1.Introdução
Desde a década de 1990 que Portugal tem demostrado preocupação em por fim aos crimes de violência doméstica e violência contra as mulheres, adotando estratégias que passam tanto pelo apoio às vítimas como pela punição dos agressores. No entanto, no último ano algumas decisões dos tribunais portugueses têm gerado polémica na opinião pública e incentivado o debate sobre o modo como a justiça portuguesa aborda os crimes de violência contra as mulheres. Na sequência destes casos várias instituições e associações feministas e de apoio às vítimas de violência doméstica vieram a público demonstrar o seu desagrado com essas decisões, argumentando que estas culpabilizam a vítima, contribuem para a revitimação e fazem crescer a desconfiança no sistema judicial, o que no futuro pode refletir-se numa diminuição dos números de queixa, para além de transmitirem à população e gerações futuras uma ideia de que a violência contra as mulheres é aceitável, o que vai contra os esforços feitos em matéria de igualdade de género nas últimas décadas (UMAR, 2017, 2018a). Infelizmente os casos que se tornaram polémicos não são casos isolados, nem são os únicos sinais preocupantes no que toca a atuação da justiça na violência contra as mulheres. Os dados disponíveis mostram-nos que dos casos de violência doméstica, onde as mulheres são a maioria das vítimas (Sistema de Segurança Interna, 2018), os agressores acabam por não ser punidos, uma vez que um grande número de casos acaba arquivado, e mesmo quando o processo avança para os tribunais em grande parte dos casos o arguido é absolvido, e na grande maioria dos casos em que é condenado a pena de prisão acaba por ser suspensa (Ministério da Administração Interna., 2017). Os profissionais das instituições de apoio à vítima acompanham regularmente a atuação da justiça em matéria de violência contra as mulheres, bem como acompanham as vítimas durante todo o processo judicial, assim importa perceber a visão que estes têm da justiça, bem como perceber quais as limitações da justiça portuguesa nesta temática e quais as recomendações para que a justiça consiga atuar melhor na defesa dos direitos das mulheres vítimas. Assim, este trabalho tem por objetivo compreender a perceção que os profissionais das instituições de apoio às vítimas de violência doméstica têm da atuação da justiça em Portugal.
2.Os números da violência contra as mulheres em Portugal
Antes de serem apresentados quaisquer dados referentes à incidência da violência contra as mulheres importa esclarecer que quando se estuda uma realidade como a violência doméstica os números conhecidos dificilmente correspondem aos números reais. Isto porque existe uma diferença entre a violência denunciada e a violência vivenciada (Portugal, 2000). No caso da violência doméstica é ainda mais difícil conhecer os números reais, uma vez que esta violência ocorre principalmente em ambiente privado. Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), a nível mundial, uma em cada três mulheres são vítimas de violência física ou sexual ao longo da sua vida (WHO, 2016). Em Portugal, no ano de 2017 foram apresentadas às forças de segurança nacionais 26 713 queixas por violência doméstica, em 79,9% dos casos a vítima era do sexo feminino, o que se traduz em 25.498 mulheres vítimas de violência. Quantos aos agressores 83,8% pertenciam ao sexo masculino. Na análise de parentesco entre vítima e denunciado em 70,5% dos casos o agressor era companheiro ou ex-companheiro da vítima (Sistema de Segurança Interna, 2018). Estes dados demostram que na maioria dos casos de violência doméstica a vítima é uma mulher que tem ou já teve uma relação íntima com o agressor, geralmente homem. Quanto aos tipos de violência, em 82% das situações foram assinaladas a existência de violência psicológica; em 67% violência física; em 17% violência do tipo social; em 9% violência do tipo económica e em 3% violência sexual (Sistema de Segurança Interna, 2018). No mesmo ano, 75,7% dos 21.161 casos que chegaram a Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV, 2018) foram casos de violência doméstica. Nesse ano a APAV atendeu em média a 97 mulheres por semana, num total de 5.036 mulheres atendidas, a grande maioria tinha ou já tinha tido uma relação de intimidade com o agressor. No que toca aos homicídios, segundo a União de Mulheres Alternativa e Resposta (UMAR, 2018), no ano de 2017 foram mortas 20 mulheres em contextos de feminicídio, ou seja de homicídios motivados pela violência de género. Em 70% dos casos o homicida tinha ou tinha tido uma relação amorosa com a vítima. No mesmo ano 28 mulheres foram vítimas de tentativas de feminicídio, neste caso 78% dessas mulheres mantinham ou mantiveram uma relação com o agressor. Em 2018, só até ao dia 24 de novembro, 24 mulheres já tinham sido vítimas de feminicídio, em 16 desses casos o feminicida tinha uma relação de intimidade com a vítima, o que representa um aumento de feminicidios em relação ao ano anterior (UMAR, 2018b). De primeiro de Janeiro a 12 de novembro de 2019, a OMA registou um total de 28 feminicídios nas relações de intimidade e familiar, dois feminicídios em outros contextos e 27 tentativas de feminicídios nas relações de intimidade e familiares. Em 2020 foram 30 mulheres assassinadas, sendo 16 feminicídios em relações de intimidade, 12 assassinatos de familiares e dois assassinatos em outros contextos.vEstes dados indicam uma média de cinco mulheres por mês, em Portugal, vítimas de formas de violência extrema, salientando-se, que destas, três são vítimas mortais. Entre 2004 e 2019, foram registadas 531 vítimas de feminicídio nas relações de intimidade (RI) e relações familiares (RF) e 618 vítimas de tentativa de feminicídio (OMA, 2021). Não estão disponíveis os dados de 2021.
