vedras, ao converter os moderados em inimigos, por força de castigos e de sequestros, colide por certo com o maior comedimento do magistrado, que concita mais a suspeita dos radicais, vertida na sujeição e no desterro.

15Este intento resiste à sucessão do tempo. Na verdade, ainda em 1613, os camaristas de Lisboa contestam a nomeação para vice-rei do conde de Salinas, dada a sua naturalidade forasteira. Mesmo que defensores de um poder único, considerado mais favorável aos povos, preferem a nomeação de governadores, porque são geralmente naturais (Oliveira, 1991, p. 20).

16Aquando da entrada de Filipe II em Lisboa no ano de 1581, o militar Estevan de Ibarra até admite a possibilidade do regicídio, considerando o ódio dos povos pelo rei de Espanha, cujo eventual desaparecimento equivaleria a um ato de libertação (Valladares, 2010, p. 277).

17Assim, a ação dos ditos populares, nobres pretensamente opositores da opressão do povo, não passa de um epifenómeno, já que atuam muito em autodefesa “dado que também ficaram abrangidos pelo campo da sucção fiscal”, promovida pelo governo de Olivares (Oliveira, 1991, p. 36).

18Em abril de 1580, uma carta das cortes de Almeirim coloca do lado do rei de Espanha todos os grandes, anotando que “mucha parte de los letrados de Portugal, los de Castilha, Italia y Francia y assi mismo todos los senõres y todo el estado eclesiástico junto son de firme parecer que el rreino es de su Católica Magestad” (Bouza Álvarez, 2000, p. 38).

19Archivo General de Simancas,Guerra Antigua, legajo 150, doc. 114, carta do marquês de Santa Cruz ao rei. Cádis, 13.10.1583.

20Sobre o assunto, António Manuel Hespanha afirma que “o pressuposto nacionalista, segundo o qual a época fora atravessada por uma oposição fundamental entre portugueses e espanhóis, criou-o uma leitura nacionalista dos acontecimentos, propiciada, quer pela natureza já de si enviesada dos relatos da época, quer pelo nacionalismo romântico da historiografia oitocentista” (Hespanha, 2000, p. 11).

21É essa, por exemplo, uma das mensagens constantes do livro de 1585 do genovês Jeronimo de Franchi Conestaggio, que trata da história da união ibérica (Conestaggio, 2017).

22Neste tempo, mais do que o Estado, é a Igreja que exerce melhor controlo em todas as comunidades, no múnus espiritual, também no domínio do temporal. Para tanto, beneficia de uma rede mais numerosa e mais eficaz de agentes eclesiásticos, com uma real supervisão do território (Hespanha, 1993, pp. 10-11).

23Na verdade, “cuando el bienestar; la seguridad o la influencia de algunas familias de la oligarquia parecían amenazadas, el argumento anti-español nunca dejó de ser de lo más eficaz” (Schaub, 2013, p. 90).

24De facto, “la realidad fue mucho más matizada, porque ambas sociedades se mezclaron, tanto a nivel de lazos personales como a nivel de solapamientos institucionales” (Schaub, 2013, p. 86).

25A este propósito, na década de 1640, no seuEcco polytico, respuesta de Portugal a la voz de Castilla, Francisco Manuel de Melo nega aos Moura a condição de naturais de Portugal, considerando a extrema dependência da dinastia filipina (Martínez Hernández, 2013, p. 75).

26Em benefício da inteligibilidade do texto, na transcrição de excertos dos documentos quinhentistas depositados na B.P.A.R.L.S.R., procedemos a uma relativa atualização da grafia. Com efeito, realizámos a regularização do uso de maiúsculas e minúsculas, convertemos as consoantes duplas em simples, introduzimos a acentuação indispensável, transformámos também algumas letras nas correspondentes atuais, casos do u em v, do j e do y em i, eventualmente, do o em u

Recebido: 05 de Janeiro de 2021; Aceito: 30 de Março de 2021

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