3.Evolução da legislação em Portugal
Nas últimas décadas Portugal percorreu um longo caminho no reconhecimento dos direitos das mulheres. “Até 1852 a lei portuguesa autorizava o marido a bater na mulher, e o Código Penal de 1886 considerava o adultério da mulher como atenuante de homicídio” (Lorenço, Lisboa & Pais, 1997, p. 12). Só com a Revolução Democrática de 1974 é que a igualdade de direitos dos sexos perante a lei foi conquistada. Foi também a partir da Revolução que o Estado começou a manifestar preocupação em criar mecanismos de combate à violência doméstica (Duarte, 2013, p. 133). No entanto o reconhecimento da violência doméstica como crime só aconteceu através do artigo 153º do Código Penal de 1982, que criminalizava os maus tratos ou sobrecarga de menores e de subordinados ou entre cônjuges com pena de seis meses a três anos de prisão e multa até 100 dias (Duarte, 2013). Apesar do reconhecimento do crime acontecer em 1982, só nos anos de 1990 é que a violência doméstica contra as mulheres assumiu uma grande importância na agenda política nacional. Em 1991 através da Lei n.º 61/91, foram criados mecanismos de proteção e apoio às mulheres vítimas de violência, como centros de atendimento e acolhimento apoiados pelo Estado e garantiu-se também o adiantamento da indeminização atribuída às vítimas de crime (Guerreiro et al, 2015). Foi também nos anos de 1990 que se criaram os primeiros planos nacionais para a igualdade e contra a violência doméstica. Estes planos são as maiores expressões das políticas públicas nesta temática. Entre os anos de 2003 a 2017, foram elaborados mais quatro planos, na tentativa de aperfeiçoar o primeiro plano nacional.
4.Procedimentos metodológicos
Neste trabalho privilegia-se uma abordagem qualitativa. A tipologia de Merriam (1999) divide a pesquisa qualitativa em cinco tipos, pesquisa básica, etnografia, fenomenologia, estudo de caso e grounded theory. A pesquisa aqui apresentada corresponde a uma pesquisa básica, pois procura somente descobrir e entender um fenômeno, um processo e visões do mundo das pessoas envolvidas. A inserção dos participantes foi feita por acessibilidade e intencionalidade, foi também utilizada a estratégia de “bola-de-neve”, na qual um participante aponta outros que possuam características de interesse da pesquisa. Os participantes do estudo foram gestores ou responsáveis por respostas sociais às vítimas de violência doméstica, como gabinetes de apoio às vítimas de violência doméstica do Estado ou do Terceiro Setor, e respostas de acolhimento temporário para vítimas. O perfil dos respondentes pode ser visto na Tabela 1, a seguir.
Todos os participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido para a realização das entrevistas e o estudo obteve um parecer favorável da Comissão de Ética da Instituição, que considerou estar de acordo com os princípios estabelecidos na Declaração de Helsínquia. Foram realizadas entrevistas semiestruturadas com base num guião construído por 11 perguntas abertas As entrevistas foram gravadas com o consentimento dos participantes e depois transcritas. O tratamento dos dados foi feito por análise de conteúdo.
5.Discussão
O reduzido número de condenações de violência doméstica, quando comparado ao número de queixas, e a aplicação de penas consideradas leves aos agressores são apontados como as principais dificuldades da resposta da justiça portuguesa à violência doméstica. O principal motivo usado para explicar o baixo número de condenações é o facto de o crime de violência doméstica ocorrer no espaço privado.
E3: “[…] Porque sabemos que é um crime que acontece dentro de quatro portas, e efetivamente vais ser a palavra de um muitas vezes contra a palavra do outro. E isto na justiça não vale. Portanto, é uma questão, enfim, isto é mais prática do que outra coisa, mas o que nos verificamos é que, a não ser que haja alguma prova pericial, ou testemunhas, normalmente nem chega a haver acusação. Portanto os processos terminam logo ali na fase de inquérito. […]”
A dificuldade da justiça em reconhecer o testemunho da vítima como prova para a acusação de violência é também explicado com o facto de em alguns casos às vítimas mudarem alguns aspetos do seu testemunho durante o processo judicial. O que muitas vezes acontece é que com o passar do tempo a vítima, por se ter reconciliado com o agressor, por já se sentir em segurança, por ter medo do agressor, ou por não querer relembrar os episódios de violência acaba por mudar o seu testemunho ou então não quer prestar declarações na fase de inquérito ou no tribunal (Coelho, 2018; Duarte, 2013). Relembrar os episódios de violência pode despertar nas vítimas alguma fragilidade emocional, o que torna mais difícil emocionalmente prestar declarações, e pode levar a incoerências no testemunho apresentado em tribunal. Assim, as declarações para memória futura por parte da vítima são apontadas como um dos recursos passível de resolver este problema, no entanto esta não é uma prática muito recorrente nos casos de violência doméstica (Duarte, 2013). “As declarações para memória futura permitem que o depoimento de uma testemunha, prestado no decurso das fases de inquérito ou de instrução, possa ser posteriormente valorado em audiência de julgamento” [artigos 6º, 1 e 3, alínea c), da CEDH, 271º, 294º e 356º, nº 2, alínea a), e nº 8, do Código de Processo Penal] (Fernandes, 2016b, p. 165). Nos casos de violência doméstica as declarações para memória futura para além de prevenirem a perda de prova são também um instrumento de proteção à vítima, na medida que previnem a sua vitimização secundária no decorrer do processo judicial (Fernandes, 2016b).
E4: “[…] As declarações para memória futura numa situação destas, num processo de violência doméstica, acho que fazem todo o sentido, não é. Não só porque não vitimiza novamente à vítima, não é, não revitimiza, não está, pronto nestas situações, tratando-se de situações delicadas e que mexem com as emoções, é uma mais valia para a vítima.”
Nos casos em que não existe arquivação do processo, mas em que não é aplicada ao arguido pena de prisão efetiva, como os casos que terminam em suspensão provisória do processo, ou em pena de prisão suspensa, podem ser aplicadas algumas medidas que limitem a liberdade do agressor, de modo a garantir a segurança da vítima. A proibição de contactos com a vítima e o afastamento da residência da mesma são algumas das medidas aplicadas nestes casos (Fernandes, 2016a; Gomes et al., 2016; Ministério da Administração Interna, 2017).
E4: “E de facto essas medidas de proteção são válidas e promovem alguma segurança à vítima, contudo não são 100% eficazes, não é. Em tudo há falhas, não é. A medida de afastamento do agressor, a questão da vigilância eletrónica, no fundo garante alguma segurança e dá alguma confiança à vítima que há alguém que está a protegê-la. E pronto isso tem muito a ver, e nesse sentido os tribunais têm de ter o cuidado de avaliar a situação de risco, e o risco que a vítima corre, e se é uma situação gravíssima se calhar não faz sentido aplicar uma vigilância eletrónica ou uma medida de afastamento, porque também têm a noção que o agressor pode quebrar essa medida, não é.”
Essa fala chama a atenção para algumas questões relacionadas com as medidas de afastamento aplicadas pelos tribunais e que devem ser tidas em conta na avaliação de risco e na aplicação das medidas.
E1: “[...] A vigilância eletrónica sim. É diferente, portanto, elas são alertadas quando… quando eles rompem o perímetro de segurança, e sim. Depois temos de ter em atenção aqui é qual é que é o perímetro de segurança, porque nós já chegamos a ter decisões, a ouvir decisões, não foram nossas, de utentes nossas, com 5 Km de distância… 5 k percorrem-se em quanto tempo? […] Têm é de ser ter atenção a esse perímetro. Mas existindo um perímetro efetivamente seguro…, é uma excelente medida. Porque elas têm tempo de ser por em segurança.”
Essa medida é uma forma de garantir a segurança da vítima em casos em que o agressor não vai preso. Em casos em que o perímetro de afastamento é reduzido, o que algumas vezes acontece, a segurança da vítima é comprometida. Para além de esta medida estar sujeita ao perímetro de afastamento, Lopes e Oliveira (2016) apontam também o facto de esta medida controlar também a localização das vítimas, o que faz com que estas se sintam também controladas, e expostas, uma vez que algumas vítimas preferem que a violência que foram vítimas não continue a perturbar a sua vida, como uma desvantagem. Quando à teleassistência, apesar de ser considerada também como uma medida que possa, em alguns casos, garantir uma boa resposta à vítima em situações de risco, parece estar sujeita a mais falhas e fragilidades do que a vigilância eletrónica.
E2: “A teleassistência a senhora tem o aparelho quando se sentir que o agressor, ela pode pressentir, ou pode vê-lo e ativa. Esse sistema dá sinal à Cruz Vermelha, a Cruz Vermelha dá sinal as forças de segurança. É preciso que atuem e que venham de imediato.”
Apesar do principal objetivo deste programa de assistência ser garantir uma resposta eficaz em situações do risco, o facto de ter de ser a vítima a dar o alerta não significa que ela o consiga fazer atempadamente. Há também outro aspeto relacionado com o tempo de todo o processo entre o momento em que a vítima alerta os serviços e o tempo em que têm efetivamente uma resposta. Gomes et al (2016) já tinham denunciado alguma demora na resposta dos serviços após às vitimas ativarem o aparelho. O facto de ter de ser a vítima a ativar o serviço, e a demora que por vezes existe na resposta são fatores que diminuem efetivamente a eficácia da teleassistência quando comparada à vigilância eletrónica, e podem colocar a vítima em risco.
E5: “Eu não tenho as estatísticas, mas acho que grande parte das vezes nem sequer medidas de coação existem. Os casos que tenho aqui muitos deles são graves e não houve medida nenhuma de coação. Nem sequer uma medida de afastamento com a vigilância eletrônica, ou mesmo a teleassistência.”
Ainda em relação às medidas de afastamento controladas com o uso da vigilância eletrónica e a teleassistência, a fala da E5 dá conta da pouca utilização desses métodos, mesmo em casos considerados graves. Em 2017 eram 1663 as vítimas com acesso aos dispositivos de vigilância eletrónica ou teleassistência (CIG, 2018), um número bastante reduzido quando comparado ao número de denúncias. O modo como os estereótipos relacionados com os papeis de género, e com o próprio conceito de vítima de violência doméstica, influenciam o sistema judicial português foi também um fator tido em conta para analisar o modo com a justiça atua na violência doméstica. Aos olhos da justiça, a imagem de uma vítima de violência doméstica é uma mulher frágil, com baixa autoestima, totalmente submissa ao agressor, pertencente a uma classe social baixa e economicamente dependente do agressor (Gomes et al., 2016). Permanecem também os estereótipos que as mulheres que se mantêm em relações violentas são de certo modo masoquistas, e que em alguns casos são também responsáveis pela violência de que são vítimas uma vez que provocam o agressor (Dias, 2010).
E1: “[…] Nós temos muito a ideia do que é uma vítima, e os juízes e as juízas também têm. se elas choram de mais…, ou se elas choram de menos… ah… se elas estão muito seguras, e até portanto foram capacitadas ao longo do seu acompanhamento e do seu apoio psicológico, e até estão seguras e determinadas ao longo do julgamento, e conseguem explicar bem o que se passou são demasiado esclarecidas… é porque também não tiveram impactos tão fortes. Isso é terrível.”
Gomes et al. (2016) consideram que a visão do que deve ser uma vítima de violência acaba por retirar credibilidade às vítimas que não se encaixam nesses estereótipos.
E3: “[…] Sim, ainda há uma visão estereotipada do que é ser vítima, do que é a vítima. E uma mulher que pode ser vítima na mesma, mas que tenha uma vida de sucesso, que seja… pronto que esteja organizada, que receba bem e que esteja tudo bem parece que não pode ser vítima. Porque parece que podia ter opção. E a gente sabe que não têm nada com isso.”
Para alguns magistrados as situações em que a vítima e agressor pertencem à classe média alta a queixa de violência doméstica esconde outros interesses, e é muitas vezes vista como uma forma de a vítima procurar vingar-se do agressor, por este a ter atraiçoado de alguma forma, uma vez que é uma mulher com estabilidade profissional ou financeira (Gomes et al, 2016).
E5: “A questão da terapia de casal e terapia familiar. Isso é completamente desaconselhado, não se pode fazer. Nós enquanto gabinete, estamos completamente proibidos pela Convenção de Istambul, […], que se sobrepõe a qualquer lei do estado. É completamente desaconselhável e está completamente fora de causa, nós não fazemos intervenção, terapia de casal, terapia familiar num caso violência doméstica. Eu acho que os tribunais têm muito aquela visão da família acima de tudo., Têm de se manter a coisa, não é, existe esta ideia, mesmo que a coisa esteja a funcionar mal, ainda existe muito esta ideia, […],isto é completamente errado, e prevalece muito, nos tribunais […].”
A situação considerada ideal é que, mesmo em casos de violência, é necessário manter a família, o que leva a que muitas vezes se recorra a terapia ou mediação familiar ou de casal, numa tentativa de resolver a situação de violência e manter a união da família. Ferreira (2016) chama a atenção para alguns dos perigos da mediação familiar nos casos de violência doméstica. A mediação pode também fazer com que a vítima se mantenha na relação abusiva com o agressor por acreditar que a situação vai melhorar, o que significa que continua numa situação de risco. Para além da mediação familiar ter todos estes pontos negativos é também proibida pelo artigo 48ª da Convenção de Istambul. Situações como o polémico caso do tribunal da relação do Porto, chamaram a atenção para a necessidade de alterar o modo como alguns magistrados abordavam a questão da violência doméstica contra as mulheres. A formação dos magistrados tornou-se então uma questão central na estratégica nacional contra a violência doméstica, neste sentido foi assinado em 2018 um protocolo entre a Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género a Procuradoria-Geral da República (PGR), a Secretaria-Geral do Ministério da Administração Interna e a Direcção-Geral da Administração da Justiça (DGAJ), a Guarda Nacional Republicana (GNR) e a Polícia de Segurança Pública (PSP), com o objetivo de melhorar a atuação dos profissionais que atuam junto das vítimas de violência doméstica, através da sua formação (Flor, 2018).
E3: “[…] Eu sei que os juízes […] não podem ir muito pelo lado emocional quando estão num tribunal. Mas se calhar é preciso é mais formação na parte emocional, para que depois possam tomar uma decisão racional mas que valide efetivamente um sofrimento, que isto é uma coisa muito própria, não é, não é propriamente assim não é muito claro.”
É necessária uma formação que permita aos juízes e magistrados compreender melhor as situações de violência com que deparam, e o impacto que essa violência tem nas suas vítimas. A formação anteriormente referida parece ir ao encontro desta necessidade, uma vez que têm como principal objetivo capacitar os profissionais de compreender e conhecer as situações de violência com que se confrontam, de modo a que possam acionar corretamente os meios jurídicos previstos pela lei no sentido de melhor proteger a vítima (Flor, 2018).
E1: “[…] Aveiro está-nos a dar uma boa prática. Portanto, quando os magistrados do ministério público têm um caso de violência doméstica, falam com a técnica de apoio à vítima que lá está dentro, e tentam analisar. Porque existem sempre…, para além de ser um olhar diferente, existem sempre pormenores que se calhar não seriam discutidos se fosse só uma pessoa a ler ou só uma pessoa a ver.”
Para além da formação de magistrados, o trabalho em rede entre tribunais e técnicos de estruturas de atendimento às vítimas de violência doméstica pode também ter resultados positivos na função de garantir a segurança das vítimas. Uma vez que permite que as situações de violência doméstica sejam analisadas sob perspetivas diferentes. É ainda acrescentado que esse trabalho já está a ser feito em alguns tribunais, nos Departamentos de Investigação e Ação Penal (DIAP) de Aveiro, Águeda e Santa Maria da Feira, que contam com serviços de apoio às vítimas de violência doméstica.
6.Considerações Finais
Este trabalho teve como principal objetivo compreender a perceção que as instituições de apoio às vítimas de violência doméstica têm da atuação da justiça neste campo. De um modo geral os técnicos de apoio à vítima entrevistados consideram a justiça portuguesa ainda demasiado branda em relação ao crime de violência doméstica contra as mulheres. Apesar de a legislação portuguesa ter tido nas últimas décadas uma evolução muito positiva, considerando a violência doméstica como um crime público e de caracter urgente, garantindo mecanismos de proteção à vítima e de prevenção da revitimação. É necessário que exista uma mudança de mentalidade, não só nos membros do sistema judicial, como na sociedade em geral, que desconstrua ideais de género, de família e de relacionamento transmitidos por várias gerações e que influenciam o modo como se olha para a violência doméstica e para as suas vítimas.